GQ (Portugal)

CIÊNCIA

São cada vez mais aqueles que olham para as faculdades de medicina como morada final. 20 anos depois de ser legislada, a doação cadavérica continua a ser essencial para formar novos médicos e para ajudar os mais velhos a praticar novas técnicas.

- Por Beatriz Silva Pinto. Fotografia de André Rodrigues.

São cada vez mais aqueles que, depois de mortos, ajudam a ciência a avançar. A doação cadavérica atingiu um pico.

Não tenho o porquê de ter pretensões de ser mais do que sou ou aparentar mais inteligênc­ia do que realmente tenho. Sou como sou e quando morrer serei mais do que atualmente sou, pois o meu corpo irá para a Faculdade de Medicina para que os estudantes possam aprender algo com ele.” A frase é de Newton Oliveira. Está entre as inúmeras anotações que deixou à mulher, Charlotte Oliveira, antes de morrer em dezembro passado, com 81 anos.

Newton deixou escrito, em vida, que queria doar o corpo à ciência. Hoje encontra-se na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto (FMUP), uma das cinco escolas médicas do País que recebem doações cadavérica­s. Um ato altruísta que tem tido cada vez mais adeptos. Em 2018, foram 513 as intenções de doação cadavérica que entraram na FMUP. O dobro das que se registaram 2017. O quíntuplo das que foram registadas em 2015.

“Não penso que a mentalidad­e portuguesa tenha mudado muito em três anos. Acho é que aumentou a informação.” Quem o diz é Dulce Madeira, docente daquela instituiçã­o universitá­ria que afirma, sem sombra de dúvidas, que o estudo a partir de cadáveres “é fundamenta­l para o ensino pré-graduado”. “Embora haja quem entenda que os modelos são mais importante­s, na Faculdade de Medicina em que estou, nós acreditamo­s que estudar no corpo humano é a melhor maneira de estudar anatomia. Porque se aprende a organizaçã­o do corpo humano em toda a sua extensão e tudo o que é variação da normalidad­e – que não é necessaria­mente patologia, mas que os médicos também têm de conhecer, uma vez que quando veem um doente não sabem se ele obedece aos padrões que estão descritos nos livros.”

Paulo Correia, aluno do 6.º ano de Medicina que chegou a ser professor assistente das cadeiras de Anatomia, confirma: “É uma mais-valia muito grande, porque conseguimo­s ter uma perceção do corpo humano muito melhor do que aquela que vem nos livros ou nos atlas.”

A ideia nasceu na cabeça de Newton em 1986, quando teve um cancro na bexiga e foi tratado numa universida­de na Alemanha, local onde o casal residia. “Face à dedicação dos médicos em bem atendê-lo, ele percebeu que fazia sentido doar o corpo para que os jovens médicos pudessem aprender com ele”, conta Charlotte. Há três anos, migraram para Aveiro e formalizar­am a decisão cá em Portugal. “Como é que reagiu?”, perguntamo­s à mulher de 68 anos. “Nós gostávamos muito de trocar ideias e sempre fomos muito abertos a tudo. E eu concordei com ele. Tanto é que eu também decidi doar o meu corpo. Quando eu morrer, vou pelo mesmo caminho que ele.”

O BOOM DAS DOAÇÕES

Hoje, qualquer pessoa a partir dos 18 anos pode formalizar a sua intenção de doar o corpo à Ciência, mas a história das doações cadavérica­s é recente. O Decreto-Lei que regula a utilização destes cadáveres para fins de ensino e de investigaç­ão científica foi publicado apenas em 1999 (DL n.º 274/99). Até então, o único diploma dedicado ao tema datava de 1913. Nele lia-se: “Ficam à disposição das Faculdades de Medicina, para seus estudos, os cadáveres dos falecidos nos hospitais, asilos e casas de assistênci­a pública, os quais, dentro do prazo de 12 horas, decorridas depois do faleciment­o, não sejam reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramen­to.” Ou seja, até ao virar do milénio, só os corpos não reclamados iam para as faculdades de Medicina.

Entre 1980 e 1999, em média, davam entrada na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto, entre um e dois cadáveres por ano, conta-nos Dulce Madeira. A lei mudou, mas a tendência não a acompanhou, explica: “Quando a lei entrou em vigor, a população em geral não estava informada. Portanto, durante alguns anos, não houve entrada de qualquer cadáver na nossa faculdade. Foi possível continuar a estudar porque houve uma gestão muito cuidadosa de todos os cadáveres que existiam.” O cenário foi mudando progressiv­amente e, entre 2009 e 2015, o número de intenções de doação cadavérica estabilizo­u nos 100. Pouco depois, deu-se o boom. De 2015 para 2017, o número de intenções duplicou. E de 2017 para 2018, voltou a duplicar. Dulce Madeira olha com bons olhos 2019: “Calculo que chegaremos ao número do ano passado ou eventualme­nte um bocadinho mais.”

Mas porque é que isto terá acontecido? A professora acredita que o motivo reside numa combinação do esforço da universida­de em sensibiliz­ar para a temática com a disseminaç­ão do tema pelos meios de comunicaçã­o. Há três anos, a FMUP fez a primeira cerimónia de homenagem aos doadores e aos seus familiares – evento que não é original no mundo, mas que terá sido inédito em Portugal – e foram realizadas diversas reportagen­s. “Cada vez que aparecia uma peça num jornal ou na televisão, as pessoas passavam a telefonar mais, a pedir mais informaçõe­s”, revela a professora.

Foi o caso de Paula Ribeiro, de 42 anos, que formalizou a sua vontade em abril deste ano: “Já tinha ideia de fazer cremação do

meu corpo. Mas, depois de ver reportagen­s em jornais e na televisão, resolvi procurar na Internet como é que poderia fazer a doação.” A mulher de Vila Nova de Gaia não conhecia ninguém que já o tivesse feito, nunca sofreu de problemas de saúde nem tinha qualquer ligação especial com a área da Medicina. Mas está bem ciente da importânci­a do seu ato: “Depois de morta, acho que o corpo já não serve para nada. E se posso doar e ajudar alguém a fazer alguma coisa com ele, que é o caso dos médicos, que precisam de estudar e que precisam de corpos para o fazer – porque com bonecos não é a mesma coisa –, porque não?”

Contou a amigos e familiares, que lhe disseram que ela não devia estar “boa da cabeça”. Também o marido estranhou, mas acabou por respeitar a decisão. “Eu até lhe perguntei se ele também gostava de o fazer, mas nisso ele já disse que não. Acho que os homens ainda são muito mariquinha­s, têm medo do que é que lhes vão fazer aos corpos depois de mortos”, atira entre risos.

Não sabemos se será este o motivo ou não, mas o certo é que as mulheres dominam as doações do corpo à ciência. Em média, há duas vezes mais doadores do sexo feminino do que do sexo masculino. Olhemos para os números do ano passado: na FMUP, registaram-se 356 mulheres doadoras e apenas 157 homens.

MIÚDOS E GRAÚDOS

Atualmente, na Universida­de do Porto não se sente uma falta extrema de cadáveres. Mas estes também não abundam. “Se a faculdade recebesse mais cadáveres, isso permitiria que os meus estudantes dissecasse­m meio cadáver. Estudariam, ou de um lado ou do outro, um cadáver inteiro, todo o corpo humano”, explica a professora. E adianta: “Neste momento, eles estudam apenas um segmento. Claro que podem observar os segmentos dos colegas, que estão a dissecar ao seu lado. Mas não é a mesma coisa.”

Quanto ao bom uso dos corpos pelos alunos, Paulo Correia garante que “todos os professore­s tentam maximizar a ideia de que é uma pessoa que ali está”, “para haver respeito”. “Nós temos recipiente­s no teatro anatómico com genitais. Como é óbvio, um aluno com 18 anos ao entrar para a faculdade tem de ter maturidade suficiente para perceber que aquilo não é uma brincadeir­a, tem de encarar com a seriedade de quem está a estudar e de quem está a usar corpos que poderiam ser da avó ou da tia para aprender.”

Diga-se, ainda, que não são só os alunos dos primeiros anos de Medicina que beneficiam da doação cadavérica. Há médicos que regressam à faculdade para relembrar a anatomia com mais detalhe e fazer treino cirúrgico de técnicas – “que são cada vez mais especializ­adas e com abordagens cirúrgicas mais pequenas”, revela Dulce Madeira. “Cada vez nos procuram mais para fazer cursos desta natureza. O que é bom, porque treinam no cadáver e já chegam aos vivos com maior capacidade de intervir cirurgicam­ente”, conclui.

Charlotte está em paz com a decisão do marido. E diz estar a ter “retribuiçã­o a cada instante”: “Ontem eu fui à manicura e ela me disse: ‘Ah Charlotte, tenho uma cliente que tem uma filha que estuda Medicina no Porto.’ Contou que a tal menina veio a Aveiro e estava fascinada com o facto de as pessoas doarem o seu corpo à Universida­de do Porto para os alunos poderem aprender com a anatomia real. E eu olhei para a manicura e disse: ‘O meu marido está lá. Quem sabe se a filha da sua cliente mexeu nele ou viu ele.’ Só o eu escutar que tem uma estudante de Medicina que é grata porque existem corpos lá... Ó meu Deus. Quer maior gratificaç­ão para mim?”

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