GQ (Portugal)

ENTREVISTA

Em setembro, Tim Bernardes vai calcorrear Portugal com o seu primeiro disco a solo, Recomecar - que e sobre o amor, que e sobre o Brasil, mas que e tambem sobre todos nos. Falamos com ele.

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Tim Bernardes vai voltar a Portugal para tocar o seu primeiro álbum como se estivesse no conforto do quarto. Falámos com ele.

Já “recomeçou” em 2017, mas um reinício desta dimensão não se esgota assim. Meses depois de uma breve visita ao Porto com O Terno – trio paulista de indie rock com o qual acabou de editar o quarto registo –, Bernardes volta a terras lusas para seis concertos a solo. “Shows intimistas, mais longos, com um desenho de luz bem pensado”, revela o cantautor que tem sido apontado como uma das revelações maiores da música brasileira. O seu disco Recomeçar, lançado há dois anos, é o ponto de partida para todos os concertos. Foi também o ponto de partida para esta entrevista, depois de o encontrarm­os no terraço do Capitólio, sob o sol de Lisboa – altíssimo, de cabelo desgrenhad­o e sorriso tímido. Numa conversa em que se desfaz das etiquetas de música para corações partidos e música de protesto, Bernardes confessa a sua vontade maior: acabar com as barreiras entre o centro da canção e quem a ouve.

Como já disseste, Recomeçar é um disco entre a ruína e um novo começo. Mas tem sido visto como um disco sobre o desamor. O rótulo adequa-se? Lá no Brasil tem-se usado muito um termo para um tipo de música mais popular – a “sofrência” [risos]. E aí eu tenho brincado que o Recomeçar tem um quê de sofrência indie. Mas a música de desamor, quando ela é simplesmen­te triste, não me interessa muito. Eu gosto de quando há algum choque entre a tristeza e a beleza. Um tipo de melancolia quase cinematogr­áfica, sabe? Acho que o Recomeçar tem um pouco disso, de tentar fazer algo bonito com um desamor profundo. Mas ele é também um disco de busca, de ter de sair de uma posição de conforto em busca de uma coisa nova que talvez exista, talvez não. E, quando lancei o disco, por acaso eu me estava sentindo numa nova fase de recomeço. Porque estava fazendo um disco de estreia, mas já tinha feito várias coisas com O Terno.

Uma das mais populares canções do Recomeçar é a Não. Curiosamen­te é a que escreveste há mais tempo, ainda antes de ser lançado o primeiro disco d’O Terno em 2012. Porque é que a mantiveste escondida? Não se identifica­va com o repertório da banda ou não estavas pronto para te expor assim? Era até convenient­e o facto de eu estar só focado n’O Terno e aquilo não se encaixar ali! Junto com a Não foram se aglomerand­o todas essas músicas que tinham uma caracterís­tica em comum: foram feitas por uma espécie de necessidad­e, por viver uma coisa e querer transforma­r isso numa canção que eu gostasse de cantar e não numa memória que eu quisesse evitar. E eu mostrava para alguns amigos, mas não tinha a certeza se ia gravar elas, sequer... Aos poucos, n’O Terno fui colocando temas mais íntimos. E no Melhor do que Parece, que foi o terceiro disco, a resposta a isso foi muito boa – de sair de um formato convencion­al do trio de rock e ir para temas mais pessoais, mais sinceros. Receber o carinho do público foi-me dando confiança. E fiquei com vontade de lançar o Recomeçar. Musicalmen­te, eu até já tinha imaginado essas canções e esses arranjos há alguns anos, mas a coragem de dar a cara sem a personagem, sem os amigos ao lado... Isso veio mais tarde. E era uma vontade total. Fazer um disco que fosse um retrato sincero com a guarda baixada.

Foi aí que foste buscar as canções à gaveta e encontrast­e um álbum... Desde 2015 que eu juntei as coisas e enxerguei que era um álbum... E há uma coisa legal também: só ficaram no álbum as canções que sobreviver­am ao tempo. Quase como se eu tivesse guardado e falado: “Vamos ver se isso é uma coisa que só faz sentido para mim agora ou se vai fazer sentido para o meu eu do futuro e talvez para outras pessoas.” Mas eu tinha um receio de fazer um disco inteiro numa temática. Porque n’O Terno, antes, nós chamávamos o ouvinte pelo contraste: uma música mais engraçada, outra mais profunda, outra mais agitada. E eu tinha medo de fazer um disco onde as músicas todas tivessem o mesmo assunto, o mesmo clima e se misturasse­m na cabeça das pessoas. Mas em algum momento me deu um clique de que era isso que eu justamente queria fazer. Queria que parecesse uma música de 40 minutos, que as canções se emendassem propositad­amente.

Recomeçar saiu no fim de 2017. Um ano depois, Bolsonaro chegou ao poder. Mas já se sente, em Tanto Faz, um certo descontent­amento político – “tanto faz quem saiu e quem entrou” ou “quem tem mais é que tem o poder”... Essa é uma canção de 2016 e ela entra no Recomeçar por ser uma música sobre um sentimento de desilusão. Então, eu não estou falando da questão política em si, mas de como eu me sinto diante disso, uma sensação de não ter poder, de não saber para onde ir, de não saber nem por onde começar. No Brasil tem muito essa sensação, as pessoas sentem-se impotentes. E 2016 foi o ápice de uma polarizaçã­o que não dá nem para dizer exatamente se é de direita ou esquerda, porque nem parece uma coisa nem outra. São caricatura­s muito grosseiras. Foi no momento em que teve o impeachmen­t da Dilma e o povo se polarizou em torno disso. E eu olhava a questão sendo tratada num eixo horizontal – no sentido de esquerda e direita – e ficava pensando que o ponto esteve sempre na pirâmide, na desigualda­de social. Desde 1500, quando os portuguese­s chegaram ao Brasil, sempre teve muito poucos com todo o dinheiro e poder e muitos sem dinheiro e poder nenhum. É um desânimo pensar que a luta vai sendo jogada para essa caricatura de esquerda e direita, mas a pirâmide social vai sendo mantida na desigualda­de. Então... É uma canção de desilusão. Mas, no disco, ela entra de uma forma em que fica a dúvida se ela é sobre um relacionam­ento também.

A propósito... No fim de outubro do ano passado, na página d’O Terno apelaram “Bora Votar pela Democracia” e pelo voto contra o Bolsonaro. Quase um ano depois, como olhas para o teu país? Eu sempre senti – eu, os meus amigos e acho que o povo brasileiro em geral – que é muito difícil de entender a política no Brasil. Ela não é feita para ser entendida. Tem muita burocracia e muitas vezes você se sente paralisado por isso. Agora... Eu não sei se a democracia está sob ameaça, mas direitos humanos e questões básicas que, a duras penas, nos últimos anos se conquistar­am já voltaram para trás muito rápido. Eu sou da opinião de que a gente não tem de se desesperar antes da hora, tem é de ficar de olho. Mas não sei mesmo o quanto a democracia vai sair ferida. Ou até o quanto é que ela existe no Brasil... No momento em que a Dilma não funcionava mais para quem realmente tem o poder, que é uma elite financeira no Brasil, eles conseguira­m dar um jeito de derrubar ela. E não tinha realmente razões, é um impeachmen­t político. A Tanto Faz vem daí, da sensação que eu tinha quando as pessoas falavam: “Mas a nossa democracia... Acabou!” Talvez seja só uma prova de que ela não existe muito.

Portanto, a tua música vai beber ao teu contexto político... Eu acho que o contexto de cada época impulsiona a criação a ser de um certo jeito... Mas eu não tenho interesse em fazer canções de protesto. Me vem se for uma coisa sincera, um sentimento sincero. Eu falo muito mais do que sinto. Porque eu não me sinto nem muito capacitado ou com muita propriedad­e para falar sobre assuntos que não compreendo muito bem. A Tanto Faz... Nem era minha intenção inicial fazer uma música sobre isso. E só isso já é algo muito curioso – porque realmente o contexto, nem que seja por “osmose”, ele vai chegando.

Fugindo um pouco do Recomeçar: com uma ou outra exceção, este último álbum d’O Terno é mais intimista... É um registo que “adotaste” após o disco a solo? Nesse momento [da composição do álbum , que O Terno lançou este ano], eu tinha terminado de gravar um disco a solo, não estava com os meus amigos, estava indo morar sozinho pela primeira vez, sentia que uma fase grande da minha vida tinha sido encerrada. O discos d’O Terno eo Recomeçar sempre falaram muito de ciclos, não é? Mas no eu sentia como se estivesse encerrando um volume da minha história de vida. Não era só o fim de um capítulo, era o fim dos primeiros 26 anos. Então, quando eu comecei a compor, os assuntos eram novamente esses: “O que é que passou e o que é que vai vir?” Uma mistura de nostalgia com esperança. Quando vi que tinha músicas assim, eu decidi que queria fazer o que fiz no Recomeçar no sentido de unidade temática. E quis explorar isso com O Terno pela primeira vez.

Como foi recriar esse mesmo nível de intimidade do Recomeçar em banda? Quando eu sentei com eles e a gente enxergou que era um disco muito mais íntimo, o desafio foi pensar como manter o minimalism­o das canções. Então em muitas músicas a gente ficava quebrando a cabeça para perceber como é que a gente podia tocar menos, sabe? Muitas ideias de banda poderiam ser uma barreira entre o centro da canção e a pessoa. E essa coisa que tem no Recomeçar de o íntimo estar na relação direta com a pessoa... Era isso que a gente queria manter. Então é um disco que, ao mesmo tempo, tem o trio expandido do Melhor do que Parece e o cantor e a orquestra do Recomeçar. É como se eu tivesse de aprender tudo o que eu aprendi para poder fazer o .

Nos últimos anos, Portugal tem-se apaixonado por uma nova vaga de cantautore­s da MPB, como Cícero, Rubel e Castello Branco. Reconheces nestes nomes um novo movimento dentro da música brasileira? É, talvez, um movimento na medida em que esse tipo de canção está surgindo mais. Não um movimento no sentido de a gente estar conversand­o

entre si. Acho que parte muito do indivíduo, de uma vontade de falar de questões pessoais. De repente, falar disso na nossa época já é um novo assunto. Não é o caso de falar de questões pessoais em 80, não é o Arnaldo Batista falando disso ou o Caetano. É um millennial falando das angústias por trás de uma geração superficia­l. E eu vejo interesse nisso. Vejo também que o indie tem uma caracterís­tica de cada um criar uma linguagem própria... E vejo muitas diferenças entre o Cícero e o Rubel, por exemplo. Ou entre eu e eles.

Mas há um ressurgime­nto deste tipo de canção? Acho que sim. Quando a gente começou, ali no fim de 2009, tinha muito uma cultura de cover na cena brasileira. Se o Tim de 16 anos olhasse para agora ia ficar surpreso por a cena autoral estar ganhando espaço de facto. E sinto que agora não só está ganhando público, como está chegando a níveis de excelência maiores.

Em setembro, regressas a Portugal para uma segunda ronda de concertos, com o mesmo álbum. O que te faz voltar? Esse show do Recomeçar é uma chance de cantar, como eu cantaria no meu quarto, uma canção que eu acabei de compor. Então esse show não fica velho na minha cabeça... O repertório pode ir mudando. Agora que eu compus esse disco d’O Terno, coisas desse disco podem entrar... E eu não vejo o Recomeçar tanto num círculo “mercadológ­ico” no sentido de “Ah, o disco dura um ou dois anos e acabou”. Eu sinto que eu até quero ir contra isso. Quero que a pessoa goste desse disco daqui a cinco ou dez anos, assim como eu gosto de muitos discos de artistas que eu curto. Se esse disco realmente me bateu no coração, ele fica. E ainda não sinto que o trabalho esteja completo. Mais pessoas podem ser tocadas por esse disco.

Mas já andas com novas canções na cabeça? Já tenho material para um próximo disco que vai ser a solo. Não sei se vai ser um disco conceptual, não me quero repetir muito, quero fazer algo novo. Que na verdade não é nada novo, é a história mais velha do mundo: fazer um álbum de canções simples, bem acabadas e transparen­tes. Chega o momento em que não é mais uma coisa de fazer uma novidade. É fazer bem uma coisa que atinja as pessoas.

“CHEGA O MOMENTO EM

QUE NÃO É MAIS UMA COISA DE FAZER UMA NOVIDADE. É FAZER BEM UMA COISA QUE ATINJA AS PESSOAS”

 ??  ?? Recomeçar é um disco de um homem só, uma “conversa interna”. Foi Tim Bernardes que escreveu os arranjos orquestrai­s, gravou guitarras, baixo, bateria e piano, produziu e misturou o álbum. Só deixou para outrem as linhas melódicas em instrument­os de orquestra que não dominava. Foi um trabalho solitário. Mas foi assim que ele o quis. “Eu gosto muito de imaginar uma coisa e chegar lá com o mínimo de intermediá­rios possível”, admite.
Recomeçar é um disco de um homem só, uma “conversa interna”. Foi Tim Bernardes que escreveu os arranjos orquestrai­s, gravou guitarras, baixo, bateria e piano, produziu e misturou o álbum. Só deixou para outrem as linhas melódicas em instrument­os de orquestra que não dominava. Foi um trabalho solitário. Mas foi assim que ele o quis. “Eu gosto muito de imaginar uma coisa e chegar lá com o mínimo de intermediá­rios possível”, admite.

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