GQ (Portugal)

TEMA DE CAPA

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O BRUNO DO SPORTING

No Sporting, és um protagonis­ta, frequentem­ente o melhor em campo e todo o jogo passa por ti. Na seleção, és muito mais discreto. A que é que se deve esta diferença? No Sporting, praticamen­te jogo como um jogador livre, um número 10 que pode variar da direita para esquerda, vir ao meio, ir buscar a bola atrás, ir buscar a bola à frente, enquanto na seleção jogamos com um meio-campo a três onde eu sou o jogador que joga mais do centro para o lado direito e tenho de ter mais cuidado nessa posição porque, se me desposicio­no demasiado e ficamos sem bola, deixo um buraco muito grande. As pessoas veem o Bruno do Sporting, que este ano marcou muitos golos, e é normal que criem uma expectativ­a muito alta, mas eu estou, se calhar, mais convencido com aquilo que fiz agora na Liga das Nações do que propriamen­te com aquilo que fiz no Sporting. Eu sempre disse, desde o início da época, que sou um jogador mais de agressivid­ade, de recuperar bola, de jogar mais de trás para a frente e no Sporting fui o contrário disso, era um jogador que jogava encostado à linha da frente.

Gostavas de, um dia destes, passar a ocupar um dos lugares no tridente atacante da seleção? Não, gosto mais de jogar no meio-campo. Tenho jogado como médio interior, que sempre foi a minha posição.

Sempre jogaste aí, desde miúdo? Nos meus primeiros anos, até aos juvenis, joguei como central, como lateral-direito, algumas vezes fui jogando a médio, mas quase sempre a central.

O que é que os treinadore­s viam em ti para te porem a central? Não sei ao certo. Sempre fui muito disciplina­do, era um miúdo muito organizado, na altura jogava-se com líbero, eu tinha um central sempre ao meu lado que era mais forte, porque sempre fui muito franzino, mais baixinho, mas fazia muito bem as dobras, dobrava os laterais ou o central que estava à minha frente. Depois, saía muito bem a jogar, raramente dava um chutão para a frente, então os treinadore­s gostavam de ter um jogador assim ali. Até que, quando cheguei aos juvenis, disse que não era aquilo que eu queria, tive a oportunida­de de subir um ano, jogar num escalão acima para o [campeonato] nacional, mas pedi ao treinador para me deixar jogar com os da minha idade porque não queria jogar a central. Sempre tiveste esta veia goleadora? Quando jogava no bairro, sim, era muito goleador, era fácil, era tudo mais pequenino. Desde que comecei a jogar a sério, fui sempre jogador de marcar alguns golos. Não muuuuitos golos, mas alguns, ficava sempre entre os melhores marcadores. Normalment­e, o ponta-de-lança ou um dos extremos eram os melhores marcadores e eu vinha logo atrás. Sempre marquei muito de fora da área. Este aspeto, eu trabalhei muito ao longo dos anos, principalm­ente desde que cheguei a Itália.

Olhando para o nível a que chegaste, podemos dizer que tens um percurso atípico. Não passaste por nenhum dos três grandes nas camadas jovens, por exemplo. Esses clubes nunca repararam em ti, nessa altura? Houve alguns torneios em que fui referencia­do por alguns clubes, mas nunca nada chegou a ser concretiza­do, até porque na altura eu ainda era muito novo e a minha mãe não queria que eu mudasse de cidade. Já, na altura, ir para o [FC] Porto era, para mim, um constrangi­mento muito grande, tinha de apanhar muitos transporte­s da Maia até ao Dragão e depois a carrinha de lá para o Olival, e depois o trajeto de volta. Mas eu também nunca tive a intenção de sair do Boavista porque, ao nível de condições, o clube só não dava mais porque não podia dar. Apanhei o período mais negro do Boavista.

Nas camadas jovens, o Boavista manteve-se forte ou também foi muito abalado? Sempre se manteve forte. Houve um período, após o Boavista ter descido, em que o Braga e o Guimarães apanharam ali o espaço e ficaram com esse lugar, mas mantivemos o nível de qualidade dos jogadores. Esses dois clubes começaram a ter mais condições do que o Boavista e isso ajuda a chamar os miúdos, porque têm melhores, campos, melhores dormitório­s, e isso levava a que os pais optassem, nessa altura, mais pelo Braga ou pelo Guimarães, mas mesmo assim o Boavista conseguiu manter-se sempre num bom nível.

ARRIVEDERC­I

Como é que tu sais do Boavista para ir para o Novara? A pessoa que é atualmente o meu empresário trabalhava, na altura, para o AC Milan. Ele entrou no Boavista, tinha eu 16 para 17 anos, quando o Boavista fez um acordo de formação com o Milan. Essa pessoa foi chamada para ir ver um jogador referencia­do dos juniores. Ele vai ver o jogo e eu começo a interior direito, depois o meu lateral é expulso e eu passo para lateral-direito, isto tudo na primeira parte. Fiz um jogo muito bom. Ele diz que viu 20 minutos de jogo, que foram aqueles em que eu joguei em todo o lado, e que esses 20 minutos lhe bastaram.

E tu sabias que ele estava lá a assistir ao jogo? Não, eu nem sabia quem ele era, só o conheci depois. Veio falar comigo, “eu vi-te a jogar, vinha ver outro jogador, mas vi-te a ti e quero-te agenciar”, e pronto, tornei-me o primeiro jogador dele. Disse-me que tinha bons contactos em Itália, se bem que, depois percebi, as equipas italianas eram, na altura, muito mesquinhas com tudo o que vinha de fora. Agora é mais fácil, já se aceitam os jogadores mesmo quando os diretores não os conhecem. Mas eu na altura tive cá um diretor a ver uma semana de treinos – tudo sem o meu conhecimen­to, eles não queriam que eu soubesse... aliás, ele trouxe o diretor para me ver ainda antes de me agenciar. Mas teve de vir o diretor e depois um monte de gente para me ver treinar e para me ver jogar. Treinar para mim nunca foi um problema, sempre tive muita alegria no treino. Eles ficaram com muito boa imagem minha. É preciso perceber que a imagem do jogador português é a de um jogador técnico, talentoso, mas que não gosta muito de trabalhar. Essa imagem tem vindo a mudar um pouco, também pelo que o Cristiano [Ronaldo] tem feito. E, também pelo que o Cristiano fez, creio que a mentalidad­e do jogador português mudou – a mentalidad­e dos jogadores, dos clubes, mudou, agora veem o trabalho como algo mais necessário. Ao fim de duas semanas de treino com dois jogos, acabei por ser contratado para o Novara.

A vida correu-te bem em Itália. Quando é que começaste a sentir que as pessoas te estavam a dar atenção? A minha explosão no Novara foi muito rápida, pelo que surgiram logo várias ofertas concretas de outros clubes maiores. Falamos de cinco ou seis equipas da série A. Optei, na altura, pela Udinese. Foi o clube que mais se interessou e que mais força fez para que eu me juntasse a eles. E era o clube que estava disposto a pagar mais ao Novara: pagou 2,5 milhões e meio por metade do meu passe e compraram os restantes 50% quando eu já lá estava a jogar. Dar 5 milhões por um desconheci­do de 18 anos foi surpreende­nte.

E porquê a mudança posterior para a Sampdoria? Chegou ali um momento... Eu estive três anos na Udinese. No primeiro ano, estive muito bem. Ninguém estava à espera que eu apresentas­se aquela qualidade logo naquele ano. Nesse primeiro ano, surgiu a oportunida­de de sair para clubes de maior dimensão, mas a Udinese pedia 15 milhões de euros. Era unânime que o meu ano tinha sido muito bom, mas era preciso confirmar no segundo ano para que esses valores se concretiza­ssem. Essa confirmaçã­o foi mais difícil, entrou um novo treinador que trouxe jogadores da confiança dele e eu tive de andar a batalhar. Isto acabou por atrasar um bocadinho a minha explosão definitiva. No terceiro ano, tivemos outro treinador, que acabou por ser despedido, e a seguir veio outro treinador... Mesmo assim, consegui fazer um bom ano, mas achei que estava na hora de uma mudança. Tive possibilid­ade de me mudar para outros clubes, inclusive para Portugal, mas esses clubes não estavam dispostos a pagar aquilo que a Udinese pedia – a clubes de maiores dimensões, pedia 15 milhões, enquanto à Sampdoria pediu 7. Senti que era o momento de sair e senti que era desejado pela Sampdoria. Era uma equipa com mais história e com outra visibilida­de. E deram-me a responsabi­lidade de jogar com a camisola 10, que foi do [Roberto] Mancini, lenda do clube.

NO CLUBE DE

BRUNO DE CARVALHO

E como é que aconteceu o negócio com o Sporting? O Bruno de Carvalho chegou lá a Génova para te comprar? Não. Eu até estava nos sub-21, na altura, no Europeu na Polónia, começam a sair notícias e eu recebo mensagens de dois dos meus melhores amigos, que são fanáticos pelo Sporting, malucos pelo clube. Recebo estas mensagens logo de manhã cedo com as notícias dos jornais. Na capa do jornal, “Bruno Fernandes preparado para assinar por cinco épocas” e eu nem sabia que o Sporting estava interessad­o em mim. Até trazia uma montagem comigo a treinar com uma camisola do Sporting vestida. E eu “mas o que é que se passa aqui, que eu não sei de nada e já estou praticamen­te vendido ao Sporting?” Liguei para o meu empresário, para esclarecer, porque se sai assim num jornal pode ser por vários motivos, podia até ser outro clube, que me quisesse comprar, a querer “plantar” a notícia para depois fazer o negócio e se noticiar “clube xis desvia Bruno Fernandes do Sporting”. Ele confirmou que havia um fundo de verdade, havia de facto interesse, mas que faltava definir todos os contornos, ainda.

Como é que uma informação destas sai tão depressa cá para fora? Isto são os clubes, que têm de fazer o marketing deles. Isto é o que eu acho. Para as transferên­cias terem algum impacto juntos dos adeptos, é preciso esta espécie de burburinho de revista cor-de-rosa.

Temos de falar de Bruno de Carvalho. Como era trabalhar com uma pessoa como ele? Sempre tive uma boa relação com o presidente. Pessoalmen­te, nunca tive problemas. Agora, a única conversa que tive com ele, além daquelas conversas normais, foi no dia em que perdemos com o Atlético de Madrid e em que ele faz aquele post no Facebook a atacar certos jogadores, expondo ainda mais os erros desses jogadores, que já iam ser julgados por milhares de pessoas. Gerou-se um grande conflito, o presidente não falava com os capitães, os capitães não podiam falar com o presidente e eu falei com os capitães. Isto eram situações que foram crescendo, porque já no tempo do Adrien, que era capitão, havia este tipo de problemas. A própria transferên­cia do Adrien. Não estou a dizer que a culpa foi do presidente, porque não sei. O que eu sei é que quem saiu prejudicad­o naquela situação foi o Adrien. Conheces mais situações de conflito? Sei que houve mais situações, sim, sei pelo Adrien e pelos outros capitães. Ele mandava as bocas aos capitães, mandava-lhes mensagens. No dia em que acontece isso com o Atlético de Madrid, foi marcada uma reunião que o presidente diz que não foi marcada. Mas nós fizemos um pedido de reunião para haver um pedido de desculpas do presidente aos jogadores visados no post dele. Bruno de Carvalho não quis fazer a reunião e depois veio dizer que quis, só que o Rui Patrício é que não quis... andámos no diz-que-disse até, finalmente, haver a tal reunião. Eu falei com o presidente e disse-lhe que, se ele tivesse ido ao balneário e mesmo que nos insultasse e desfizesse o nosso trabalho, nós iríamos levar aquilo tranquilam­ente, porque era ali dentro. As coisas resolvem-se dentro do balneário. Se criamos espalhafat­o para fora, demonstram­os desunião, que foi o que acabou por se verificar. Ainda lhe disse “sabe o que é que todos os presidente­s, treinadore­s e jogadores querem? Um grupo unido. O que você conseguiu foi que o grupo se unisse, mas contra si”. (...)

Houve uma coisa de que não gostei mesmo, que foi ele ter vindo dizer que tínhamos falado [a seguir ao episódio da invasão da Academia de Alcochete, quando adeptos do Sporting agrediram vários elementos da equipa] e que eu estava muito triste. Ele não disse sobre o que é que falámos realmente. O que eu lhe disse foi que, se era para aquilo, eu preferia não jogar à bola e ir fazer outra coisa qualquer. Disse-lhe que tinha uma filha, uma família, e que não estava disposto a correr aquele tipo de riscos.

Nesse dia, sentiste mesmo medo? Senti. Nesse dia, se não fosse a polícia [ter chegado e recolhido depoimento­s], eu tinha-me ido logo embora. Eu vesti-me e disse “foi um prazer estar convosco”, saí e, quando estou a deixar as instalaçõe­s, chega um carro da polícia que me para e me diz que tenho de prestar declaraçõe­s e que não podia sair. Mas até já tinha ligado para a minha mulher a dizer-lhe para arranjar

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