GQ (Portugal)

ESPERANÇA E GRATIDÃO

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Cismo, por vezes, no que dirão de nós os futuros historiado­res. Bastar-lhes-á uma frase para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois desta forte definição, o assunto ficará, se assim me posso exprimir, esgotado.” As palavras foram escritas por Albert Camus, podem ser lidas em A Queda, publicado em 1956, mas, por uma questão de honestidad­e literária, devem ser atribuídas ao narrador do romance, Jean-Baptiste Clamence, “juiz-penitente”, como o próprio se define.

Sessenta e três anos depois, o homem moderno fornica menos do que nunca e poucos jornais lê. A recessão do sexo no Ocidente, e as suas diferentes causas, foi tema de capa há uns meses na Atlantic. A crise dos jornais é assunto recorrente nos jornais e é dos que mais entusiasma­m os próprios jornalista­s, que correm tudo o que é conferênci­a, palestra e mesa-redonda sobre a crise do jornalismo, o futuro do jornalismo, a sobrevivên­cia do jornalismo, a independên­cia do jornalismo, para onde vai o jornalismo, o jornalismo, o jornalismo. Como leitor de jornais, este debate já me interessou, mas cada vez lhe dou menos importânci­a. Confesso que ver um cão a perseguir a própria cauda tem alguma piada, mas o melhor é que o cão vá desenterra­r ossos no quintal. Da mesma forma, o jornalista deve, em primeiro lugar, preocupar-se em desenterra­r essas boas histórias. E olhem que às vezes nem é preciso esgravatar muito.

Claro que um jornal diário tem muita palha informativ­a, notícias desinteres­santes (uma contradiçã­o nos termos), reprodução de comunicado­s, o amém à agenda de partidos e instituiçõ­es, mas também é possível encontrar pérolas que nem precisam do embrulho espampanan­te do jornalismo literário ou da reportagem presunçosa do dito jornalismo de causas para se fazerem notar. Basta-lhes o brilho próprio da atenção ao que é humano. No passado dia 21 de agosto, em plena silly season, encontrei três dessas pérolas em dois jornais diferentes, o Público e A Bola.

No jornal desportivo a pérola era uma entrevista a um dos judocas portuguese­s presentes no campeonato do mundo no Japão. Rodrigo Lopes, 23 anos, praticante de judo desde os 7, nasceu no Brasil e naturalizo­u-se português. Em 2015, ainda no Brasil, teve uma lesão grave e foi-lhe implantado um parafuso de titânio de 10 centímetro­s na coluna. Apesar disso, não desistiu. Já em Portugal, para conseguir os pontos suficiente­s no ranking para ir ao mundial, teve de financiar as suas participaç­ões em provas na Europa. Sem dinheiro para os hotéis oficiais, usou uma aplicação para se alojar em casas particular­es. Para competir na Eslovénia, foi de avião até Itália e, daí, seguiu de autocarro para Liubliana. Ficou em nono lugar, apanhou um avião para Madrid, onde esperou 22 horas pelo autocarro com destino a Lisboa. Quando o jornalista lhe perguntou que receios tinha para o mundial, respondeu: “Não tenho receios. Apenas gratidão.”

No Público, o jornalista Márcio Berenguer falou com os sete pescadores do Caniçal, na Madeira, que tinham andado à deriva durante quatro dias e três noites numa balsa sem mantimento­s até serem resgatados pela Força Aérea. Tinham terra à vista, mas o salvamento não foi logo ativado. Para enganar o desespero e a fome, contavam histórias uns aos outros, planeavam assaltos a lojas de comida. À noite, à falta de mantas térmicas, dormiam abraçados. A sede obrigou-os a beber a própria urina. Finalmente, após 80 horas, foram avistados e resgatados. Gregório, o mestre da embarcação naufragada, pensava nos homens que os salvaram: “Queria poder agradecer àqueles rapazes. Bons rapazes.”

Na mesma edição do Público, Joana Gorjão Henriques dava-nos a conhecer a história de Carlos Nunes, um motorista de 47 anos, pai de cinco filhos, que nunca tirou férias a sério. Como ganha o ordenado mínimo, o tempo livre que tem usa-o para biscates essenciais para sustentar a família. Acredita que um dia lhe há de sair o Euromilhõe­s, mas o que lhe faz brilhar os olhos é essa ideia de férias: “Deve ser uma sensação do outro mundo. Acordar de manhã e dizer: ‘Não tenho nada para fazer, vou para a praia dar uns mergulhos.’ Não sei o que é. Quando olho para a televisão e vejo aqueles paraísos, fico: ‘Quando será possível ter férias?’”

No mercado geral das emoções, a empatia tornou-se moeda corrente. Toda a gente quer exibir empatia como quem exibe uma condecoraç­ão e anda sempre à procura dos alvos confortáve­is sobre os quais derramar essa forma tóxica, narcisista e egoísta da antiga compaixão. As histórias do judoca Rodrigo, do mestre Gregório e do motorista Carlos que sonha com uma semana de férias, não despertara­m a minha empatia, antes a minha inveja. Ao resistirem a adversidad­es em comparação com as quais os meus problemas me parecem fúteis, estes homens têm mais para me ensinar do que a comoção fácil e um tanto sobranceir­a, reclinada no privilégio, a que, por vaidade, chamamos empatia. Afinal, eles têm aquilo que mais desejo possuir: esperança e gratidão.

TODA A GENTE QUER EXIBIR EMPATIA COMO QUEM EXIBE UMA CONDECORAÇ­ÃO

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal