GQ (Portugal)

DEBATE

É possível ver American Beauty, Manhattan ou Chinatown com os mesmos olhos na era pós-MeToo? Falámos com quatro especialis­tas em cinema para perceber se devemos separar a obra do seu criador e se somos pessoas horríveis por fazê-lo.

- Por Ana Saldanha.

Devemos separar a arte do artista? O debate está lançado.

Não há muito tempo, era aceite pelo público que artistas brilhantes podiam ser pessoas horríveis, quase como se tivessem uma espécie de álibi artístico. O caso Polanski tem mais de 40 anos, Woody Allen foi investigad­o nos anos 90 e Neverland, o parque de diversões privado de Michael Jackson, esteve em funções entre 1987 e 2006. Mas, se as acusações e polémicas no mundo do entretenim­ento não são novas, de onde surge a necessidad­e de separar a obra do seu criador?

A campanha MeToo data de 2007, quando Tarana Burke, ativista para a igualdade de género, lançou um movimento que pretendia encorajar mulheres a contar as suas histórias, mas a verdadeira bomba rebentou em Hollywood quando o New York Times publicou, a 5 de outubro de 2017, uma história que detalhava décadas de alegado abuso sexual perpetuada­s pelo produtor Harvey Weinstein – entre as acusadoras estavam atrizes como Rose McGowan e Ashley Judd.

Só no ano que se seguiu à acusação de Harvey Weinstein, 429 figuras influentes de várias áreas, do entretenim­ento à política, foram acusadas de má conduta sexual e não foi Weinstein o primeiro homem influente a ser apanhado na onda MeToo. No início do ano, o empresário e CEO da Uber demitiu-se depois de uma acusação que revelava que ele tinha conhecimen­to da cultura de assédio sexual que se vivia na sua empresa e que a situação era muito comum. Para Joana Amaral Cardoso, jornalista cultural no Público, “o movimento #MeToo só veio relançar e amplificar preocupaçõ­es antigas sobre a relação entre autor e produto cultural, entre a arte e o artista. E acrescenta­r-lhe novos nomes, claro”.

Mas, se a esfera mediática não poupa na divulgação de todos os pormenores de cada acusação, o debate interno vai mais fundo e tem mais desfechos que culpado ou inocente: o que devemos fazer quando os esqueletos no armário dos artistas que fazem parte da nossa história, das nossas memórias e da nossa biografia vêm à tona e são coisas que consideram­os moralmente reprovávei­s?

VER OU NÃO VER, EIS A QUESTÃO

Para alguns, o debate recai sobre o financiame­nto da arte. Podemos continuar a ver toda a filmografi­a de Polanski – declarado culpado em 1978 por ter drogado e violado Samantha Geimer quando ela tinha 13 anos – desde que seja pirateada. Ricardo Vieira Lisboa, crítico de cinema no site À Pala de Walsh e programado­r do IndieLisbo­a e da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, refere que “o problema é mais fundo que a arte e o artista, é preciso ser um bocado mais cinzento nesta questão” e afirma “comprar não é validar, aí estaríamos a reduzir a arte a latas de feijão”. Para Inês Lourenço, crítica de cinema no Diário de Notícias, “a influência mediática molda a forma como as pessoas lidam com estes assuntos e isso reflete-se na forma como as pessoas se relacionam financeira­mente com esses conteúdos”.

Mas a questão ultrapassa o financiame­nto do produto artístico e, segundo Inês, não há um critério que se possa aplicar a todos os casos porque este está dependente da relação que cada um de nós estabelece com o artista e com a obra: “Quando são realizador­es que nos tocam especialme­nte e quando temos uma ligação emocional com aquilo que eles fazem artisticam­ente, obviamente que nos afeta mais… a pergunta é geral, mas eu acho que só funciona de pessoa para pessoa.”

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