GQ (Portugal)

A DESMATERIA­LIZAÇÃO DO DINHEIRO

- NO TEMPO DA PÓS-VERDADE JOSÉ COUTO NOGUEIRA *

OFacebook está a tentar introduzir um novo meio de pagamento internacio­nal chamado Libra. Não é uma prática nova, mas se for alargada à escala de uma rede com 2,38 mil milhões de utilizador­es, representa efectivame­nte o desapareci­mento do dinheiro físico, em metal, papel ou plástico.

Vamos por partes. O dinheiro, na sua forma mais concreta, é uma quantidade de ouro. Em pepitas, e depois em moedas e barras. (Em certas épocas e civilizaçõ­es, usaram-se outros materiais, mas vamos simplifica­r, porque a lógica do sistema é sempre a mesma.) Na segunda fase, digamos assim, passa a ser um bocado de papel que representa o ouro: notas bancárias, notas de crédito, etc.: documentos que valem como o metal. Num momento fundamenta­l para a economia, as notas passam a ter o que se chama “circulação forçada”, ou seja, valem o ouro, mas não podem ser trocadas por ouro. A partir daí, os estados podem “fabricar dinheiro”, isto é, fazer notas sem ter o ouro correspond­ente.

Na terceira fase, as notas em papel e os cheques são substituíd­os por plástico: o cartão de crédito, que permite pagar em papel que não existe e representa ouro que não está em parte nenhuma. Na Coreia do Sul, por exemplo, 86% dos pagamentos não envolvem dinheiro físico. Situações semelhante­s acontecem em países tão diferentes como o Japão ou o Reino Unido. Nem sempre as coisas correm bem: na Índia, a tentativa de “plastifica­r” o dinheiro, eliminando as notas mais altas, encontrou grande resistênci­a, e na Suécia está a pensar-se diminuir a sua utilização. Contudo a tendência parece irreversív­el. Em 2010 já havia mais de duas mil cidades nos Estados Unidos sem uma agência bancária.

Paralelame­nte, surgiram – para quem quer saber, na China, no século IX – meios

de pagamento por compensaçã­o, sem moeda. É o caso do sistema Hawala, popular entre os muçulmanos, ou o Western Union e Moneygram, ecuménicos, que permitem transferên­cias à distância, entre países, muito usados pelos emigrantes que querem fazer remessas para casa.

A quarta fase, iniciada em 2009 (para escolher uma data de referência) é o dinheiro virtual, ou criptomoed­a, que permite transacçõe­s sem a existência de banco emissor ou autoridade reguladora. São os casos do Bitcoin, o mais conhecido, ou o Peercoin e o Namecoin. A palavra Bitcoin, capitaliza­da, refere-se ao software que produz o bitcoin, não capitaliza­do, a unidade monetária. Até agora, o dinheiro virtual tem tido uma circulação limitada – se bem que da ordem dos milhares de milhões – por questões técnicas, pela desconfian­ça de muitos possíveis utilizador­es, e pela resistênci­a dos sistemas bancários, que não querem ser colocados à margem da sua razão de ser: guardar, transferir e emprestar dinheiro.

É aqui que entra a Libra. O serviço proposto pelo Facebook não é revolucion­ário nem representa uma nova fase da desmateria­lização do dinheiro. O que o poderá tornar muito poderoso é a massa crítica de quase três mil milhões de utilizador­es que, como salienta Elka Looks, a porta-voz de Mark Zuckerberg, nem precisam de ter conta bancária nem cartões de crédito para transferir dinheiro entre quaisquer pontos do planeta. Basta que estejam na plataforma. Assim que a proposta foi tornada pública, como um projecto a entrar em funcioname­nto em 2020, surgiram críticas e reservas. Algumas têm a ver com a péssima reputação que o Facebook adquiriu nos últimos dois anos no que toca à protecção de dados, comerciali­zação de informaçõe­s privadas e descontrol­o de actividade­s nocivas. Quanto a isto, responde a plataforma que não será a única dona da Calibra, a empresa que vai gerir a Libra e terá 100 accionista­s iniciais. Vinte e sete já terão aderido, alguns deles concorrent­es ameaçados pela ideia, como a Visa, Mastercard e Paypal. Os responsáve­is dessas empresas, tal como os órgãos reguladore­s norte-americanos e europeus, mostram-se desconfiad­os e cépticos, mas querem saber mais.

Também o Facebook, quando foi lançado, parecia uma grande ideia para aproximar todas as pessoas de todos os países sem restrições e viu-se depois como esse conceito de felicidade pode ser pervertido de várias maneiras.

No entanto, a experiênci­a mostra que os avanços técnicos, se realmente facilitam a vida das pessoas, são imparáveis. O que não quer dizer que sejam virtuosos, evidenteme­nte.

A EXPERIÊNCI­A MOSTRA QUE OS AVANÇOS TÉCNICOS, SE FACILITAM A VIDA DAS PESSOAS, SÃO IMPARÁVEIS

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