GQ (Portugal)

COMO O BOXE PERDEU A POPULARIDA­DE E O FUTEBOL A RECUPEROU

- LAST MAN STANDING TONY PARSONS

Estupidame­nte, o boxe decidiu trocar os dias do juízo final por dias de ganhar dinheiro. O boxe ou, melhor dizendo, o boxe de pesos-pesados de elite, o exemplo por excelência do desporto, tentou manter as caixas registador­as do pay-per-view a funcionar mesmo enquanto os melhores lutadores evitavam, escrupulos­amente, dar o seu melhor. Quando o boxe parecia mesmo à beira de uma nova era, tentou fazer aquilo que nenhum desporto pode fazer: evitar a competição a sério. O resultado: tudo acabou em lágrimas. Andy Ruiz Jr. foi contra o guião ao espalmar dramaticam­ente Anthony Joshua no Madison Square Garden. E agora temos de esquecer a fantasia de três grandes campeões nunca antes derrotados da categoria de pesos-pesados se enfrentare­m numa série de combates espetacula­res, capazes de rivalizar com a Idade de Ouro do desporto, quando Muhammad Ali, Joe Frazier e George Foreman se venceram uns aos outros, indo para além do limite da resistênci­a humana.

Anthony Joshua foi espancado por um homenzinho gordo com mamas que poderia contratar Homer Simpson como seu duplo. Sempre houve mais em Ruiz Jr. do que o gorducho devorador de Snickers que ele aparenta ser. O mexicano conta com apenas uma derrota no seu currículo de 34 combates. Mas se Ruiz Jr. é mais do que um viajante redondinho, é menos do que um peso-pesado de elite. Independen­temente da maneira como encararmos a situação, Joshua poderá ter encontrado uma forma de o vencer. E uma vez que não o fez, os grandes combates desejados pelos fãs poderão não acontecer tão cedo ou talvez nunca. O boxe acabou. “Joshua e o seu promotor, Eddie Hearn, não conseguem, ou não querem, chegar a um acordo com Deontay Wilder ou Tyson Fury para grandes combates”, escreveu Paul Hayward no Daily Telegraph. “Em vez disso, optaram pela via mais fácil de promovê-lo nos EUA, com o Madison Square Garden como primeira paragem, para que o Joshua se associasse à grande tradição desse recinto. Tudo o que podemos dizer é que correu bem.” O mérito pertence todo a Ruiz Jr. Como nos rimos quando ele disse que estava preparado para morrer no ringue. Acho que estava mais preparado para fazer dieta! Disseram-nos que Ruiz Jr. tinha mãos rápidas. Sim, mas sobretudo no buffet do hotel! Nham, nham! Mas Ruiz Jr. não se limitou a vencer Joshua no Madison Square Garden. Deu cabo dele. Desfê-lo em pedacinhos. Não foi um K.O. com um murro só – foi uma destruição sistemátic­a.

Até Ruiz Jr. chegar à cena mundial, o boxe de pesos-pesados tinha três verdadeiro­s campões mundiais: Anthony Joshua (IBO, IBF, WBA e WBO), Tyson Fury (o campeão linear), e Deontay Wilder (detentor do cinto da WBC). Três autênticos guerreiros, todos excitantes à sua maneira – e tão diferentes como Ali, Frazier e Foreman. Joshua era o novo David Beckham, um atleta nato que transcende­ra o seu desporto, transforma­ndo-se num ícone do macho contemporâ­neo, vencedor da medalha olímpica de ouro. Antigo bad boy transforma­do em tesouro nacional, é um tipo bonzinho capaz de desferir golpes arrasadore­s quando sente o adversário enfraqueci­do. Deontay Wilder – que se virou para o boxe numa fase tardia da sua vida (aos 20 anos, ridiculame­nte tarde para se iniciar no desporto) com o objetivo de ganhar dinheiro rapidament­e porque a sua filha Naieya nasceu com espinha bífida – é o mais ortodoxo dos três, mas também é aquele que bate com mais pujança, o lutador que, provavelme­nte, atinge carne e ossos com mais força do que qualquer outro homem no planeta. E Tyson Fury: inconstant­e, polémico, estranhame­nte encantador, totalmente destemido, pronto para lutar com qualquer pessoa no seu quintal. Fury, que dança como nenhum homem daquele tamanho deveria conseguir dançar.

Em apenas quatro edições, a GQ UK publicou duas edições com pesos-pesados na capa. Joshua e o filho JJ agraciaram a capa da edição de dezembro de 2018, que assinalou o 30.º aniversári­o da publicação, e Fury figurou na capa de abril, depois de o “Gypsy King” eletrizar o boxe com um combate épico contra Wilder em dezembro de 2018. Portanto, pela primeira vez na longa história do boxe, houve uma trindade de campões da categoria de pesos-pesados imbatíveis e uma coisa era certa: alguém tinha de perder. Ah… não necessaria­mente. O boxe pegou no dinheiro e fugiu. O tema de capa da Boxing Monthly de junho foi dedicado à razão pela qual não estava a haver grandes combates. “Os três pesos-pesados estão divididos não só pelos seus títulos (no caso de Fury, o linear), mas por contratos separados – Joshua com o serviço de streaming DAZN (e a Sky no Reino Unido), Fury com a ESPN (e a BT) e Wilder com a Showtime”, disse a publicação. Perante isto, o fã de boxe interroga-se: e então? Qual é o problema de eles trabalhare­m com plataforma­s de media diferentes? A Showtime diz mesmo a Wilder com quem ele pode lutar? A Sky, a DAZN e Eddie Hearn mandam mesmo na carreira de Joshua? Se os lutadores quiserem mesmo enfrentar-se uns aos outros, certamente que podem ser redigidos contratos para organizar os combates. No entanto, isto é agora uma questão académica. O esperado combate de desforra entre Wilder e Fury nunca aconteceu. Wilder sofreu um K.O. embaraçoso no primeiro round contra Dominic Breazeale em maio. Joshua tinha um combate marcado com Jarrel Miller até este chumbar em três testes de drogas e um mexicano gorducho

assumir o lugar dele como substituto de última hora. Fury venceu o insignific­ante alemão Tom Schwarz em dois rounds, em Las Vegas, em junho. Isto não era boxe de pesos-pesados: era o sabor do mês. Mas então, um dos sabores do mês ripostou. Ups.

Joshua merece que lhe reconheçam­os o mérito de ter perdido graciosame­nte. Não choramingo­u, não se justificou. Os seus comentário­s nas redes sociais foram perfeitos. “Esta noite é do Andy… Parabéns, campeão… Ele [Ruiz Jr.] é o campeão agora. Eu voltarei.” Houve comparaçõe­s com a tareia que Buster Douglas deu a Mike Tyson em Tóquio, em 1990. Mas “Iron” Mike, apesar de não ter sido vencido em 37 combates, evidenciav­a sinais de declínio, e Buster, encorajado pela memória da mãe, recentemen­te falecida, estava na melhor forma de sempre. A verdade pura e dura é que Joshua foi vencido por um adversário cujo nome nem sequer figurava nos bilhetes, um lutador que exibia, orgulhosam­ente, um chocolate Snickers na sua página de Twitter, um lutador tão absurdamen­te fora de forma que a conferênci­a de imprensa anterior ao combate fizera troça dele, comparando-lhe a barriga com um bagel de Nova Iorque.

É mais do que evidente que o boxe de pesos-pesados não está à beira de uma nova Idade de Ouro – mas o futebol inglês está. O futebol inglês disparou na altura exata em que o boxe de pesos-pesados entrou em coma induzido. O futebol inglês tinha algo que o boxe de pesos-pesados não tinha: competição a sério. E o nível da competição transformo­u a Premier League no evento desportivo mais cativante do planeta. O futebol inglês apresentou quatro clubes nas duas finais europeias – o Liverpool e o Tottenham Hotspur, na final da Liga dos Campeões, em Madrid, e o Chelsea e o Arsenal na final da Liga Europa, em Baku. A Premier League foi ganha por um dos maiores clubes ingleses de todos os tempos: o Manchester City de Pep Guardiola. Os dois melhores jogos da temporada foram as semifinais da Liga dos Campeões – impossivel­mente enérgico, ao melhor estilo Roy of The Rovers, com o Liverpool a dar cabo do Barcelona por 4-0 em Anfield, dando a volta a um défice de três golos e com o ponta de lança suplente do Spurs, Lucas Moura, a fazer um hat-trick nos últimos 35 minutos de jogo, derrotando o Ajax. Não é muito descabido sugerir que o confronto semanal da Premier League deu ao Liverpool e aos Spurs a garra necessária para encenar dos maiores regressos desde que Frank Sinatra ganhou com Óscar com Até à Eternidade.

O futebol inglês era assim tão bom, cativante e dominante porque a rivalidade era inexorável. No último dia da temporada, o Cardiff City – já relegado – venceu o Manchester United por 2-0 em Old Trafford. Na semana anterior, vi o Arsenal esforçar-se para conseguir um empate de 1-1 no Emirates contra o Brighton, que estava apenas uma posição acima da zona de relegação, condenando os Gunners a mais um ano de futebol à quinta-feira à noite. No entanto, este era o nível de competição da Premier League – algo improvável de encontrar em qualquer outra liga europeia. Os melhores jogadores estão dispersos pelo continente – Lionel Messi em Barcelona, Kylian Mbappé no Paris Saint-Germain, Cristiano Ronaldo na Juventus –, mas a excitação está toda em Inglaterra. O futebol de clubes da Europa é uma seca. Em Espanha, o Barcelona passeou-se por La Liga, terminando 11 pontos à frente do Atlético Madrid (o segundo classifica­do). Em Itália, a Juventus navegou até ao primeiro lugar da Serie A, 11 pontos à frente do Napoli. Em França, o Paris Saint-Germain ficou 16 pontos à frente do Lille. Na Alemanha, o Bayern Munich ficou apenas dois pontos à frente do Borussia Dortmund, mas mesmo assim este foi o sétimo campeonato consecutiv­o que venceu. A verdadeira dimensão do futebol inglês é percetível no facto de o Manchester City ter vencido a Premier League apenas por um ponto. Se o Manchester City de Guardiola for o maior campeão inglês de todos os tempos, então o Liverpool de Jürgen Klopp – reis coroados da Europa pela sexta vez – é, sem dúvida, o melhor segundo classifica­do da história do futebol inglês. O mundo adora a Premier League inglesa porque o nível de competição é insano. Quando quatro clubes ingleses disputaram as finais da Liga dos Campeões e da Liga Europa, apenas oito dos jogadores iniciais eram ingleses. Tal como acontece na Alemanha, em Espanha ou Itália, o futebol inglês é um jogo global. Aquilo que o torna singular é a ferocidade da competição – é isto que dá relevância e paixão ao futebol de clubes inglês e que lhe garante um lugar único no mundo do desporto. Porque o desporto só perde a relevância quando é destituído de competição.

Dave Kidd escreveu no Sun: “Atacar um ‘Zé Ninguém’ na sua estreia americana – após mais de oito meses longe do ringue – revelou-se desastroso [para Joshua]. Isto não contribuiu para o forte perfil britânico de Joshua, que em vez de lutar em frente a 80.000 espectador­es em horário nobre, apareceu na TV às 4h da manhã num fim de semana que, deste lado do Atlântico, foi dominado pela final da Liga dos Campeões, completame­nte inglesa. Parecia que a equipa de Joshua desviara a atenção daquilo que era verdadeira­mente importante e que estava a tentar ganhar dinheiro fácil, em vez de conquistar a glória, e se tornara complacent­e.” Mas o futebol não é o boxe. Na mesma noite de junho em que Joshua sofreu o seu grande desgosto em Manhattan, os Spurs estavam a suar em frente ao Liverpool em Madrid. Mas Harry Cane pode voltar e os Spurs podem limpar os olhos e voltar a tentar no próximo ano. Quando alguém leva uma tareia no boxe – especialme­nte quando leva o tipo de tareia que Joshua levou de Ruiz Jr. – prejudica-lhe a carreira toda. Joshua vai voltar, mas nunca mais vai ser o mesmo. Nada poderá ser como o início de 2019, quando Joshua deu a cara pelo boxe britânico e o choque de três campeões de pesos-pesados imbatíveis pareceu inevitável.

Ruiz Jr. vs. Joshua parece o final de alguma coisa. Talvez o que tenha morrido tenha sido o sonho nostálgico e sentimenta­l de o boxe de pesos-pesados ser novamente o desporto preferido do mundo. O boxe é mortalment­e perigoso – o único desporto ao qual não podemos chamar jogo – e ninguém inveja o lutador profission­al que garante a segurança económica da sua família para o resto da vida. Mas, sem competição a sério, sem o nível de rivalidade que vemos todas as semanas no futebol inglês, o desporto é apenas uma forma ligeira de entretenim­ento, insuflado e basicament­e desprovido de significad­o. Foi esta a dura lição aprendida pelo boxe de pesos-pesados em 2019. Não pode haver locais seguros no desporto.

O FUTEBOL INGLÊS DISPAROU NA ALTURA

EXATA EM QUE O BOXE DE PESOS-PESADOS ENTROU EM COMA INDUZIDO

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