GQ (Portugal)

AFINAL QUEM MANDA AQUI?

- EX-ESTRANHO KALAF EPALANGA

Tenho vindo a ponderar embarcar no movimento nomadismo digital e voltar a viver num país africano, mas, tal como no Ocidente, reparo que o cinismo tem vindo a generaliza­r-se. Todos os dias somos assaltados pela falsa virtude e pela abjeção. O cinismo brota dos lugares mais inesperado­s. Já não se contenta com as páginas dos jornais, com o horário nobre na televisão, com as mesas de bar, com as bancadas do parlamento, com as filas para as bombas de gasolina. Quer mais: está nos domingos de missa, no pátio do recreio no colégio das crianças. Esse cinismo está mais forte que ideologia política, um pouco por todo lado, do primeiro mundo aos países em vias de desenvolvi­mento. O cinismo, que é também uma forma de cegueira, tem vindo a eleger os políticos que nos governam ou desgoverna­m.

Atendendo ao contexto geopolític­o, a pergunta e a resposta podem ser tidas como irrelevant­es. E este “quem manda aqui” serve para concluir toda e qualquer argumentaç­ão, todo e qualquer equívoco ou inquietaçã­o que se instale quando escasseiam divisas estrangeir­as nos cofres dos bancos nacionais; se a poluição sonora provocada pelo excesso de geradores na cidade faz do luandense urbano o mais rezingão dos angolanos; se a botija de gás acabou a meio do calulu de sábado; se falta aspirina; se é cobrada comissão até para o mais elementar dos requerimen­tos; se o banco está sem sistema; até se a chuva paralisa a cidade; se custa ver os feitos positivos, porque a frustração aparenteme­nte passou a figurar na lista de patologias que afligem o angolano, quando surgem, pergunta e reposta, incontestá­veis:

– Afinal quem manda aqui?

Hoje, tanto no Hemisfério Sul como no Hemisfério Norte, não há nada mais difícil do que decifrar o que o homem do nosso tempo sente e pensa. Teremos perdido, e

de forma irremediáv­el, a noção do que somos? Quando falamos, não falamos para sermos ouvidos, muito menos entendidos. Queremos audiência para falarmos com os nossos próprios botões sobre a presumível teoria de que a verdade sobre nós é inenarráve­l. E calamo-nos mesmo sabendo que é com o silêncio que se constroem as maiores tragédias. As tragédias de ontem e de agora. O que são estes estranhos que nos atravessam as fronteiras, ao que vêm? Expulsem-nos a todos e fechem a porta. Já sabemos, não se quer cá esta gente. E para que fique claro, dos imigrantes só se aceita Visa e Mastercard.

E, mesmo que nos indignemos, tudo é tão trivial que até a mais profunda das indignaçõe­s já não comove nem convence ninguém. Talvez porque transforma­mos a opinião numa arma de arremesso. Já

O CINISMO, QUE É TAMBÉM UMA FORMA DE CEGUEIRA, TEM VINDO A ELEGER OS POLÍTICOS QUE NOS GOVERNAM OU DESGOVERNA­M

não se expõem argumentos pelo simples e corriqueir­o prazer de discutir, opinar, conversar, pensar, cogitar e contra-argumentar, sem fazer do debate um campo de batalha onde invariavel­mente alguém terá de se sagrar vencedor. E nós, africanos, acostumado­s à nossa própria indiferenç­a e ao silêncio do Ocidente diante das nossas tragédias, encolhemos os ombros diante do Ruanda, Darfur, Sudão... ou ainda com o número de vítimas afro-americanas às mãos de agentes da autoridade no país de

La liberté éclairant le monde, também conhecida por Estátua da Liberdade, o símbolo de boas-vindas aos imigrantes que chegam ao novo mundo.

Tudo se nos parece tão distante ou talvez seja o contrário, tornou-se tão comum que ficamos anestesiad­os. Nem há mais espaço para indignação digital. Já não existe espaço para lamentar a desgraça alheia. Fica-nos melhor chorar o telhado da Catedral de Notre Dame. Afinal quem manda aqui – Jesus Cristo? Se ao menos rezasse, teria o consolo de entregar tudo nas mãos do senhor e suspirar inshallah! Mas eu não rezo. Embora tenha nascido e sido criado em casa de cristãos, dizer que a religião me é distante, é eufemismo. Para mim, está tão longe como o mar está do céu. Dito isto, não me furto a dizer que guardo em mim algumas orações e versículos, que embora não saiba quando usarei, tenho na ponta da língua para qualquer eventualid­ade, como, por exemplo, alguém lembrar-se de me pedir um salmo ou uma oração de consolo. Quando o assunto é alma, mais vale prevenir do que remediar.

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