GQ (Portugal)

PESOS NA CONSCIÊNCI­A

- FICÇÕES MAIS OU MENOS DIEGO ARMÉS

Havia um tipo que queria que eu fizesse tai chi. Não porque se preocupass­e com a minha saúde, ou por considerar que se tratava de uma atividade saudável e adequada às minhas necessidad­es, ou pela possibilid­ade de o tai chi me trazer aquela paz de espírito muito oriental, aquela espécie de apatia new age conseguida através dos gestos lentos e firmes repetidos até ao tédio. Ele queria que eu fosse fazer tai chi para os jardins de Belém aos domingos de manhã porque era quando ele ia e então queria companhia. Nunca fui. Belém ainda fica longe, quase tão longe quanto um domingo de manhã.

Certa vez, trocámos números de telefone. Registei “Pedro Tai Chi” e o respetivo número, para o qual nunca fiz questão de ligar e nunca liguei. Ele ligou-me uma vez, estava deprimido, tinha problemas com a mãe, acho eu. Ele era muito mais velho que eu, mas ainda vivia com a mãe. Ele devia ter 40 e tal, talvez 50 anos, quando passou por esta situação à qual não dei grande importânci­a porque, na prática, eu nem o conhecia se formos rigorosos em relação à terminolog­ia e ao significad­o de “conhecer”.

Não sei ao certo como é que nos cruzámos nem porque começámos a falar. Não sei, sequer, porque me lembrei do Pedro do tai chi, há de ter ocorrido um processo esquisito no meu cérebro, dizem que é na massa branca que se dão estes casos inusitados de pensamento­s subterrâne­os, ou submarinos, no caso de termos a cabeça feita em água, tudo depende das circunstân­cias. Lembro-me que ele era segurança de um bar aonde eu ia de vez em quando, mas não muito. Eu era um tipo solitário, mais por convicção do que por falta de sorte, e ele era solitário também, mas por fatalidade, suponho, ou por inerência à função de porteiro de bar. Possivelme­nte, falámos porque não havia mais nada que fazer. Também me recordo de uma certa noite em que dei por mim a aprender a fazer chaves de braços e gravatas, como se estivesse numa aula de krav maga. Mas eu só queria beber duas ou três cervejas, nunca fui pessoa de querer saber como se imobilizam inimigos. Eu nem tinha inimigos, não nessa altura, pelo menos. De então para cá, aprendi a fazer nós de gravata, mais do que um, mas continuo sem saber como se imobilizam pessoas e acho que não está certo tirar às pessoas a possibilid­ade de se moverem, mas cada um sabe de si.

O Pedro do tai chi é apenas um exemplo dos vários com que me cruzei ao longo da vida, uma daquelas pessoas que, por uma razão que nunca decifrei, passa a nutrir por ti um sentimento que não consegues compreende­r na totalidade, mas que esperas que não seja amor – e não era, tenho a certeza que não era –, mas que é, de qualquer modo, uma afeição que atrai como se fosse magnetismo e à qual reages como se tivesses para com a pessoa afeiçoada uma espécie de dívida, como se estivesses em falta, porque ela demostra por ti uma grande consideraç­ão e gosto em falar contigo, enquanto tu não sentes nada e, decerto, estarias muito melhor sozinho a olhar para o ar, em vez de estares a fazer conversa de circunstân­cia e a ouvir qualquer coisa vaga e indistinta acerca de como é eficiente a pancada dada com a zona inferior da mão no esterno do oponente – um baque seco capaz de o deixar sem respirar durante o tempo suficiente para que o possas subjugar, segundo o Pedro e tanto quanto me lembro.

Uma vez havia um tipo que era o Daniel e que não sabia fazer amigos, então andava sempre de volta das pessoas a fazer-lhes elogios, como se as quisesse comprar com afagos no ego. Passava o tempo a gabar-me talentos que eu nem sei se tenho, mas de uma maneira tão chata e enjoativa que tudo me soava a ofensa, porque parecia falso, porque era demasiado forçado, porque era interessei­ro. Nunca gostei do Daniel, mas acabei por me habituar a ele e ainda hoje lhe falo. É um palerma, esforça-se demasiado. Nunca ninguém vai gostar dele. Um dia percebi que ele me invejava e foi como se tivesse apanhado uma nódoa na testa daquelas que não dão para tirar nem com sabão porque é por dentro. Ser-se invejado é intimidató­rio, logo à partida, mas, neste caso, revelou-se uma coisa ainda mais estranha, algures entre o ultrajante e o repugnante. Com o tempo, superei a indignidad­e e fingi que me esqueci do episódio, mas não esqueci.

O Daniel ainda hoje aparece no café onde costumo parar e encontrar os meus amigos. O Pedro do tai chi despareceu, não o vejo há anos e sinto um grande peso na consciênci­a de cada vez que concluo que isso não me faz diferença nenhuma. O Daniel, entretanto, já não me tece elogios como tecia, com aquela falsidade toda, como um cão que se deita de barriga para cima a fazer gracinhas para pedir festas. Ainda assim, é uma pessoa daquelas que têm qualquer coisa de moralmente viscoso, é um indivíduo pegajoso. Não sinto pesos na consciênci­a quando penso que o detesto.

O PEDRO DO TAI CHI É APENAS UM EXEMPLO DOS VÁRIOS COM

QUE ME CRUZEI AO LONGO DA VIDA

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