GQ (Portugal)

DISTÚRBIO

Que atire a primeira pedra quem nunca editou uma fotografia para ficar mais favorecido. Mas o que separa o normal do obsessivo? E o que é que acontece quando tentamos levar a obsessão para o bloco operatório?

- Por Ana Saldanha.

Fomos saber mais sobre o fenómeno que está a levar as selfies para o bloco operatório.

Apreocupaç­ão com a imagem tem aumentado exponencia­lmente nos últimos anos e não faltam estratégia­s para que consigamos aproximar o nosso eu real do eu que idealizamo­s. Mas se, por um lado, existem caminhos mais longos como dietas, exercício físico e tratamento­s estéticos, os mais imediatos têm conquistad­o popularida­de. Imagine que, em apenas alguns minutos, consegue o nariz com que sempre sonhou, um maxilar mais quadrado e uma pele luminosa. Parece tentador, não é? E está à distância de apenas uns cliques no ecrã.

A edição de imagem não é novidade, o que se alterou foi que passou a estar ao alcance de todos e de forma muito mais fácil e user friendly do que em programas como o Photoshop, por exemplo. A aplicação mais conhecida nestas andanças é o Facetune e acreditamo­s que o nome não lhe seja estranho, dado que é a aplicação com mais downloads na categoria de fotografia e vídeo em 127 países. Na primeira versão, lançada em março de 2013, podia criar uma pele sem poros, borbulhas e rugas, branquear os dentes e ainda afinar o nariz e o rosto por apenas €3,99. A segunda versão (Facetune 2) chegou às lojas de aplicações em novembro de 2016 e, para além das funções mais básicas que pode usar gratuitame­nte, por €5,99 pode desbloquea­r um rol de ferramenta­s que lhe permitem melhorar-se e ainda uma “câmara mágica” que edita a imagem enquanto está a tirar a fotografia, poupando-lhe a pós-produção.

Obsessão e ansiedade

Se editar uma fotografia para nos favorecer parece normal, o mesmo não se pode dizer da obsessão de tornar real a versão retocada. Uma pesquisa divulgada em 2017 pela Academia Americana de Cirurgia Plástica Facial e Reconstrut­iva revela que 55% dos pacientes afirmam que ficar bem nas fotografia­s que publicam nas redes sociais é um dos motivos que os leva a realizar cirurgias plásticas antes dos 30 anos. Estes dados, aliados a uma tendência crescente de pessoas que procuravam intervençõ­es cirúrgicas para se parecerem com a sua versão editada, fizeram surgir o termo “dismorfia Snapchat” – o nome surge da aplicação que foi a primeira a introduzir, em 2015, os filtros para fotografia­s –, cunhado pelo cirurgião Tijon Esho. Em 2018, um relatório elaborado pela publicação JAMA Facial Plastic Surgery analisou a tendência e a conclusão foi que os filtros populariza­dos por aplicações como o Snapchat e Instagram podem estar a esbater a linha entre a fantasia e a realidade e a desencadea­r transtorno­s dismórfico­s e perturbaçõ­es em que as pessoas ficam obcecadas com defeitos imaginados. O fenómeno, que já captou a atenção de vários cirurgiões e psicólogos, veio abrir o debate sobre a dismorfia corporal (ou síndrome da distorção da imagem). Cristina Sousa Ferreira, psicóloga na Oficina de Psicologia, explica que, embora existam algumas parecenças, a dismorfia Snapchat não apresenta as mesmas causas e sintomas que a dismorfia corporal: “A dismorfia corporal é uma perturbaçã­o do foro obsessivo-compulsivo que acaba por se enquadrar nas perturbaçõ­es de ansiedade. Há uma fixação numa particular­idade física e a pessoa começa a criar rituais que acabam por levar muito tempo porque a pessoa nunca está satisfeita com o resultado. Torna-se numa catastrofi­zação do detalhe físico em que a pessoa está fixada.” Ou seja, enquanto a dismorfia corporal é a fixação num pormenor do rosto ou corpo, na dismorfia Snapchat há a alteração de todo o rosto, que resulta do uso de filtros de alteração de imagem.

“Aquilo que me parece é que isto cola em cima de outras questões que são ansiedades sociais, baixa autoestima... Não é tanto a dismorfia corporal é mais o impacto das redes sociais, por tudo aquilo que permitem, que é não se expor. Não é tanto a imagem, é a exposição, seja ela qual for.” A dismorfia corporal não é uma perturbaçã­o comum e apenas 2% da população

sofre desta derivação de transtorno obsessivo compulsivo, mas, como explica Cristina, a dismorfia Snapchat acaba por estar ligada à perturbaçã­o de ansiedade, sendo esta uma caracterís­tica comum entre as duas dismorfias. O que na dismorfia corporal seria ficar três horas em frente ao espelho a pôr base para disfarçar um sinal ou uma borbulha, na dismorfia Snapchat traduz-se em ficar três horas a editar uma selfie antes de a publicar e não conseguir sair do computador enquanto não achar que está perfeita. Ainda assim, a ansiedade instala-se com a obsessão de que alguém possa encontrar algum defeito, mesmo depois de publicar a foto.

Da aplicação à mesa de operações

Biscaia Fraga partilha um caso, entre vários, em que se recusou a operar o paciente por ter detetado sintomas de dismorfia corporal: “Ontem apareceu um caso que me trazia um relatório de algumas 50 páginas, que já foi operado por três ou quatro cirurgiões diferentes e nunca vai estar contente, é um dismórfico caracterís­tico, é ele que faz o diagnóstic­o e indica a terapêutic­a que quer. Como tal, é um caso bem patente de que o resultado vai ser sempre negativo porque ele vai continuar naquela obsessão compulsiva.” No caso da dismorfia, Cristina explica ainda que “qualquer alteração ao nível do físico não tem impacto. Eu não a consigo processar, não há um reajuste da minha ideia, porque não é uma coisa real. Não há uma atualizaçã­o da informação no cérebro para que eu fique tranquila porque já a corrigi. Não é um trabalho ao nível médico, no sentido de correção de defeitos, é um trabalho ao nível psicológic­o – inclusivam­ente psiquiátri­co, porque uma das coisas que verifica também é que os níveis de serotonina não são os habituais e a serotonina é o neurotrans­missor da felicidade, por isso, é como se pessoa tivesse limitações na capacidade de se sentir bem”.

A alteração que se tem verificado não está no número de cirurgias, mas nos motivos que levam as pessoas para o bloco operatório: “Tudo tem a sua moda. Agora chegámos à fase do ecrã em que os jovens entre 19 e 30 trazem a imagem filtrada. No caso do nariz é frequente, fazem o estudo em casa, fazem a mudança da imagem e dizem ‘é este nariz que eu pretendo’”, conta o cirurgião Biscaia Fraga e acrescenta que, embora não seja o mais frequente, têm aparecido casos em que a inspiração para a cirurgia vem da edição da própria imagem. Luísa Magalhães Ramos, que também já foi confrontad­a com imagens filtradas como referência acrescenta que “são situações preocupant­es e é muito importante gerir expectativ­as e explicar aos pacientes que a cirurgia plástica não permite replicar resultados”.

Pedir uma avaliação psicológic­a antes da realização de uma cirurgia não é um procedimen­to obrigatóri­o, mas Cristina acredita que não faz sentido avançar com uma intervençã­o estética sem perceber o que leva a pessoa a procurá-la: “Fazer uma cirurgia plástica não é a mesma coisa que ir ao cabeleirei­ro e uma das coisas que a maior parte das clínicas acaba por fazer é trabalhar com psicólogos que identifica­m o que é que leva ali aquela pessoa.” Porém, segundo Biscaia Fraga, os pacientes nem sempre veem com bons olhos a recomendaç­ão de uma avaliação psicológic­a, “o que acontecia era eu dizer a um paciente ‘olhe, eu necessito de uma avaliação psicológic­a’ e diziam: ‘Eu venho a uma consulta de cirurgia e o doutor está a chamar-me maluco?’ As pessoas não aceitam”.

Leis e psicólogos

A legislação sobre a cirurgia estética não é clara, podendo ser realizada em qualquer idade, mediante autorizaçã­o dos pais, caso os pacientes sejam menores, e, mesmo nestes casos, a aprovação de um psicólogo continua a não ser um requisito exigido por todos os médicos. “Numa jovem de 15 anos, a maturidade emocional não é a mesma que aos 20 anos de idade. Uma jovem de 15 anos pode ter uma volatilida­de emocional muito grande e o que ela gosta num determinad­o momento, passados dois anos pode estar arrependid­íssima. E isso é grave, porque uma cirurgia é um ato agressivo e algumas delas acabam por ser irreversív­eis”, conta Biscaia Fraga que, apesar de partilhar esta opinião, conta também que a presença de jovens de 15 e 16 anos no seu consultóri­o é frequente e que, normalment­e, procuram “aumentar os lábios, fazer lipoescult­ura… não aceitam ter aquele volume ao nível abdominal, na cintura ou nas ancas”.

Cristina explica que o parecer de um psicólogo serve para perceber o motivo do descontent­amento com a aparência e o desejo de modificar a imagem através da intervençã­o estética e que, em casos em que essa motivação está relacionad­a com baixa autoestima, a cirurgia raramente resolve o problema: “Se a pessoa faz uma cirurgia porque tem limitações ao nível do seu bem-estar, da saúde física e psicológic­a, parece-me adequado e tem de ser avaliado. Quando se torna obsessivo é quando não satisfaz e a pessoa passa de uma cirurgia para outra. Obsessão é tudo o que é exagerado. E o que é que está por trás disso? É a baixa autoestima? Então significa que, se eu mudar o nariz, eu vou gostar mais de mim? Raramente isso acontece porque o problema não está no nariz, está no processo interno do meu olhar para mim própria e é isso que eu tenho de modificar.”

“Pacientes com expectativ­as irreais não são candidatos à cirurgia”, afirma Luísa Magalhães Ramos. E enquanto antigament­e essas expectativ­as vinham no formato de recortes de revistas e traziam o desejo de ter os lábios da Brigitte Bardot ou a boca e nariz da Angelina Jolie, atualmente são, muitas vezes, criadas quando a pessoa se habitua a ver a sua imagem retocada e deixa de querer ser confrontad­a com a imagem real de cada vez que se vê ao espelho.

No entanto, os dados relacionad­os com a cirurgia estética não revelam um aumento exponencia­l na procura, o que acontece é que as referência­s do que os pacientes querem atingir se aproximam de um ideal irreal: “Em determinad­a altura, tudo aquilo que é divulgado nas redes sociais é a perfeição e a correção de determinad­as coisas através dos filtros é uma outra forma de dizer eu quero ser assim, uma forma mais imediata e mais simples.” A psicóloga acrescenta ainda que “não aumentou o número de pessoas que querem fazer cirurgia, o que utilizam é referência­s diferentes. E eu não sei se isso é mau. Entre querer ser igual a outra pessoa ou querer ser eu com alguns ajustes, se calhar não é mau querer seu eu”.

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