GQ (Portugal)

DO LADO DA ÁGUA

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

Ir de férias é bom. Voltar de férias é bom também, isto se tivermos em conta que no saco da temporada cabe um livro só. Ou dois, com sorte. Voltar a casa, das férias, implica entre outras coisas encarar de novo a estante e as aleatórias possibilid­ades de uma estante. Mas ir de férias é bom para a maioria das pessoas e, claro, para mim também é bom. Mais ainda se for no Verão já que aí a verdade das férias implica habitualme­nte mergulhos, o corpo infiltrado de sal desde o levantar até ao cair do dia, noites longas, janelas abertas. Para quem mora na cidade implica ainda o silenciar das escavadora­s e das buzinas, concede espaço audível aos pássaros, ao vento nas plantas e nas igrejas. Nestas férias entrei por mais de uma vez em igrejas. Costumo passar um bocado de tempo nos templos quando estou em viagem porque me parece fascinante o mistério do cheiro da fé. Há um odor que fica da devoção nas paredes, e ele repete-se seja em que aldeia for, seja em que país for, seja em que credo for. Não sei se isso terá a ver com o hálito dos deuses ou com o aroma forte dos cabelos dos crentes. Pode ter a ver com a força do tal vento que atravessa as plantas e os edifícios de contemplaç­ão. Numa das igrejas em que entrei nestas férias podia ouvir-se, logo de manhã, uma golfada italiana. Foi pelo menos isso em que pensei quando estava ali sozinha na capela algarvia: “este vento italiano”. Aparenteme­nte o pensamento era errado, já que o santuário assentava exatamente na linha de fronteira entre Portugal e Espanha. Itália, já se sabe, fica uns quantos marcos à frente. Por sorte as aparências não afetam os pensamento­s, muito menos a imaginação. Por sorte a imaginação permanece e deixa nódoas na roupa, então para mim Castro Marim terá sempre um quê de siciliano. Voltar de férias é bom por isto também: em casa o tempo volta ao tempo habitual, e sobre o manto quotidiano eu posso agora alinhar as peças da viagem. Há conchas sobre ele. Vestígios antigos de salicórnia. O retrato mental de uma velha estação de comboios, ainda em funcioname­nto. Aquele templo onde havia

vento e plantas. Uma baliza sem rede abandonada ao deus-dará e à passagem dos silencioso­s homens atléticos. E por falar em atletismo, daqui posso ver também ainda aquele desporto lento do velho apanhador de amêijoas na ria Formosa. Perto dele passam o dia inteiro os barqueiros, uns vagarosos, outros jovialment­e acelerados. São razias celestiais. Na cauda dessas razias há ainda os cavalos selvagens, e eles alimentam-se de erva doce.

Ir de férias é bom e nas férias eu não penso nem um pouco na roupa que vou vestir, na forma como deixo cair o cabelo, no gesto de estender a mão na direção do copo de cerveja. Ao voltar a casa reparo que afinal me vesti sempre de azul. Que o cabelo recebeu a forma atlântica que está na terra desde o tempo de Aquiles. Que cerveja é em resumo água e cereal, portanto é claro que o seu brilho atrai os nossos corpos quando os nossos corpos estão mais humanos. Fui de férias e afinal nas férias eu fui o nítido fóssil que é a matriz de todos nós. Agora que estou em casa e olho em volta, vejo que tudo ficou no seu lugar – salvo aqueles mínimos movimentos que as coisas fazem quando são deixadas em paz, tudo permaneceu quieto. A cabeça de gesso do menino ainda está aqui e isso alegra-me. O manjericão desfaleceu um pouco, mas com água e sopro humano logo levantou as folhas. O azeite continua à disposição das manhãs. E os livros, todos eles, permanecem no seu caótico e vivo alinhament­o. Abri o primeiro e ele cumpriu a sua função: falou do mesmo mar que frequentei, referiu as alfarrobei­ras que nas férias sempre estiveram presentes, sussurrou até a sombra das palmeiras na areia e a forma como o vento bate nelas. Tudo cumpriu o seu desenho previsto.

É bom ir de férias, é bom voltar a casa. Hoje o ruído das escavadora­s permaneceu inaudível e em tudo o que vi na cidade estava ainda a forma dos ciclistas que, corajosos, atravessam a estrada de terra algarvia. Quanto ao livro que viajou comigo para sul e que agora voltou ao centro, acho que ainda esta manhã ele me agradeceu a viagem. Falou-me do sopro beduíno que sempre ronda a nossa costa e a nossa memória, e do quanto temos a aprender com ele. O mesmo que o livro me explicou na praia e nas aldeias fronteiriç­as, ele me explica agora. Do centro da poeira e das conchas de ostra ele me diz: “Como são crianças, fala-lhes de batalhas e de reis, de cavalos, de diabos, de elefantes e de anjos, mas não deixes de lhes falar de amor e de coisas semelhante­s.”*

*Citação retirada do livro Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, de Mathias Énard, que o autor francês já havia retirado do prefácio de Rudyard Kipling ao seu livro de histórias Life’s Handicap.

O TEMPO VOLTA AO TEMPO HABITUAL, E SOBRE O MANTO QUOTIDIANO EU POSSO AGORA ALINHAR AS PEÇAS DA VIAGEM

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