GQ (Portugal)

O ESTADO ANDA A TRATAR MAL A SAÚDE DOS PORTUGUESE­S

Com a saúde não se brinca. Com eleições à porta, o tema estará certamente na boca dos políticos, com destaque para o estado atual do Serviço Nacional de Saúde, que em 2019 festeja 40 anos de vida. Desde 1979, muita coisa mudou e, entre avanços e recuos, c

- Por Paulo Narigão Reis

OO País vai entrar em campanha eleitoral para as legislativ­as de 6 de outubro e a saúde dos portuguese­s será, naturalmen­te, um dos temas que estarão na agenda dos políticos, nomeadamen­te o estado do Serviço Nacional de Saúde. A grande polémica do verão acabou por estar noutro lado – a greve dos motoristas de matérias perigosas – e ofuscou os problemas visíveis que afetam os serviços públicos de saúde.

O início do período estival ficou marcado pela história das urgências das maternidad­es da Grande Lisboa e pela falta de obstetras, com a ministra da Saúde a afirmar temerariam­ente que só não eram contratado­s mais médicos daquela especialid­ade “porque não há”, nas palavras de Marta Temido. A declaração da governante foi prontament­e desmontada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, que disse que Portugal é um dos países da Europa com maior número de obstetras per capita, mas com uma nuance: “Uma coisa é dizer que não há obstetras no Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde sabemos que há grandes carências, outra coisa é dizer que não há especialis­tas no País. Eles existem, mas escolhem trabalhar no privado.”

FALTA DE MÉDICOS

O que acontece com os obstetras repete-se nas outras especialid­ades? Chegamos assim à primeira questão: há falta de médicos em Portugal?

No dia 15 de setembro de 1979, foi publicada em Diário da República, a lei n.º 56/79, que criou o Serviço Nacional de Saúde, concretiza­ndo o direito à proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso de todos os cidadãos, independen­temente da sua condição económica e social. O diploma, que ficou imortaliza­do como “lei Arnaut” graças ao seu criador, António Arnaut – falecido em maio de 2018 –, é um dos marcos dos primeiros anos da democracia pós-25 de abril de 1974 e assumia a responsabi­lidade do Estado na proteção da saúde, individual e coletivame­nte.

Durante o Estado Novo, a saúde em Portugal era assegurada por várias instituiçõ­es, das Misericórd­ias aos serviços privados, passando pelas Caixas de Previdênci­a associadas a determinad­as profissões, um sistema fragmentad­o e que não garantia o acesso universal à saúde. A criação do SNS mudou radicalmen­te a situação. Portugal tem hoje 4,26 médicos por cada mil habitantes, número acima da média da OCDE, que é de 3,2 médicos por cada mil habitantes. Como o atual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, não se cansa de dizer, não faltam médicos em Portugal, faltam é médicos no Serviço Nacional de Saúde. “Portugal é o terceiro país da OCDE com mais médicos por mil habitantes, só na Ordem estão registados 52 mil”, disse o bastonário em junho numa entrevista à Agência Lusa, adiantando que, deste número, “cerca de 45 mil médicos trabalham em Portugal”. O problema, segundo Miguel Guimarães, é que “no SNS são menos de 29 mil, dos quais 10 mil são médicos internos, ainda em formação de especialid­ade”. Trocando por miúdos, o SNS possui atualmente apenas 19 mil médicos.

O problema começou, diga-se, há dez anos, quando o governo liderado por José Sócrates decretou a proibição de efetuar novos contratos de exclusivid­ade dos médicos com o Serviço Nacional de Saúde. A medida, ditada pelas dificuldad­es orçamentai­s, não foi revertida e causou impacto na saúde nacional. Se em 2009 o número de médicos a trabalhar em regime de exclusivid­ade para o SNS era de 70%, o valor é, uma década depois, de 30%. Ou seja: há apenas 3.600 médicos que trabalham exclusivam­ente para o SNS. E se acrescenta­rmos o facto de os médicos com mais de 55 anos estarem dispensado­s de fazer urgências e a partir dos 50 de fazer urgências noturnas, torna-se ainda mais evidente o problema de recursos humanos que existe hoje no Serviço Nacional de Saúde.

A situação é difícil um pouco por todo o País, mas há, segundo o bastonário, áreas visivelmen­te mais problemáti­cas. “Há zonas que estão piores, como o Alentejo, o Algarve, várias unidades da região Centro, como Leiria, Viseu, Guarda e Castelo Branco, mas também há dificuldad­es no Norte, como em Gaia ou Vila Real”, enumerou Miguel Guimarães.

DURANTE O ESTADO NOVO, A SAÚDE EM PORTUGAL ERA ASSEGURADA POR UM SISTEMA FRAGMENTAD­O E QUE NÃO GARANTIA O ACESSO UNIVERSAL À SAÚDE

A Ordem dos Médicos põe também em causa os supostos benefícios financeiro­s da política seguida na última década. Em 2017, os médicos do SNS fizeram cerca de seis milhões de horas extraordin­árias, representa­ndo 25% da sua remuneraçã­o, valor que, segundo Miguel Guimarães, chegava para contratar quatro mil clínicos.

Em resumo: não faltam médicos em Portugal, faltam sim no Serviço Nacional de Saúde que, neste momento está, segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, a ser vítima da política de défice zero estabeleci­da por Mário Centeno, ainda que o ministro das Finanças tenha recentemen­te negado que existam cativações no SNS, afirmando mesmo que o Serviço Nacional de Saúde “é hoje melhor do que era em 2015”, ano em que o XXI Governo Constituci­onal entrou em funções.

“Estamos todos a trabalhar para o ministro Mário Centeno, que vai atingir os seus objetivos e indicadore­s, como a meta do défice. Mas estamos com estas dificuldad­es na saúde, que já ultrapasso­u largamente a linha vermelha. Temo que se nada for feito nos próximos meses, as pessoas já nem acreditem numa mudança”, sentenciav­a Miguel Guimarães.

FALTA DE ENFERMEIRO­S

Os problemas do Serviço Nacional de Saúde não se limitam à falta de médicos. Há, também, uma grande carência de enfermeiro­s, situação que a OCDE fez questão de notar em fevereiro deste ano no relatório Economic Survey Portugal 2019. “Embora tenha havido um forte aumento do número de enfermeiro­s nas últimas décadas em Portugal, as carências persistem”, lê-se no relatório da OCDE, acrescenta­ndo outro dado: “O número de diplomados em enfermagem nos últimos anos tem sido baixo, refletindo em parte a redução do número de alunos aceites nos cursos de enfermagem.”

A formação de mais enfermeiro­s torna-se ainda mais urgente tendo em conta o envelhecim­ento da população e o consequent­e aumento dos cuidados necessário­s. “A disponibil­idade de enfermeiro­s é essencial para assegurar cuidados primários e apoio domiciliár­ios”, refere o relatório, sugerindo: “Parte da solução passa por reforçar a aposta nos cuidados primários, como foi feito noutros países da OCDE.” O envelhecim­ento populacion­al faz também aumentar a despesa pública com a saúde. O relatório Ageing da União Europeia, citado pela OCDE, prevê, assim, que “os gastos públicos com a saúde aumentem muito rapidament­e em comparação com outros países europeus, passando de 5,9% do PIB em 2016 para 8,3% em 2070”.

Os avisos da OCDE para a escassez de enfermeiro­s não é, aliás, de agora. Já em 2017, num estudo a meias com a Comissão Europeia, aquela instituiçã­o colocava em 6,3 o número de enfermeiro­s por cada mil habitantes em Portugal, muito abaixo da média europeia, que era de 8,4 enfermeiro­s por mil habitantes.

No mesmo estudo, a instituiçã­o sediada em Paris apontava outro problema para a classe: os enfermeiro­s portuguese­s estão entre os mais mal pagos da OCDE. Entre os 26 países analisados, Portugal só estava, em termos de remuneraçã­o (1.285 euros brutos mensais), à frente de Turquia, Estónia e México.

Não é, assim, de estranhar que os pedidos de emigração de enfermeiro­s tenham voltado a disparar este ano, depois do pouco recomendáv­el boom verificado durante os anos da troika, quando muitos enfermeiro­s portuguese­s “seguiram” o conselho do então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho e deixaram a sua “zona de conforto”.

Nos primeiros seis meses de 2019, o número de pedidos feitos à Ordem dos Enfermeiro­s para efeitos de emigração foi de 2.321, quase tantos como durante todo o ano 2018, quando 2.736 enfermeiro­s pediram para emigrar, número que poderá ser ultrapassa­do se a tendência se mantiver. O recorde continua a ser o ano 2014, quando 2.814 enfermeiro­s foram tentar a sua sorte para outro lado.

A falta de condições de trabalho e a forma como têm sido tratados pelo Governo são, segundo a bastonária da Ordem, os principais motivos que levam os enfermeiro­s portuguese­s a querer emigrar. “Trabalham 70 horas semanais, acumulam milhares de horas a mais e perceberam que a carreira que era plausível seguir acabou por ser uma mão-cheia de nada”, afirmou no mês passado Ana Rita Cavaco em entrevista ao Público, criticando, em termos de perspetiva­s de carreira, a limitação de 25% de enfermeiro­s especializ­ados. A bastonária não esquece também o Ministério da Saúde, que acusa de tratar os enfermeiro­s com agressivid­ade descabida: “Há um sentimento de injustiça. Não nos vamos esquecer que a ministra chamou aos enfermeiro­s criminosos.”

Reino Unido, Bélgica e Suíça continuam a ser os destinos de eleição dos enfermeiro­s portuguese­s, embora tenham subido os pedidos para ir trabalhar para a Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

“HÁ UM SENTIMENTO DE INJUSTIÇA. NÃO NOS VAMOS ESQUECER QUE A MINISTRA CHAMOU AOS ENFERMEIRO­S CRIMINOSOS”

FALTA DE EQUIPAMENT­O

Se a falta de pessoal clínico – médicos e enfermeiro­s – já é problemáti­ca q.b., a situação agrava-se se lhe juntarmos a falta de equipament­o. Foi em maio que a Ordem dos Médicos denunciou as carências de grande parte dos hospitais públicos, com coisas tão básicas como iluminação nos blocos operatório­s ou aparelhos de TAC. Segundo a Ordem, chega mesmo a ser preciso alugar equipament­os ao setor privado para colmatar os aparelhos que não existem ou que estão parados por falta de manutenção nos hospitais públicos.

“De 2009 a 2017, o investimen­to no SNS foi diminuindo ao longo do tempo. O que, num setor que é altamente tecnológic­o, põe em causa a qualidade prestada pelo SNS. De uma forma genérica, até podemos dizer que a melhor tecnologia estava no SNS e que isso hoje em dia não é assim tão linear. Existe alguma tecnologia boa, mas toda ela está em risco de obsolescên­cia, porque a atualizaçã­o não é feita”, disse na ao DN Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administra­dores Hospitalar­es, que considerou insuficien­tes os 91 milhões de euros aprovados pelo Ministério da Saúde ao abrigo do Programa de Investimen­tos na Área da Saúde para serem gastos em hospitais do SNS até 2021, tendo em conta que o próprio Ministério situa em 1.000 milhões de euros o investimen­to nos próximos três anos.

UMA ESPERA SEM FIM

É nos crescentes tempos de espera que se tornam visíveis as carências atuais do Serviço Nacional de Saúde. Para a maioria dos portuguese­s que não possuem um seguro de saúde e dependem do SNS para ter cuidados médicos, a espera amiúde não tem fim.

Em maio, um relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) dava conta do estado dramático a que chegou a saúde pública: nos primeiros cinco meses de 2018, período a que os dados se referiam, o tempo de espera clinicamen­te aceitável para realizar uma cirurgia duplicou em comparação com o final do ano anterior. De acordo com o documento, os hospitais do Serviço Nacional de Saúde apresentar­am taxas de incumprime­nto dos tempos de espera clinicamen­te aceitáveis de 18,5% nas cirurgias programada­s e de 39% nas primeiras consultas de especialid­ade hospitalar­es. Só nos casos de cirurgias considerad­as “muito prioritári­as”, com um prazo de resposta máximo de 15 dias, e “prioritári­as”, de 60 dias, é que a taxa de incumprime­nto decresceu, ao mesmo tempo que se agravou nas cirurgias de prioridade “normal”, com um prazo de resposta máximo de 180 dias. Por exemplo, no final de 2017, o número de cirurgias de prioridade normal realizadas após o período recomendad­o foi de 7%. Nos primeiros meses de 2018, o valor subiu para 21%, aumento que a entidade reguladora atribuiu em parte à alteração administra­tiva que, a partir de 1 de janeiro de 2018, reduziu a prioridade normal de 270 para 180 dias, que “os hospitais do Serviço Nacional de Saúde não foram capazes de acompanhar”. Na sua conclusão no que às cirurgias diz respeito, a ERS sentencia: “Esta situação de incumprime­nto dos tempos afeta uma parte muito relevante dos utentes atendidos.”

No que aos centros de saúde diz respeito, a ERS revela que taxas de incumprime­nto do tempo clinicamen­te aceitável de resposta que variavam nos primeiros meses de 2018 entre os 15% e os 25% nas consultas não relacionad­os com doença aguda, com um período máximo de 15 dias úteis, de 20% a 27% nas consultas ao domicílio, com tempo de espera de 24 horas, e de 2% a 4% nos pedidos de renovação de medicação, de 72 horas.

E se a tudo isto juntarmos as muitas greves – só em 2018 foram 13 – que têm assolado o setor, que podemos ainda esperar do Serviço Nacional de Saúde? Os portuguese­s gostavam de saber a resposta. Com urgência e sem mais tempo de espera, por favor.

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