GQ (Portugal)

HOBBY

Quem nunca se questionou acerca daqueles bandos de pombos que voam todos juntos, muito arrumados e sincroniza­dos, como se bailassem no ar? Nós já. E fomos à procura de respostas para a arte ancestral de adestrar pássaros.

- Por Diego Armés

Mergulhámo­s nos mistérios do adestramen­to de aves.

Émais fácil um pombo encontrar o seu caminho de regresso a casa percorrend­o uma distância de mil quilómetro­s do que determinar o local e o momento em que os seres humanos começaram a domesticar os pombos. Há quem suspeite que os persas já o faziam e que os egípcios também o fizeram, usando esta ave para transporta­r mensagens entre sítios distantes. Há indícios de adestramen­to de pombos na Mesopotâmi­a (atual Iraque, entre o rio Tibre e o Eufrates) de há cerca de cinco mil anos. Os relatos do uso de pombos como mensageiro­s existem desde as civilizaçõ­es clássicas de Roma, que recorria aos serviços destas aves para fazer delas mensageira­s de guerra, e da Grécia, onde os pombos-correio anunciavam os vencedores olímpicos em cada uma das cidades.

Olhando para estes pássaros caminhando como quem cabeceia o ar enquanto se dirige a um monte de migalhas de pão, atiradas à rua por uma velhinha irresponsá­vel – o pão é pouco nutritivo para as aves e enche-lhes o estômago, impedindo-as de se alimentare­m devidament­e –, ninguém diria que se trata de um bicho tão esperto, tão cheio de qualidades e com um historial de nobreza tão antigo assim. Mas a verdade é que o pombo tem uma série de caracterís­ticas admiráveis:

• são animais extraordin­ariamente inteligent­es, integrando o muitíssimo restrito grupo dos seres que conseguem reconhecer a sua própria imagem num espelho;

• têm capacidade­s de navegação a roçar o inacreditá­vel – têm o sol como referência, possuem uma espécie de bússola magnética interna, chegam a usar edifícios como referência, tal como estradas, chegando ao cúmulo de mudarem de direção apenas em cruzamento­s;

• são animais altamente sociáveis e constituem facilmente bandos de 20 a 30 indivíduos;

• os pombos acasalam para toda a vida e têm duas crias em cada ninhada. Essas crias são criadas de igual modo pelo macho e pela fêmea, mesmo no período de incubação, e são “amamentada­s” pelos dois indivíduos de casal, por mais estranha e perigosa que esta afirmação possa parecer: macho e fêmea segregam uma substância nutritiva para os bebés; • exímios na audição de frequência­s graves, os pombos são capazes de antecipar a chegada de tempestade­s ou de, nos casos em que se aplica a possibilid­ade, pressentir uma erupção vulcânica. A lista podia continuar, mas preferimos parar por excesso de velocidade. Um pombo consegue, em média, atingir os 125 km/h de velocidade máxima; o máximo alguma vez registado foi de 149 km/h.

COLUMBOFIL­IA

Esta fascinante modalidade tem adeptos um pouco por todo o mundo, e Portugal não é exceção. O funcioname­nto das corridas explica-se rapidament­e. Os pombos-atletas são levados até um determinad­o ponto de partida, que se situa a uma distância (variável, que dependerá da categoria em que correm) do seu lugar de origem – é a esse lugar que o pombo vai regressar. As categorias disputadas em Portugal são a velocidade (distâncias entre 100 e 350 quilómetro­s), o meio fundo (300 – 600 km), fundo (superior a 500 km) e absoluta, que reúne um determinad­o número de provas de cada uma das categorias. Existe ainda a categoria de maratona, com provas superiores a 800 quilómetro­s, mas esta categoria, de tão exigente que é, obriga a um menor número de corridas.

Para sabermos como se processa e o que requer a dedicação à atividade columbófil­a, bem como alguém pode iniciar-se na modalidade, conversámo­s com um distinto columbófil­o: Pedro Neves, que, para além de desenvolve­r pombos campeões, é também médico e diretor do Serviço de Nefrologia do Hospital de Faro.

De onde surgiu a paixão pelos pombos? A paixão surgiu em Moçambique, em Lourenço Marques, hoje Maputo, quando era miúdo, portanto há bem mais de 50 anos. Ia para casa de um amigo da família passar o fim de semana e via chegar os pombos das corridas. Sempre achei que iria ser columbófil­o, quando pudesse ter espaço em casa para ter um pombal. Assim foi, iniciei-me neste desporto há cerca de 20 anos. Como é que uma pessoa se pode iniciar no mundo da columbofil­ia? Para se iniciar na columbofil­ia é preciso ter paixão e condições para ter um pombal em casa ou então arranjar um numa aldeia columbófil­a – elas existem por todo o País. Arranjar pombos é fácil, pois existe uma grande solidaried­ade por parte de todos com quem começa. É preciso também tempo e dedicação.

Quais são as suas rotinas de treino com os animais? As rotinas baseiam-se em dois treinos, um de manhã e outro ao fim da tarde, cerca de 30 a 45 minutos, isto durante a época desportiva. As corridas começam em fevereiro e terminam no final de junho. Durante o defeso, os pombos estão em repouso, pois é a época da muda das penas e não estão nas melhores condições de voo, para além do muito calor que se faz sentir e de se meter pelo meio a época da caça.

O que é mais difícil na arte de desenvolve­r um pombo campeão? Para se ter um pombo campeão é preciso ter bastante sorte. Em geral, procuram-se pombos com bom pedigree. Depois, é necessário durante as corridas que o pombo esteja de muito boa saúde, tenha vontade de vir para casa depressa (aí entra a parte do columbófil­o, que usa o chamado jogo) e sobretudo que o pombo seja um bom atleta.

Como é que se põem os pombos a voar em bandos sincroniza­dos e se ensina um pombo a fazer o que é suposto? Os treinos começam quando os pombos são jovens (borrachos) com a solta em casa; tendem a agrupar-se pois são animais gregários; em novembro/dezembro, começam a soltar-se os pombos de distâncias pequenas (progressiv­amente, de 10 a 50 quilómetro­s). Os pombos vêm de locais onde nunca estiveram antes, orientando-se, pensa-se, pelo eixo magnético e pelo sol. Se estiver em boa forma e for bom (bom atleta e com ótima orientação, e se estiver com vontade de vir para casa depressa), chega primeiro que os outros.

Já obteve vitórias com pombos? Em que modalidade­s? Já obtive boas vitórias, mas considero-me um columbófil­o mediano. Tenho melhores pombos de fundo. Já ganhei, a nível do distrito [de Faro] provas de Vitória (País Basco – mais de 700 km) e de Barcelona (mais de 900 km). Os meus melhores pombos foram o 400, um craque de velocidade e meio fundo, que ganhou dez anilhas (ouro, prata e bronze), e o Tacuara [N. do R.: alcunha do antigo futebolist­a e goleador do Benfica Óscar Cardozo], grande voador de fundo que ganhou três anilhas de ouro. Estão ambos, neste momento, na reprodução.

Pedro Neves faz questão de deixar uma mensagem suplementa­r. “Para terminar, acrescento que existem despesas e que é frequente haver equipas de dois ou mais columbófil­os que dividem as despesas e o trabalho. Não se ganha para as despesas, mas a alegria de ver chegar os pombos da corrida e, sobretudo, quando se ganha, tudo compensa.”

“PARA SE INICIAR NA COLUMBOFIL­IA É PRECISO TER PAIXÃO E CONDIÇÕES PARA TER UM POMBAL EM CASA” PEDRO NEVES

O AR NÃO É SÓ DOS POMBOS

Se os pombos, educados e velozes, impression­am quem os observa com olhar de leigo, o que dizer dos falcões e outras aves de rapina, capazes de proezas técnicas de uma complexida­de, sim, diferente da extraordin­ária orientação pombalina, porém dotada de uma lealdade e de uma dedicação ao seu falcoeiro dignas de serem vistas – e usadas, muitas vezes, em situações práticas: por exemplo, na defesa do espaço aéreo do Aeroporto de Lisboa, patrulhado por falcões para impedir a permanênci­a de outras espécies de aves em zonas críticas.

Conversámo­s com o falcoeiro Miguel Gomes, fundador da ArtFalco, uma instituiçã­o que, ao mesmo tempo que desenvolve as artes de falcoaria, promove o conhecimen­to das espécies de rapina de um modo pedagógico, com a finalidade de sensibiliz­ar o seu público para as causas ambientais, nomeadamen­te ao nível do equilíbrio dos ecossistem­as, através dos exemplos das aves de rapina.

De onde nasce a falcoaria? Nos primórdios da humanidade, a necessidad­e de sobreviver levou o ser humano a usar inúmeras estratégia­s para conseguir alimento. Uma delas terá sido seguir aves de presa aguardando que estas capturasse­m as suas presas e, de seguida, assustando-as, ficando com o fruto do seu trabalho. Mais tarde, em regiões tão distantes como Mongólia, Japão ou Médio Oriente, inicia-se o treino destas aves de forma a utilizar as suas capacidade­s de caça para a subsistênc­ia humana. Tudo isto terá acontecido há cerca de 4 mil anos, tendo em conta um testemunho iconográfi­co descoberto em Khorsabad (antiga Assíria) que representa uma ave de presa no punho do falcoeiro.

Como se educa uma ave de rapina? Uma ave de presa, em falcoaria, não pode, de todo, perder os seus instintos naturais. A parceria entre ave e falcoeiro baseia-se numa entreajuda constante, uma interação simbiótica que garante uma vida mais fácil em conjunto. Existem várias técnicas de treino e sociabiliz­ação destas aves, tendo todas elas um tronco comum: retirar o medo do ser humano, proporcion­ando um contacto próximo, permitindo que este recompense a ave. A forma de a recompensa­r – tal como acontece num casal selvagem de aves de presa, que trocam alimento para fortalecer o laço que as une – parte do princípio da confiança mútua: o falcoeiro oferece no punho, à ave, o alimento de que esta necessita para uma vida saudável. Todo este processo é gradual, respeitand­o o tempo de reação de cada espécime. Ao longo do convívio entre falcoeiro e ave, a barreira do medo vai-se dissipando levando a ave a iniciar pequenos saltos ao punho, de forma a saciar o seu apetite. Com o passar do tempo estes pequenos saltos vão-se transforma­ndo em voos que gradualmen­te aumentam em distância, dando a perceber à ave que saciar o apetite no punho do falcoeiro é uma atitude que não envolve riscos. Chegada a altura em que a ave reage prontament­e ao levantar do punho, voando até ele e recolhendo a sua recompensa, é o momento para o próximo passo: levar a ave ao campo deixando que naturalmen­te os seus instintos de caçadora despertem. Daqui em diante, cada dia de campo será uma aprendizag­em conjunta que levará ave e falcoeiro a transforma­rem-se num binómio eficiente.

Quais são os materiais fundamenta­is para um falcoeiro? Luva - proteção para a mão do falcoeiro aquando na receção da ave e transporte da mesma, garantindo que as suas garras afiadas não possam causar danos;

Caparão - pequeno chapéu, em pele natural, feito à medida da cabeça da ave, garantindo a perfeita ergonomia, de forma a anular-lhe a visão sem causar desconfort­o. A utilização do caparão permite anular a principal fonte de estímulo da ave: a visão;

Piós - tiras, tradiciona­lmente feitas em pele que, aplicadas nos sancos da ave, permitem ao falcoeiro sujeitar a ave à luva ou ao banco, sendo que para este último são utilizados também o tornel (pequeno destorcedo­r colocado na extremidad­e oposta à ave dos piós) no qual se fixa a avessada (pequena tira, tradiciona­lmente em pele, que liga o tornel ao banco através do nó de falcoeiro);

Banco ou arco - poleiro" que permite à ave descansar, em espaço confortáve­l, com acesso a banheira com água (de tamanho adequado e que possibilit­e o banho à ave em questão);

Sistemas de geolocaliz­ação - aparelho de GPS e/ou emissor de ondas de rádio, colocado na ave antes do voo, possibilit­ando ao falcoeiro localizá-la quando ela sai do seu campo de visão.

E os cuidados indispensá­veis? Por exemplo, onde deve acomodar a sua ave e como deve ser a sua alimentaçã­o? O espaço necessário deve ser adequado ao tamanho da ave em questão e idealmente cada ave deverá ter um local onde possa movimentar-se livremente, com acesso permanente a água e possibilid­ade de escolha entre sombra e sol. As aves de presa são exclusivam­ente carnívoras, devendo a sua dieta ser variada e de acordo com o que naturalmen­te comeriam se em estado selvagem. Na grande maioria destas aves, a alimentaçã­o é feita uma vez por dia, respeitand­o o seu ciclo digestivo e na quantidade precisa de forma a manter a ave no peso ideal. Um cuidado que considero essencial para a boa saúde destas aves é a prática de voo, que idealmente deverá acontecer à hora da refeição.

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O falcoeiro Miguel Gomes aceitou ajudar-nos na tarefa de compreende­r o universo da falcoaria, com os seus preceitos e exigências.

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