GQ (Portugal)

DESIGN

- Por Sara Andrade, com José Santana. Fotografia de Branislav Simoncik. Styling de Nelly Gonçalves.

Graffiter, fundador de hotel, proprietár­io de discoteca, criativo de toda a espécie. Falámos com André Saraiva.

…que encontrei um graffiter. Spray, spray, spray, um graffiter. Foi na loja do Mister André que encontrei um artista além dos graffiti. Um fundador de hotel, um proprietár­io de discoteca, um self-made man com dedo para parcerias, como a da Mango, um criativo de toda a espécie. Clap, clap, clap, um empreended­or. Foi na loja do Mister André… na verdade, foi nos escritório­s da GQ que encontrámo­s André Saraiva. A. K. A. Mr. A.

Talvez não o conheça pelo nome. Talvez só o conheça pelo seu alter ego, Mr. A, um cartoon de pernas longas que substituiu o seu tag numa altura em que graffiti se resumia, em grande parte, a marcar território com um nome pintado a spray, na parede. “[O Mr. A] apareceu nos meus graffiti mais ou menos no final dos anos 80. Foi em Paris e criei primeiro um esboço num papel, mas a ideia foi que, na altura, eu só graffitava o meu nome nas paredes, todos os graffiters faziam isso, costumavam apenas escrever o seu tag. E eu comecei a pensar como podia descrever-me, mas de uma forma que todos compreende­ssem, sem ser através de texto ou letras. Por isso, decidi usar um desenho, que se tornou o meu nome, o meu alter ego. Desenhava o Mr. A tantas vezes quanto as que escrevia o meu próprio nome”, confessa-nos, numa tarde em setembro, depois de não ter perdido a oportunida­de de marcar território também na nossa redação, imprimindo a personagem de cara redonda, membros longos e cartola, de forma permanente, numa (ou duas) das paredes da LightHouse. Bom, tão permanente quanto um graffito pode ser, pelo menos, porque “uma parte da essência do graffito é a sua efemeridad­e. Desaparece, não foi imaginado para perdurar. A única coisa que acho que vai ficar para sempre ou que pelo menos vai durar mais é a parede de cerâmica que fiz aqui em Lisboa, no Campo de Santa Clara”, explica. A obra, inaugurada em 2016, que hoje ocupa uma área total de mais de mil metros quadrados e 180 metros de compriment­o, envolve o Jardim Botto Machado, junto à Feira da Ladra, e foi das obras que mais tempo lhe levaram a concretiza­r (“ao todo, levou dois anos, algo muito diferente do que estou acostumado, que é a ser muito instintivo, rápido… Este processo foi muito moroso, porque a cerâmica tem de ser cozida duas ou três vezes, por isso demorava semanas até voltar a ter os painéis de volta para poder desenhar sobre eles…”, explica-nos), mas é também das obras de que mais se orgulha, e a mais perene, porque “é a técnica que se usa hoje que mantém a cor por mais tempo. Ao longo da história, a cor vai perdendo a saturação, mas não na cerâmica. E isso é espantoso – por isso dizia que talvez essa seja a minha obra que durará mais tempo”. Ganha também um significad­o especial, porque encerra uma das mais fortes componente­s do graffito, que é o ser acessível a todos – todos podem desfrutar dela: “É algo que vive por si, que vive com o céu e a luz e se fores a diferentes alturas do dia, tem um encanto diferente… é uma obra de arte especial”, não esconde o orgulho. “E adoro que a Feira da Ladra continue verdadeira e continue lá. Há uma senhora que vende só azulejos e que está lá há 30 anos e eu dei-lhe uma parte dos azulejos que fiz para ela vender, para que pudesse continuar a vender.”

É esta ideia de acessibili­dade que também vê nas parcerias que faz como um modo de manter a essência do graffito, mesmo quando se associa a marcas, como é o caso da Mango: além de ser uma das seis personalid­ades (ao lado de Jeanne Damas, Veronika Heilbrunne­r, Pernille Teisbaek, Justin O’Shea e Shuhei Nishiguchi) da campanha para o outono/inverno 2019 da casa, intitulada #BeanIcon, Saraiva volta a colaborar com a etiqueta catalã numa nova coleção-cápsula – a segunda, depois de no ano passado ter colocado a sua assinatura numa linha de T-shirts. Esta será mais abrangente: “Estive verdadeira­mente envolvido [neste processo], houve muita troca de ideias e eles foram super-respeitado­res do meu trabalho artístico e gosto, que é deveras único. Muitas vezes, as marcas querem seguir só a sua própria linha, e a Mango foi muito respeitado­ra e cuidadosa comigo enquanto artista, e com o que queria fazer”, explica, acrescenta­ndo que adora “a Mango e adoro que a Mango me adore e (…) é quase natural, agora, é como trabalhar com amigos meus, e juntamo-nos para lançar uma nova minissérie de roupas que são perfeitas, é quase como se as tivessem feito para mim. (…) Eles fizeram umas camisolas fantástica­s, a sério. Verdadeiro­s clássicos”. Além disso, celebrar este género de joint ventures significa, para ele, manter a liberdade de expressão inerente ao movimento artístico: “Eu já fiz alguns shows em galerias e museus, mas acho sempre que o graffito ou o que eu chamo graffito é o que se faz nas ruas. Assim que vem para dentro de uma galeria, passa a ser outra coisa. Talvez conte um pouco sobre a história do graffito… mas acho que a rua te dá mais liberdade, liberdade para contares a tua história sem te preocupare­s com pagar contas com a venda dos teus quadros. Por isso, escolho onde mostro a minha obra”, começa por explicar, retornando à Mango como exemplo: “No graffito, eu gosto de pôr o meu nome em todo o lado, essa é a essência. Por isso, fazer uma colaboraçã­o com a Mango também é pôr o meu nome em todo o lado – nas T-shirts e camisolas e em tudo o que estão a fazer. E vende-se em todo o mundo, por isso, espalha o nome ainda mais.” Aliás, a primeira obra de arte que adquiriu, “porque é assim que também vejo a arte, foi uma T-shirt do Keith Haring e alguns pins… Essas foram as primeiras peças que realmente adorei. Para mim, ter arte, não é só ter obras caríssimas, e acho que hoje em dia acontece muito isso, as pessoas até compram arte como forma de investimen­to. E isso diz-me pouco, acho que devem ser coisas que contam histórias e falam contigo e fazem parte da tua vida”, comenta, acrescenta­ndo ainda sobre a marca catalã que só faz “este género de parcerias com pessoas e marcas que me entendem e entendem o meu trabalho, a minha mensagem. Que me respeitam. Por isso, seleciono tudo muito bem”.

Ocariz acessível da Mango ratifica a ideia de Mr. A sobre fazer perdurar a essência do graffito, mas quando o movimento é tão undergroun­d e ilegal, poderá perder alguma da sua identidade neste tipo de colaboraçõ­es? “Acho que, no mundo de hoje, ser um artista não se resume ao que pintas no teu estúdio”, começa por explicar. “Significa envolveres-te em todas as diferentes áreas e tentar criar algo, criar histórias… O ser humano é um ser social, nós gostamos de interagir com pessoas. Quando fundei uma discoteca, a ideia era essa: estar com pessoas, criar histórias com elas, tal como com o hotel, e a mesma coisa com a minha arte. Quando pinto nas ruas, é para as pessoas, para dar, arte na rua é gratuita, é para o povo. E o mesmo se passa na colaboraçã­o com a Mango, é tam

bém uma maneira de estar acessível, porque é uma marca para as massas e de certa maneira é uma forma de poderes possuir um pouco de arte, de uma história, por pouco – não é pelo dinheiro, é o fazeres parte do mundo.” Não é à toa que inclui aqui a referência à globalizaç­ão da arte. Quando começou, nos anos 80, André Saraiva testemunho­u o lado mais marginal do graffito, com toda a sua conotação negativa e pouco apreciada pela sociedade: “É ainda muito um movimento undergroun­d, mas na altura era muito especial, raro e único, as pessoas não entendiam este movimento artístico. Na Europa, fomos dos primeiros a fazê-lo”, explica, desmistifi­cando que a evolução lhe possa ter sido prejudicia­l. “Agora é um movimento global, faz parte da linguagem do mundo. A maioria das crianças e dos jovens adultos já cresceu com ele, por isso faz parte do nosso dialeto urbano. Se fores para a China, Japão, qualquer zona do mundo, América do Sul, eles entendem o graffito, até criam o seu próprio estilo. É uma liberdade de expressão artística verdadeira­mente única. Lembro-me da altura em que se dizia que isto ia desaparece­r, que era só um fenómeno.” Mas não foi e hoje até cresceu para fazer parte de um termo maior e mais abrangente (talvez até demasiado abrangente, na ótica de Saraiva), que é a street art, sem que essa popularida­de lhe tivesse minado o significad­o: “As pessoas por vezes comentam que agora faz parte da sociedade e já é reconhecid­o, que até já se fazem colaboraçõ­es e se expõe em galerias, mas a realidade é que os comboios continuam a ser graffitado­s, as paredes das cidades estão cheias de rabiscos e tags e ainda há uma nova geração de miúdos a fazerem-no simplesmen­te pela satisfação de o fazerem. Só que agora é uma linguagem. Felizmente, algumas das pessoas que fazem graffiti podem agora viver disso e isso deixa-me feliz. Continua a ser uma forma de expressão. Só se tornou maior e mais poderosa”, remata. Até porque, “uma vez que começas a fazer graffiti, passas a ter isso no sangue. Precisas de sair, de vez em quando, e pintar. Não conheço nenhum graffiter que não o sinta”, aponta. “Também ainda estou em forma porque tenho de correr, por vezes”, brinca – ou talvez não – o artista. A parte do ‘poderosa’ é fulcral: “acho que a street art se está a tornar mais política e é bom. Através de pessoas como o JR, que se associam ao ativismo. É política no sentido em que pintamos na rua, faz parte da cidade, da polícia. Acho que só pelo facto de seres artista, de seres marginal, já estás a fazer parte de um statement político. Algumas vezes, alguns artistas são mais claros na mensagem através do seu trabalho, outros fazem-no pelo modo como vivem e se comportam. A sua vida pessoal é política”, opina. Mas é também poderosa porque pode mudar vidas: “Eu podia facilmente ter optado por uma arma quando era miúdo. Ainda o fizemos. Mas éramos mais felizes a espalhar amor e a desenhar nas paredes. Era mais compensado­r.”

Falando em amor, que também faz parte do portefólio de Monsieur A, o projeto #LoveGraffi­ti surgiu porque “eu não era o melhor a escrever cartas de amor – ou a escrever, no geral, e as cartas de amor não me saíam com muita naturalida­de. Por isso, a forma de expressar o meu amor pela minha namorada era escrever o nome dela onde morava ou num local onde passava com frequência para ir para o trabalho ou para a escola. E, uns tempos depois, começavam a aparecer-me uns amigos a dizer que aquilo era fantástico e a pedir que fizesse aquilo por eles e pela namorada deles. Por isso, comecei a fazê-lo para ajudar amigos e depois cresceu para um projeto – escrevia nomes até para pessoas que não conhecia. E quando o fazia, sentia-me um pouco como um escritor comunitári­o, ou seja, oferecia os meus serviços para alguém dizer ‘amo-te’ a outra pessoa. E conheci alguns casais para os quais fiz isso. Alguns casaram, outros já têm filhos. Foi mesmo um projeto bonito, porque, fora das pessoas para quem o fazia, uma vez que os nomes que escrevia eram comuns, podia adaptar-se a outros casais, que se reconhecia­m ali ou havia alguém que conhecia uma história assim. É também disto que gosto no graffito: é obvio que as histórias são muito pessoais, e há uma pessoa a verbalizá-la, mas qualquer um pode levá-la”.

Tem 48 anos, mas não parece: ainda com ar do miúdo que tentava demarcar território nos sítios onde pudesse garantir que a sua arte perduraria mais tempo, quebrando regras em prol da paixão artística, confirma que pouco mudou, mesmo que hoje já não se coíba de usar o apelido Saraiva sem medo de ser identifica­do pela polícia: “Aplico essa ideia de tentar deixar a minha marca nos sítios mais proibidos ou inacessíve­is à minha vida, só que hoje em dia faço-o em tudo o que me envolvo. Faço projetos que me dizem que não seria capaz de fazer. Deu-me a coragem para não esperar que as pessoas me dissessem que sim ou que não, para fazer as coisas que quero fazer e acreditar nelas.” E se hoje o nome André Saraiva lhe abre portas, nem sempre foi assim. Usar apenas André ou Monsieur A nos tags era uma questão de sobrevivên­cia em mais do que uma vertente: “Era Paris, por isso ser um imigrante português não era fácil. Não eras francês, fazias parte dos marginais. Quando era preso pela polícia, tinha uma identifica­ção, a carte de séjour, e era certo que se mostrasse essa carta, seria preso. Era melhor escondê-la e dizer que eras francês, eles deixavam-te ir; mostravas a carte de séjour e prendiam-te. Hoje, acho que isso está a mudar, com o conceito de Europa, é por isso que gosto do propósito da Europa, fazemos parte de um ‘país’, e [o modo] como os franceses olham hoje para o português é capaz de ser um pouco diferente, mas, na altura, nos anos 80, éramos imigrantes e não nos tratavam bem.” Não resistimos a abordar a temática da emergência de partidos de extrema-direita e indagar se se sente algum retrocesso nesse campo. “Talvez, infelizmen­te, com a emergência de partidos nacionalis­tas e com o Brexit, mas acho que as novas gerações sabem a importânci­a da Europa”, responde. “Se esta emergência da extrema-direita em França me assusta? Sempre houve… os franceses são muito abertos,

“[O GRAFFITO]

CONTINUA A SER UMA FORMA DE EXPRESSÃO. SÓ SE TORNOU MAIOR E MAIS PODEROSA”

mas sempre tiveram um lado um pouco fascista. Mas eu acredito nas pessoas, nos jovens, e acredito em culturas, mas não acredito na ideia de países e nacionalid­ades, somos todos humanos, devemos coexistir.” Aliás, quando lhe perguntamo­s se é sueco (país natal), português (país natal dos pais) ou francês (onde cresceu), chuta para canto, argumentan­do que qualquer resposta seria muito redutora: “Sinto-me mais confortáve­l com o fazer parte de um país e acho que devíamos deixar de pensar de outra forma, falando filosofica­mente. Esta ideia da emergência da extrema-direita e de nacionalis­tas, acho que essa não é a maneira certa de ver o mundo. Acho que há coisas que estão a surgir como as alterações climáticas, a Inteligênc­ia Artificial, guerras nucleares e coisas do género, e como humanos devemos ver-nos como um, devemos estar unidos. Não quer dizer que esqueçamos a nossa cultura, a nossa educação, mas devemos ver-nos não como portuguese­s ou franceses, ou suecos, que me parece perigoso, mas antes vermo-nos como parte do mundo. Eu sei que soa um pouco a John Lennon, mas… [Risos].”

Ainda que se identifiqu­e como um cidadão do mundo, é inegável o ADN português, que parece manifestar-se hoje em dia mais do que nunca. Aliás, a conversa decorre em inglês por uma questão de conforto, porque André Saraiva percebe tudo e fala fluentemen­te português, mas sente que “falo português como quem sempre só falou português com a sua mãe. [risos] Por isso, não sei todas as palavras”. Mas sabe o suficiente para fazer vida por terras lusas: além da casa em Fonte da Telha, para onde vai sempre que pode, “até no inverno, venho e não está ninguém, é só o mar, para surfar um pouco. É um sítio mágico para recarregar baterias e encontrar-me”. Acumula ainda uma discoteca em Lisboa, o Le Baron (R. Nova da Trindade 5), um nightclub homónimo do que já tem em Paris, e está a trabalhar num estúdio na Trafaria que pretende partilhar com os amigos artistas. “Acho que Portugal é superinter­essante e é óbvio que cresceu em turismo, mas gostava que fosse mais do que apenas um sítio que as pessoas visitam. Há pessoas que vêm por questões de impostos, acho que isso não traz as melhores pessoas, e a minha ideia era trazer os meus colegas de profissão, de Nova Iorque, por exemplo, porque acho que é um bom sítio para criar e quero chamar outros artistas para fazerem residência aqui enquanto trabalham. Por isso comprei uma velha fábrica na Margem Sul do Tejo. Acabaram de aceitar o projeto, por isso acho que ainda vai demorar um tempo até abrir, mas vamos começar a trabalhar em breve”, contextual­iza. Isso significa que algumas das suas obras futuras poderão ser made in Portugal, testemunha­das por uma torrada com manteiga ou um prego, os seus pratos nacionais preferidos. Talvez surja um novo emblemátic­o boneco ou uma nova versão do intemporal Mickey com um pénis: “A sexualidad­e é uma parte importante da vida, há algumas pessoas que não a colocam no seu trabalho, mas para mim, faz parte do que eu sou e que adoro, claro. Mas eu também sempre fui muito bom a desenhar pénis, enquanto crescia, na minha turma era conhecido por isso. Foi assim que conquistei a fama e que eles se envolveram no meu trabalho”, conta à GQ, entre risos.

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Marianne Bittencour­t e Federico Spinas, fotografad­os por Branislav Simoncik.
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Na coluna do centro, casaco em algodão, €35,99, e t-shirt em algodão, €9,99; nas colunas laterais, casaco em pele, €199,99, e t-shirt em algodão, €9,99, tudo
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Mango Man.
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André Saravaiva na campanha de outono/ inverno 2019 da Mango. Camisola em algodão, €29,99, Mango Man x André Saraiva.

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