REFLEXÃO
Um breve ensaio sobre o lado negro da paixão do futebol, pontuado por exemplos redentores.
A história do futebol está pejada de companheirismo entre jogadores e equipas adversárias, exemplos de humanidade maiores que a rivalidade de campo. A história do futebol também está pejada de episódios de adeptos a maltratarem fãs de clubes concorrentes, histórias de terrorismo de claques, milícias em prol de uma camisola que nem dá argumentos para tal. Quando não há fair-play, dá para fazer stop a quem dá mau nome ao jogo?
É a história das conversas sobre futebol ao longo da minha vida. Que acabam sempre com a minha explicação sobre não me interessar por bola, mas apaziguando ânimos quando asseguro que torço pela Seleção. Calma, caro leitor, não me interessar não me torna ignorante – eu sei o que é um fora de jogo e até sei o que significa quando se fala em dérbi –; assumir que não me interesso pelo jogo apenas coloca uma tónica diferente na leitura deste artigo, sabendo de antemão o ponto de vista desta jornalista que, por norma, não vibra com penáltis. Mas revolta-se com as demonstrações de falta de civismo no futebol, que tendem a acontecer fora das quatro linhas.
Caso(s) em questão, de forma aleatória (e a ponta do icebergue num rol de manchas na história da bola): em agosto do ano passado, três jovens portugueses foram agredidos na Croácia, onde se encontravam de férias, por outros conterrâneos que começaram as agressões chamando-lhes “tripeiros de merda”. Dois dos agredidos estavam com a T-shirt do clube. O terceiro, descaracterizado, nem sequer era do FC Porto. Era do Sporting. A estupidez maior? Foi uma brincadeira de meninos, se listarmos outros casos: também em 2018, cerca de 50 adeptos do Sporting, a 15 de maio, com a cara tapada, entraram sem dificuldades pelo acesso principal da Academia do Sporting e, munidos de bastões de basebol e cintos, agrediram vários jogadores da equipa A, bem como o treinador, Jorge Jesus, tendo o caso tomado contornos mais graves quando, alegadamente, se falou na envolvência do presidente do clube, Bruno de Carvalho, na orquestração do ataque. Saber destes incidentes ou descobrir novos a propósito deste texto só ratifica a minha conversa introdutória: não, não tenho clube. E parece-me ainda mais incrível como há quem trate o futebol não como uma paixão, mas como uma religião exacerbada, com o modo fanatismo sempre on eo fair-play, por norma, em pause. Passamos o tempo todo a falar dos terroristas de outras crenças, a gritar #jesuischarlie e a condenar massacres em nome de uma qualquer entidade e, entre nós, aqui tão perto, andam seres aparentemente normais, mas tão fracos de mente como aqueles que dão má fama a outras religiões. Como estes transeuntes dão má fama ao futebol. É verdade que o futebol deverá desencadear no cérebro – e no coração – alguma espécie de reação química que o torna algo mais próximo do passional do que do racional, mas os crimes movidos por paixões não são românticos, são crimes. “Indivíduos obviamente inadaptados à civilização decidiram, este fim de semana, vandalizar carrinhas de claques do Sporting com provocações alusivas a adeptos sportinguistas mortos por adeptos benfiquistas. Dado o teor das mensagens, a cor dos graffiti e a localização das carrinhas, nas imediações do Estádio da Luz, deduz-se, com ampla legitimidade, que os protagonistas do episódio sejam benfiquistas.” É assim que Diego Armés, chefe de redação da GQ Portugal e benfiquista assumido, introduz a sua crónica semanal Sócio #107658 de 8 de maio deste ano. “O sucedido não é apenas lamentável, é chocante, mas pior do que o sucedido é a defesa – ou desculpabilização, ou a menorização, ou a relativização – do mesmo a que assisti em vários meios, suportes e fóruns. É simplesmente ultrajante que alguém defenda semelhante nojo e não consigo compreender o que se passa aqui.” O Diego é um colega. O Diego é também a pessoa que mais me faz ler sobre bola. O Diego é também a razão pela qual há esperança, porque faz as perguntas certas, estando do lado de dentro deste jogo, ao passo que eu, que prefiro ficar fora das quatro linhas, das bancadas, do estádio, julgo que faço as perguntas porque não sinto a paixão pelo caoutchouc como os fãs de futebol. Só que afinal, para quem vive a modalidade, este género de nódoas no relvado é também incompreensível. O exemplo mais grave deste género, na história do futebol português, talvez tenha sido o de 18 de maio de 1996: na final da Taça de Portugal, entre Sporting e Benfica, o membro dos No Name Boys, Hugo Inácio, disparou propositadamente um very light na direção da bancada oposta, onde estavam os adeptos do Sporting, atingindo Rui Mendes no peito, provocando-lhe a morte quase imediata. O jogo, no entanto, continuou até ao fim. Hugo Inácio foi condenado a cinco anos de prisão pelo crime de homicídio por negligência, mas entretanto fugiu da cadeia, foi recapturado, saiu em liberdade e voltou à cadeia, primeiro pelo uso de tocha e depois por agressão a um polícia. Foi condenado a quatro anos de prisão. Repito. Quatro. Pela morte de um ser humano. O criminoso acumulou ainda uma série de infrações ao longo dos anos ligadas ao futebol, tendo em 2016 voltado a ser condenado a três anos de prisão e proibição de entrar em recintos desportivos durante sete anos, por posse de material pirotécnico. O ano passado foi detido por entrar no jogo entre o Benfica e o Chaves. Porque estou a frisar isto? Porque as coisas continuam a acontecer também porque as sanções são demasiado leves, há alguma leviandade no modo como se trata estes crimes. Mas devia ser exatamente o contrário, porque estes comportamentos vão contra tudo o que o futebol, enquanto desporto, representa.
Não é à toa que Armés, na crónica supracitada deste ano, lhe faz referência: “Porquê defender quem exalta a morte de outra pessoa? Está tudo louco? Como é que uma pessoa, seja de que clube for, é capaz de defender algo tão obsceno? Certamente, são pessoas que não se lembram da inacreditável imagem de Rui Mendes de peito aberto deitado sobre o degrau da bancada do topo norte do Estádio do Jamor, ainda fumegante. Se bem me lembro, Rui Mendes, o senhor que morreu no Jamor em 1996, tinha o filho ao lado e estava pacificamente a ver a bola naquela que seria a festa do futebol português. Que cretino consegue fazer desta tragédia absoluta um motivo de celebração? Alguém me explica? Não há justificação para tamanha desumanidade a não ser a total ausência de intelecto.” Obrigada, Diego, por colocares por escrito os meus pensamentos de forma eloquente – se não te importares, vou usar ainda este parágrafo da tua crónica, porque se não a tivesses escrito, verbalizá-la-ia eu: “Acredito que a enorme,
“De que clube és?” “Não tenho clube”, respondo. “Como assim, não tens clube?” “Como assim, tenho de ter?”, encolho os ombros.
a esmagadora maioria dos adeptos é constituída por bons humanos, boas pessoas, bons cidadãos. (…) Posto isto, acho inaceitável que alguém tente defender este episódio com aquela conversa infantil do ‘eles também fazem’. As conversas do ‘mas eles também fazem’ a mim não me dizem nada. Fazem todos porque os imbecis são como as ervas daninhas e dão em qualquer lugar. A cor deles é essa, cor de imbecil. Não é vermelho, nem verde, nem azul. Cabe a cada um de nós, os que gostam mesmo de futebol, repudiar aqueles que lhes mancham as cores do clube.” Sublinhe-se: cor de imbecil, que é a cor que mancha a reputação do futebol – por quem dele retira mais prazer, ironicamente.
Outro Diego, mas este com “o” e não “e”, também abordou a temática do fanatismo futebolístico. Diogo Faro, na sua página de Facebook, Sensivelmente Idiota, escrevia em abril de 2014 sobre “o fanatismo. Essa doença grave. Há os fanáticos religiosos, políticos e, além de mais uns quantos, os desportivos. Seja lá de que tipo for, é uma doença que tanto é grave para o energúmeno que a carrega como para o resto da sociedade que opta por ser saudável, mas tem de os aturar. Sim, ‘opta’. É uma doença que se escolhe ter. O cancro é azar, o fanatismo é estupidez opcional.” [Nota: #estupidezopcional parece-me um bom hashtag para viralizar], continuando que fala “mais concretamente da subclasse do fanatismo desportivo. E não se enganem, isto não tem cor. Não é vermelho, não é verde, nem é azul. Só tem a cor da demência.” Também conhecida como cor de imbecil, acrescento. Se, tal como eu, não está a
par de todas as histórias, regresse comigo a 1985, a 29 de maio concretamente, quando, no Estádio de Heysel, na Bélgica, se disputava a Taça dos Campeões Europeus, entre o Liverpool e a Juventus, e se deu uma das mais significativas demonstrações de hooliganismo. Num jogo de extrema tensão, já com preliminares de distúrbios fora do estádio, dezenas de espectadores italianos foram espezinhados por hooligans, que usaram barras de ferro para bater nos rivais, depois de a grade que separava os apoiantes de ambas as equipas cedeu com a violência dos britânicos em busca de confusão. Com a pressão dos espectadores em pânico, o muro caiu, arrastando na queda mais algumas dezenas de pessoas. O resultado do jogo? 39 mortos e mais de 600 feridos, com as equipas inglesas a serem proibidas de participar em competições europeias ao longo de cinco anos. Catorze fãs do Liverpool foram presos – por três anos. Uma vitória por demais parca. “Ah, os anos 80 e 90”, diz o leitor, “aquela década pródiga em hooliganismo, isto agora não é nada assim”. Só que não. Em 2017, a Federação Portuguesa de Futebol divulgou um minirrelatório que contabilizava mais de dois mil incidentes com adeptos, por ano, no futebol português, desde 2013/14, sendo que em 2016/17, 92% das multas cobradas aos clubes foram por mau comportamento dos fãs. O gráfico salta de pouco mais de 800 casos em 2012/13 para cerca de 2.100 na temporada seguinte. O estudo é de 2017. Mas uma pesquisa rápida confirma que 2018 continuou a tendência – basta olhar para os casos listados acima.
Será talvez a incongruência das incongruências, porque a origem do termo desporto prende-se com algo que nos diverte, e não que nos deixa receosos. Segundo a plataforma Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, “(…) é uma adaptação do antigo francês desport, forma divergente de deport, ‘divertimento, jogo’, derivado regressivo do verbo déporter, ‘divertir, distrair’”, ou seja, algo que nos alivia das preocupações e não algo que nos cria novas. “(…) A partir do século XIX, o inglês sport (também derivado do francês deport) terá contribuído para o incremento do uso de desporto no português europeu.” Talvez a mesma razão pela qual a palavra sport, em inglês, diga respeito não só à modalidade em si, mas também a alguém que é uma boa pessoa, que aceita as derrotas com desportivismo. Desportivismo, aliás, essa palavra que talvez seja a mais fidedigna tradução do fair-play para português, que luta “pela delicadeza com os adversários e colegas de equipa, pelo comportamento ético e integridade, pelo jogo limpo, e pela ética na vitória ou na derrota”, conforme diz esse manancial de definições que é a Wikipédia. Mas quando os casos acima se acumulam, para onde vai o desportivismo? É possível falar ainda em desporto, quando a sua essência se dilui nas atitudes que nada têm a ver com aquilo que o relvado
prega e defende? Quando um adepto desvia as atenções do jogo para situações completamente alheias ao clube por causa de atitudes que, além de antidesportivas, são também um golpe na sociedade, como pode alegar que o faz em prol de um amor à camisola? O argumento cai ainda mais por terra quando os próprios clubes são os primeiros a dar o exemplo em matéria de fair-play – não é à toa que a própria FIFA tem um galardão que premeia qualquer um dos intervenientes, dos jogadores ao clube e claques, que melhor se comportem numa situação que desafie o seu desportivismo. Atribuído anualmente, data de 1987 e já destacou uma série de situações que vão de salvar a vida de um oponente em campo a faltar a uma partida, sendo titular, para doar sangue em prol de um doente com leucemia – como aconteceu em 2017 e 2018, respetivamente.
Não são os únicos exemplos do modo como clubes e jogadores se entreajudam, acima do emblema que levam ao peito. Em 2014, Oleg Gusev, o capitão do Dínamo de Kiev foi acidentalmente atingido por outro jogador e perdeu os sentidos, quase morrendo por asfixia, uma vez que começou com convulsões – Jaba Kankava, da rival equipa Dnipro, correu a ajudar e evitou que sufocasse, impedindo que o jogador caído “engolisse” a língua. Os adeptos também têm boas histórias de fair-play para contar: ainda no caso Liverpool – Juventus, de 1985, que afastou as equipas inglesas dos torneios da Europa ao longo de cinco anos, gerou uma tensão palpável entre os adeptos das duas equipas ainda décadas depois. Por isso, em 2005, quando os dois clubes se juntaram na primeira disputa pós-tragédia, não é de estranhar que alguns adeptos da Juventus – ainda que não todos – tenham aplaudido a iniciativa da claque do Liverpool que chegou ao jogo com um cartaz gigante onde se lia Amicizia (amizade), em modo de pedido de desculpas. “Afinal, há esperança”, estou aqui a pensar, lentamente guardando o cartão vermelho que reservo para o futebol desde que comecei a escrever este texto. Uma outra demonstração de companheirismo é a da Alemanha, em 1990, nas semifinais do Mundial, contra Inglaterra. Depois de Stuart Pearce ter falhado um golo, na ronda de penáltis, foi Chris Waddle que ficou com a pressão para marcar e passar à fase seguinte. Quando a bola passou por cima da trave e a Alemanha euforicamente começou a celebrar a vitória, Lothar Mathaus (talvez o melhor jogador de meio-campo do mundo, na altura, de acordo com a Internet) não comemorou com os restantes, preferindo consolar Waddle. O guarda-redes Oliver Kahn repetiu o gesto de Mathaus, em 2001, quando o Bayern Munich derrotou o Valencia em penáltis e arrecadando a Liga dos Campeões. Kahn, em vez de celebrar, foi consolar o seu adversário direto, Santiago Canizares, em lágrimas pela derrota. É aqui, nestes momentos, que se encontra a etimologia da palavra desporto na sua forma mais pura. Outra das mais caricatas histórias de fair-play é a do estádio do Sporting que foi também do Benfica: depois de acumular uma série de campos, uns emprestados outros próprios que, por diversas vicissitudes teve de abandonar, o SLB ganhou morada nas Amoreiras, onde permaneceu durante 15 épocas, entre 1925/26 e 1939/40. Mas, por motivos de expansão urbana da cidade, o campo foi sacrificado para construir o agora conhecido como viaduto Duarte Pacheco. Ao longo das 13 temporadas seguintes, foi o Estádio do Lumiar, onde jogava o SCP, que acolheu a equipa encarnada. Se as equipas são as primeiras a mostrar com quantas ações se escreve fair-play, porque é que os adeptos se munem do clube como argumento, mas não como exemplo? É assim tão glorioso celebrar taças e campeonatos, mas não nos incomodar o nunca termos ganho um FIFA Fair Play Award, enquanto país?
Como se resolve isto? Parece-me importante, primeiro que tudo, deixar de considerar estes nomes, que se movem em jeito de exército do seu clube como adeptos (porque nem todos os adeptos são criminosos, como provam as referências supracitadas – aliás, a maioria não é –, nem estes maus exemplos representam a essência do que é uma claque) e começar a considerá-los fanáticos. Até porque não se pode extrapolar para as claques aquilo
que é obra de uma amostra que não é representativa. Nem assumir que o nome claque tem conotação pejorativa – por exemplo, a tragédia no Estádio Hillsborough, a 15 de abril de 1989, em Sheffield (Inglaterra) durante o jogo entre Liverpool FC e Nottingham Forest, para as semifinais da Taça da Inglaterra, onde 96 adeptos do Liverpool morreram pisados e outros 766 ficaram feridos não foi causada por ação violenta por parte desses mesmos adeptos, sugerem as investigações. As causas foram a sobrelotação do estádio, bem como o seu péssimo estado de conservação. Aqui, a ação teve zero a ver com hooliganismo, a palavra da década, naquela altura. Infelizmente, muitas outras ações têm a ver com fanatismo, falta de fair-play e os que o perpetuam devem ser identificados e punidos. Severamente. Onde lhes dói mais: fazer como fez o Reino Unido com o hooliganismo – na altura dos jogos, têm de estar na esquadra. Depois, criar exemplos melhores, divulgá-los melhor, aplaudi-los de forma maior, compensá-los. Se uns são proibidos de entrar no estádio, os bons deveriam ser compensados com bilhetes para a temporada ou uma camisola autografada em vez de uma palmadinha nas costas, tanto quanto os outros não se devem safar com uma palmadinha na mão. Permitam-me citar o Diego, uma última vez: “A minha mãe, quando eu era miúdo e me metia em zaragatas, punha-me de castigo e ainda me dava uma palmada. Não adiantava dizer ‘foi ele que começou’, fosse ou não verdade. Ela tratava de mim e esperava que alguém tratasse do outro de maneira igual. Aqui, temos a obrigação de fazer o mesmo: cada um tem de olhar para os que envergonham o nome do seu próprio clube e se colam às suas cores para terem as costas quentes quando dão largas à sua estupidez abjeta. Não sei se é remédio para tudo, mas comigo resultou.” Quem faz falta no estádio são os adeptos, não os fanáticos. Talvez assim se comece a perceber a essência do futebol espetáculo, que, imagino eu, será um espetáculo de futebol. Talvez assim até eu passe a ter um clube. Aceito sugestões.
a origem do termo desporto prende-se com algo que nos diverte, e não que nos deixa receosos