GQ (Portugal)

EDITORIAL

- José Santana Diretor GQ Portugal

José Santana incentiva-o a deixar a vergonha à porta e simplesmen­te dançar.

“Dance, dance, otherwise we are lost.” Só conheci esta frase de Pina Bausch há oito anos quando foi usada no cartaz do filme Pina, de Wim Wenders Foi uma frase que me ficou no ouvido, (apesar de nunca a ter ouvido, apenas lido). Adorei o som da mesma e a força dela, mas sempre a achei exagerada.

Se não dançarmos estamos perdidos? Sem dúvida é um exagero, uma hipérbole, para dar um exacerbado dramatismo à coisa! Mas hoje penso: será?

A dança surgiu no paleolític­o, pelo menos é o que se diz, antes mesmo de o homem saber cultivar. Os nossos ancestrais deixaram-nos desenhos de figuras humanas nas quais se percebe que estão a dançar. O mais interessan­te é que o mesmo movimento foi desenhado nos mais variados lugares do globo. Encontram-se na Europa e na África do Sul, por exemplo, o que nos faz pensar que a humanidade tem um fundo cultural comum e que a dança é um dos seus pilares.

A dança foi mudando ao longo dos tempos. Lembro-me que, quando era miúdo, a dança não era uma coisa muito masculina. Na dança expressamo­s sentimento­s, na dança não podemos ter vergonha de ser ridículos, na dança deixamo-nos ir, expomo-nos – e aí, mais uma vez, o homem não se sente confortáve­l. Um John Wayne não entra num saloon e põe-se a dançar. Um John Wayne entra, pede um whisky, depois mete uma das mãos no bolso das calças, cruza a perna e encosta-se a uma coluna a observar a sala. Há uma cena memorável da comédia In & Out, com Kevin Kline, em que a personagem começa a duvidar da sua masculinid­ade e compra o kit “Guide to Being a Manly Man”. Nesse kit vem uma cassete de som (o filme já tem uns anos) que ele mete na aparelhage­m. Carrega no play, uma voz masculina vai fazendo perguntas, até que acaba por anunciar: “Chegámos ao ponto mais crítico do comportame­nto masculino: a dança”. Ao mesmo tempo, começa-se a ouvir os primeiros acordes de I Will Survive. Kline começa a balançar o corpo quando a voz diz “homem verdadeira­mente viril não dança, em nenhuma circunstân­cia!”. “Este vai ser o seu teste final”, continua a voz enquanto o volume da música vai aumentando e a voz vai dizendo “esmurra alguém, bebe um copo, faças o que fizeres, não dances!” Até que a personagem perde o controlo de si e se deixa ir pelo ritmo “infernal”. Tirando os exageros, o caso piora de figura, se falarmos de um homem que quer fazer da dança a sua vida. É assim que surge Joaquín Cortés, que quebra barreiras, não só no mundo clássico do flamenco, que o olhou de lado ao início, como na própria sociedade, na maneira como vê os homens na dança. Joaquín deixa-se invadir por sentimento­s e por uma energia que vem de dentro, mas dança parecendo estar possuído por uma força externa. Joaquín torna-se um sex symbol, anda com top models, as mulheres fazem fila para entrar nos seus espectácul­os. Mais de 85% do seu público é feminino, torna-se um dos homens mais desejados do mundo. Um homem que não tem medo de expressar os seus sentimento­s com o movimento do corpo. Os homens desejam ser o homem de tronco nu que sua depois de dar tudo em palco.

Afinal um “macho viril” pode não só dançar como ser entronado macho alfa. Joaquín não é só um exemplo na dança. Aos 50 anos, começa em novembro a sua nova tourné mundial, com o primeiro espectácul­o em Atenas já esgotado.

Numa época em que cada vez mais observamos o mundo por um monitor e estamos mais estáticos, não precisamos de ir a uma discoteca para dançar um par de horas. Temos de dançar, sozinhos ou acompanhad­os, deixar-nos ir, ser invadidos pelo lado místico da dança, sentir um ligação visceral entre nós e o universo. Afinal se pensarmos bem, sozinho ninguém dança mal. Pelas estatístic­as estamos a tornar-nos uma sociedade à base de antidepres­sivos. Talvez a dança nos possa salvar. Talvez seja mesmo verdade “Dance, dance, otherwise we are lost”.

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Veja a cena do filme In&out a que José Santana se refere aqui.

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