NEUROCIÊNCIA
O neurocientista inglês Jack Lewis acredita que os Sete Pecados Mortais podem servir de guia para um mundo cada vez mais confuso e, a vários níveis, à beira do abismo. Quisemos saber como e porquê.
A Ciência do Pecado é o mais recente livro de Jack Lewis. Sentámo-nos com ele para perceber porque é que o orgulho e a avareza são os piores dos pecados.
Aproximamo-nos dele e é difícil não pensarmos em Frank T. J. Mackey, a personagem de Tom Cruise no filme Magnólia: gestos firmes, aspeto cuidado, descontração bem trabalhada, cabelos até meio do pescoço que não para de ajeitar, mais por hábito do que por necessidade, um sorriso branco implantado no local certo e à hora certa, um discurso assertivo e sem hesitações, um olhar perscrutante. No entanto, não estamos aqui para falar, como T. J., de mulheres de uma maneira misógina, estamos aqui para falar de homens – “homens” no sentido antiquado que remete para o conjunto vasto e vago de homens, mulheres e todos os outros géneros entre estes ou além destes. Vamos falar de homens, da sua infelicidade, da sua miséria e dos seus pecados. Jack Lewis, um neurocientista britânico que escreve muito mais sobre valores, moral e ética do que acerca de sinapses, acredita que a humanidade não atravessa um bom momento, “estamos muito vaidosos” – “we are”, diz ele, e tanto pode significar “estamos” como “somos”, o mais provável é que queira dizer ambos, mas optamos pela forma passageira, “estamos”, porque, de outro modo, não valeria a pena ter esperança, não haveria salvação. “O orgulho é o primeiro dos pecados”, afirma Lewis logo a começar, esmiuçando, em seguida, e deixando perceber que falamos de algo mais ténue que o sentido lato da palavra, que se refere à vaidade, ao fútil, ao fátuo. “O orgulho?”, ripostamos, “sim, a origem de todos os outros pecados”. Mantemos reservas. Voltaremos ao tema.
Jack Lewis lançou recentemente em Portugal A Ciência do Pecado, o segundo livro que dedica – vamos descrevê-lo em termos muito vagos – aos segredos e mistérios do cérebro, do pensamento e das reações humanas. É a chegada do livro ao mercado nacional que nos serve de mote para a conversa, mas que não é o tema exclusivo desta. Vi um vídeo em que dás uma cebola a um homem que tem os olhos vendados, o nariz tapado e luvas nas mãos. O homem trincou a cebola e pensou que se tratava de uma maçã. Somos enganados com frequência pelos nossos sentidos? Somos constantemente enganados pelos nossos sentidos, que não são mais do que uma maneira de nos aproximarmos do que é a realidade. Se nos retirarem alguns dos sentidos, é muito fácil obtermos informação enganadora. Imagina um rio que corre num sentido, mas o vento sopra contra a corrente. Tens a ilusão de que ele corre para um lado, mas, na realidade, ele corre para o outro. Nesse caso da cebola, é extraordinário como a perceção é adulterada. Existe a ideia de que o paladar está na língua, porém uma parte substancial deve-se aos odores que passam pelo nariz, por dentro.
Mas o homem só percebeu que se tratava de uma cebola quando lhe destaparam os olhos. Os sentidos do homem estavam muito limitados, não tinha visão, nem olfato, nem tato. Quando mordeu a cebola, ouviu aquele crunch e associou-o a uma maçã. Ele tinha a audição e, na ausência dos outros sentidos, identificou a informação sonora com a memória que tinha mais familiar. Quem é que já andou a trincar cebolas? Ninguém, ou muito poucos. Mas maçãs já todos trincámos. Mesmo quando lhe destaparam o nariz, ele continuou a achar que se tratava de uma maçã porque adequou a sensação à sua primeira crença. O som criou-lhe uma expectativa e, uma vez instalada a expectativa, tornou-se cada vez mais difícil refutá-la. O ser humano tem um cérebro que é 20% dedicado à visão, é o seu sentido mais poderoso, é, de certo modo, o sentido principal. Sempre que existe alguma ambiguidade relacionada com os outros sentidos, nós confiamos no que vemos.
De que modo estão relacionados a perceção sensorial e os preconceitos, ou mal-entendidos a priori? O preconceito, é bem lembrado, boa ideia. Existe uma coisa relacionada chamada “tendência [N. do R.: no sentido de parcialidade injustificada] inconsciente”. Encontras sites online onde podes medir a tua tendência inconsciente*. Podes ter, sem saberes, essa tendência contra pessoas de outras culturas, contra mulheres, etc., etc., e consegues medi-la. De um modo geral, toda gente tem estas tendências inconscientes, por mais que isso possa surpreender as pessoas. Há quem acredite que não tem preconceitos, mas a verdade é que há de os ter; há quem tenha consciência dos seus preconceitos e, se calhar, quando mede essa tendência, eles não são tão acentuados quanto pensava. O que há de melhor nestes testes é um trabalho académico que saiu há alguns anos [Jack interrompe a conversa, “o meu ouvido acabou de desentupir, estava com ele pressionado desde que saí do avião”, e perde-se um pouco no assunto]. Onde é que íamos? Ah, os sentidos e os preconceitos: o melhor de tudo é que podemos mesmo mudá-los. Tens o caso da experiência da mão de borracha, que consiste basicamente em educares o teu cérebro a reagir a um estímulo que, na prática, não existe – vês uma mão, que não é a tua, que vai sendo pincelada ao mesmo tempo que a tua também é, sempre em simultâneo; ao fim de algum tempo, só a mão de borracha, que é a que tu vês, está a ser pincelada, mas tu mexes os teus dedos como se sentisses o
estímulo no teu corpo. É possível treinar o cérebro para reagir a estímulos, sensoriais e não só. Esta experiência foi realizada, por exemplo, com pessoas brancas e com uma mão falsa negra, tudo se processou da mesma forma. Essas pessoas realizaram, também, os testes de tendência inconsciente e houve um claro “antes” e “depois” da mão de borracha, tendo a identificação com pessoas de outra cor aumentado muito substancialmente após a experiência da mão de borracha. E existem outras experiências muito mais sofisticadas com recurso, por exemplo, a realidade virtual. Uma das minhas favoritas é um exercício com congas e personagens: dão-te umas congas e vês a tua imagem virtual, que pode ser de um homem branco muito bem vestido, ou a de um homem negro com ar descontraído. A maneira como as pessoas tocam as congas consoante a sua personagem é completamente diferente. A associação automática a determinada ideia ou determinado conceito é muito forte.
És, evidentemente, um homem de ciência. Como e porque é que um homem de ciência decide escolher a definição gregoriana de pecado, e a lista de pecados capitais, para expor as suas ideias? Essas sete classes de comportamento são apresentadas pelas pessoas em todo o planeta. Não importa quem tu és. Todas essas sete coisas, com moderação, são realmente boas para o indivíduo e para a espécie como um todo, porém, em excesso, levam a um desfecho antissocial. Parti de um ponto bastante simples: as pessoas solitárias têm uma esperança média de vida inferior à das pessoas bem relacionadas. Além do tempo de vida, estas têm ainda uma muito menor incidência de doenças mentais como a depressão e a ansiedade, ou distúrbios de personalidade do que as pessoas solitárias. Portanto, decidi pegar nos sete pecados mortais porque, independentemente de acreditares ou não em Deus, independentemente de ires para o céu ou para o inferno, deves pensar nestes sete tipos de comportamento, já que, em excesso, eles vão levar as pessoas da tua vida a afastarem-se de ti e vais acabar socialmente isolado, o que é realmente importante para a tua saúde, quer física, quer mental. Há sabedoria ancestral destilada nesta lista de pecados. Havia dúzias de pecados, mas alguém pensou “espera, vamos tornar isto mais simples, vamos reduzir isto para apenas sete coisas”. Há séculos e séculos de esforço, de pensamento, de meditação e de discussão em torno do que é que faz de uma vida boa, o que é que faz de uma vida má, que acabam destilados naquelas sete coisas. Isto permitiu-me dar entendimento à literatura neurocientífica. Porque, quando és um neurocientista como eu, deparas-te com trabalhos de um monte de outros neurocientistas que dizem “esta parte do cérebro faz isto”, “aquela parte do cérebro faz aquilo”, e são sempre perspetivas que não estão interessadas em conflito, só se interessam pela reação ao estímulo, à dor. Mas depois ficamos sem saber o que reage o cérebro em determinadas situações, será ao conflito ou será à dor? Porque há reações semelhantes, nas mesmas áreas do cérebro, a estímulos distintos. Os sete pecados mortais ajudam-me a compreender melhor a neurociência, porque são uma maneira muito objetiva de mergulhar na literatura neurocientífica, no sentido em que é a religião que decide que estes são os piores tipos de comportamento humano, se levados ao extremo. Então, se conseguirmos que a literatura neurocientífica nos ilumine acerca de quais são as zonas do cérebro que fazem com que as pessoas ajam daquelas sete maneiras diferentes, talvez possamos compreender melhor os comportamentos.
Acreditas mesmo que é o orgulho o primeiro dos pecados? Porquê, como assim? Sim, acredito. Se bem que, por vezes, me divido entre o orgulho e a avareza. Gregório, o Grande, acreditava que, no momento em que cedemos ao orgulho, os restantes pecados acabavam por tomar conta de nós, e isto faz todo o sentido porque se alguém se acha e se sente mais importante e mais valioso do que todos os outros, então vai mostrar menos respeito pelos outros, logo essa pessoa vai querer mais do que a fatia que lhe cabe, mais do que a fatia justa da comida, mais do que a fatia justa da riqueza, mais do que a fatia justa das pessoas com quem se envolve sexualmente. Porém, por outro lado, a ganância é muito má porque, não importa o quanto tenhas, vais sempre querer ter mais. Essa demanda por ter mais significa que vais acabar por te comportar de uma forma em que não vais querer saber o que acontece aos outros. Tens imensos exemplos disso no que toca à demanda capitalista, basta pensar no que acontece nos países em vias de desenvolvimento, onde as pessoas passam a vida fechadas em fábricas de sapatilhas, por exemplo, para que nós, os ocidentais, possamos comprá-las e usá-las, sem nos preocuparmos com isso.
Há aqui uma série de elementos perversos. Digamos que quem não se rege pelos valores morais instituídos pelas religiões, vamos chamar-lhes “tementes a Deus” por uma questão de conforto, acaba por abraçar outros valores. O mais usual é perseguir uma determinada ideia de sucesso capitalista e é aqui que entra a ganância, a avareza. O mais curioso é que a nossa sociedade tende a não castigar ou censurar este tipo de comportamento e de ambição. De um modo geral, a sociedade não gosta dos ricos, mas apenas por ter inveja deles e do dinheiro que têm. Não quero com isto dizer que os ricos são maus ou que ter ambição por dinheiro é mau, per se, há boas pessoas e más pessoas. O que acontece é que essa voragem desmedida, e que nunca acaba, por mais e mais riqueza, é negativa e nem sequer traz mais felicidade. Olhas para certas pessoas que vivem essa realidade e o que é que elas são? Solitárias, rodeadas de seguranças, com medo de perder tudo, de serem roubadas, de serem enganadas, com receio de que os amigos não sejam verdadeiramente amigos e que só se interessem pela sua fortuna. Compram tudo, mas acabam por não desfrutar de quase nada. A razão que me faz odiar a avareza é porque é ela que começa por motivar as pessoas a trabalhar arduamente, o que é um coisa boa, mas que acabam por querer mais e mais e mais dinheiro até ao ponto de acumularem um excesso tão vasto, são milionários, são muito ricos, e presume-se que sejam felizes, mas não há qualquer prova ou indício de que seja isso que acontece na realidade.
Como é que conseguimos determinar o que é certo e o que é errado? Obviamente, há coisas simples, há os Dez Mandamentos – não matarás, não roubarás... –, mas, tendo em conta os contextos culturais, por exemplo, como é que o indivíduo consegue situar-se moralmente caso o seu contexto mude? Porque é que estes pecados são mortais? Não existe uma bússola moral absoluta nem nascemos com o sentido inato para distinguir o bem e o mal, precisamos de ser ensinados. No entanto, os pecados mortais são literalmente mortais. Se exagerares em qualquer dessas condutas vais isolar-te e vais morrer por causa disso. Isto é factual. Temos uma esperança de vida muito superior se tivermos saúde mental e temos melhor saúde mental se estivermos socialmente bem conectados. O que eu gostava de fazer era usar a ciência para revigorar estes conceitos tão antigos, independentemente de acreditares em Deus, no inferno e no céu, ou de seres religioso, o que importa é que mantenhas esses sete tipos de comportamento debaixo de olho, que saibas que tens de te observar e manter-te alerta, garantindo que eles se mantêm num nível moderado e nunca se tornam excessivos. No sentido oposto, se percebermos que, ajudando os outros, sendo bondosos, os outros serão bons para nós de volta, iremos estabelecer uma espécie de cadeia de bondade.
É possível educarmos o nosso cérebro a reagir? Sim. A questão é sabermos distinguir a gratificação imediata, a satisfação no momento, daquilo que será positivo para nós no médio e no longo prazo. Tornar esta forma de equacionar um hábito constante. No fundo é um exercício bastante egoísta, porque nos põe a pensar no que é melhor para nós. Só que nos obriga a considerar esse “melhor” de uma maneira verdadeiramente positiva. Não podemos ceder à tentação da gratificação instantânea – e sabemos o quanto isso é difícil, já que a publicidade explora cada um dos pecados mortais, fazendo-nos invejar e cobiçar, sempre com a cabeça apenas no lucro financeiro.
Então, provavelmente, tens aí a resposta para o teu dilema: se a finalidade é sempre o lucro financeiro e se é daí que se exploram as tentações e fraquezas que nos levam a pecar, então a avareza é o pior de todos os pecados. Não? É verdade. Acho que tens razão. Porque está aí a diferença entre sermos responsáveis pelo nosso próprio pecado e a sociedade tolerar uma forma abrangente de pecar. Acho que... acho que respondeste à minha questão.