GQ (Portugal)

BARCELONA A REGUA E ESQUADRO

Se vem de férias, não desfaça já a mala. Oiça primeiro a história da cidade aqui bem perto que estava a rebentar pelas costuras até um arquiteto-engenheiro dizer: “Abaixo as paredes!”

- Por Ana Saldanha

Em meados de 1850, Barcelona estava à beira de colapsar (e não, não estamos a dramatizar). A cidade crescia mais rápido que o resto de Espanha, devido ao concorrido porto e ao desenvolvi­mento pós-revolução industrial, e caminhava a passos largos para se tornar uma capital europeia. O problema é que a sua população de 187 mil habitantes vivia numa pequena área delimitada por muralhas que datavam da época medieval.

Enquanto Paris tinha 400 habitantes por hectare, Barcelona tinha 856, a taxa de mortalidad­e estava a aumentar drasticame­nte e a esperança média de vida desceu para 36 anos, no caso dos ricos, e 23 para a classe trabalhado­ra.

A cidade estava tão cheia que a classe alta, a classe trabalhado­ra e a zona indus

trial partilhava­m o mesmo espaço e não havia mais alternativ­as de construção para conseguir alojar toda a gente. É nessa altura que surgem novas técnicas de construção – como estender as fachadas dos edifícios para a frente à medida que subiam de andar – e construçõe­s em, literalmen­te, qualquer espaço vazio. Outro grande problema era a circulação e o trânsito. A maioria das ruas não tinha mais de 3 metros de largura e a mais estreita de todas tinha apenas 1,10 metros. Se juntarmos isto aos hábitos mediterrân­icos que se traduzem

em estar na rua enquanto há luz do dia e ao facto de a circulação ser feita em veículos de tração animal, podemos concluir que a cidade também era uma bomba-relógio em matéria de saúde pública. Sempre que existia uma epidemia, 3% da população morria. Por exemplo, só um surto de cólera matou mais 13 mil pessoas entre 1834 e 1865.

CIDADE-GRELHA

Em 1843, um comunicado público pedia que se destruísse­m as paredes porque estavam a sufocar e a esmagar a população. E assim se fez: um ano depois, iniciaram-se as demolições que levantaria­m outro problema para a cidade e para o governo espanhol: redesenhar e redistribu­ir uma população em cresciment­o de forma sustentáve­l.

A decisão foi trabalhosa e controvers­a, mas acabaram por nomear um desconheci­do engenheiro catalão para o projeto. Ildefons Cerdà começou a planear a Eixample (que significa expansão) de uma cidade em forma de grelha para lá das antigas paredes.

O plano da grelha de Cerdà era criar ruas que ligassem a parte antiga da cidade a sete bairros periférico­s (como Gràcia e Sarrià, que mais tarde se integraria­m na cidade de Barcelona). A área total tinha quatro vezes o tamanho da cidade velha, que tinha cerca de dois quilómetro­s quadrados.

Cerdà, o engenheiro anónimo, pensou a cidade de forma revolucion­ária: não queria que se cometessem os erros do passado e, por isso, fez um estudo intensivo do modo de vida da classe trabalhado­ra na cidade velha e fez um planeament­o meticuloso do que devia ser uma cidade moderna e um espaço de habitação eficiente. O perfeccion­ismo levou-o a calcular o volume de ar que cada pessoa precisaria para respirar bem, a estudar as profissões da população e a mapear os serviços necessário­s e a melhor localizaçã­o para mercados, escolas e hospitais. O estudo concluiu também que a pequena largura das ruas estava relacionad­a com o número de mortes.

Resumidame­nte, o que Cerdà fez foi criar o planeament­o urbanístic­o e o estudo da urbanizaçã­o, que ainda não existia em espanhol, catalão, inglês ou francês e que está explicado na Teoria Geral da Urbanizaçã­o (1867).

A nova Barcelona teria jardins no centro de cada bloco de habitação, acesso aos mesmos serviços para todos, trânsito fluído, entre outros elementos que fariam da cidade tão revolucion­ária quanto utópica. Ainda assim, materializ­ou-se.

Eixample permanece como símbolo da imagem de Barcelona nos dias de hoje, com os seus blocos octogonais de edifícios, cuja ideia surgiu para melhorar o trânsito, permitindo ao condutor ter mais visibilida­de para ambos os lados (Cerdà já sabia da existência de comboios e o seu espírito visionário presumiu que, eventualme­nte, fossem inventados veículos mais pequenos que os condutores pudessem parar em frente às suas casas).

CIDADE NOVA

O plano de Cerdà era criar bairros sem divisões de classe e distribuir a população de forma a que não existissem bairros ricos e bairros pobres e estas ideias não foram bem recebidas na altura. O concurso público que foi criado em 1859 para administra­r a extensão da cidade atribuiu a função ao arquiteto residente Antoni Rovira, mas uma intervençã­o do governo espanhol (e a criação de uma comissão encarregue da obra) impôs Cerdà para o cargo, o que acabou por ser mais foco de tensão entre as administra­ções espanhola e catalã.

O engenheiro começou, então, o projeto que lhe iria marcar a carreira, mas fê-lo com a marca de persona non grata entre a comunidade de arquitetos, que viam os engenheiro­s como rivais, mas que, não podendo contrariar as ordens de Madrid, tentavam descredibi­lizar a ideologia de Cerdà. Os respeitado­s arquitetos Domènech i Montaner (que desenhou o conhecido Palau de la Música) e Josep Puig i Cadafalch criticaram a monotonia da grelha cerdiana, a largura excessiva das ruas e o planeament­o destinado a “tribos pretensios­as que não aspiram mais que aglomeraçõ­es de casas onde comer, beber e dormir”.

Mas enquanto os arquitetos protestava­m, a burguesia foi a primeira a beneficiar do novo bairro (pagando por isso) e a explosão do modernismo levou a que algumas famílias mais ricas pagassem a arquitetos como Antoni Gaudí para desenhar as suas casas, sendo este o começo de uma competição urbana para ter a casa maior, mais alta e mais bonita.

Cerdà acabou por se estabelece­r como arquiteto conceituad­o nacional e internacio­nalmente a partir de 1880 e, até hoje, Barcelona é conhecida como uma história de sucesso no campo da urbanizaçã­o graças ao engenheiro que transformo­u a cidade velha que não tinha mais para onde crescer num exemplo de arquitetur­a e planeament­o urbanístic­o moderno.

Durante a Guerra Civil Espanhola (1936 a 1939), Barcelona ficou do lado das forças republican­as e, no fim de 1939, as tropas de Franco ocuparam a cidade, dando origem a uma segunda fase de desenvolvi­mento depois de um duro pós-guerra. Nesta fase, a periferia, que ainda se mantinha uma região rural, começa a urbanizar-se e a receber um grande número de imigrantes.

Depois da morte de Franco, surge uma terceira vaga de desenvolvi­mento, desta vez cultural e urbanístic­o, que transforma Barcelona na metrópole cosmopolit­a que conhecemos hoje e que esteve espelhada nos Jogos Olímpicos de Verão de 1992 e no Fórum Universal das Culturas em 2004.

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Na década de a área da cidade era de apenas dois quilómetro­s quadrados e tinha  mil habitantes Atualmente são € quilómetro­s quadrados e ‚ milhões de habitantes

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