GQ (Portugal)

CINEMA

- Por Beatriz Silva Pinto.

Pacificado nasceu e cresceu na favela, mas conquistou o festival de cinema San Sebastián. Falámos com o realizador.

A primeira produção brasileira a conquistar o festival de San Sebastián nasceu na favela. Pacificado foi realizado por Paxton Winters, mas teve a mão (e a cara) da gente do Morro dos Prazeres. Falámos com o autor do filme e com duas vozes da crítica brasileira sobre como a favela tem sido pintada no grande ecrã.

HHá oito anos que Paxton Winters vive no Morro dos Prazeres. Há um mês que ganhou o prémio principal do Festival de San Sebastián por realizar um filme que lá ganha vida. Pacificado tem a favela de fundo, mas não quer ser um favela movie; retrata a violência, mas não quer glorificá-la; não omite tiroteios, mas não se foca nos que disparam. “Acima de tudo, este filme é um drama familiar, um drama humano. É uma história universal que, por acaso, decorre numa favela”, resume o realizador, que veio à redação da GQ contar como nasceu o filme – que vai estrear no Brasil em março de 2020 e, pouco depois, em Portugal.

Foi por se ter apaixonado por uma brasileira que Paxton Winters fez as trouxas e se mudou para o país natal da noiva. Até então, o cameraman-realizador texano estava a viver em Istambul, na Turquia, onde produzia peças jornalísti­cas para canais estrangeir­os. “Felizmente, quando me mudei, os meus amigos jornalista­s entraram em contacto com colegas de profissão que estavam a viver no Brasil. Por isso, comecei a trabalhar assim que aterrei”, recorda. A mudança fez-se pouco antes do Mundial de Futebol de 2014, portanto “havia muita cobertura sobre a pacificaçã­o”, programa da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro, que pretendia desarticul­ar as quadrilhas e diminuir a criminalid­ade nas favelas. “Ou seja, estávamos a trabalhar principalm­ente nas favelas.”

Colaborava, por isso, regularmen­te com Magalhães, um fixer local – pessoa que tem como função facilitar o trabalho dos correspond­entes dentro da favela. Ainda que por meio de idiomas distintos, a amizade entre os dois cresceu e o americano começou a conviver com mulher, filhos e amigos de “Maga” em churrascos no Morro dos Prazeres. Até que, um dia, o seu noivado acabou. “Pensei mudar-me de volta para Istambul, porque as rendas no Rio de Janeiro estavam superaltas, por causa do boom económico pré-Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Mas o meu amigo sugeriu que eu ficasse no Brasil e me mudasse para o Morro.” O realizador não aceitou. “Mas depois fui para casa, pensei que se calhar aquela proposta podia ser uma boa oportunida­de e comecei a pensar no porquê de não a querer aceitar. E a razão era porque tinha medo. Não fiquei bem com isso, com o saber que estava com medo. Então, decidi experiment­ar, aceitar o convite por seis meses, até as rendas descerem quando a Copa Mundial chegasse ao fim.” E os seis meses fizeram-se oito anos.

“Os primeiros meses foram um pouco duros, acho que ninguém percebia muito bem o que é que eu estava a fazer lá – nem eu percebia. Mas, gradualmen­te, as pessoas começaram a abrir-se mais comigo”, relembra. “O que se tornou interessan­te para mim foi ver que as pessoas tentavam viver o seu quotidiano entre aquelas forças externas que todos conhecemos: a violência, o tráfico, a polícia. Então, eu e o Maga pensámos filmar umas curtas-metragens com os jovens da favela.” Mas o plano não era mostrá-las em lado algum. A meta era dar aos jovens, que não sentiam que estavam a ser representa­dos, a oportunida­de de contar histórias. “Nem que fossem filmadas com iPhones.”

A ideia era boa e chegou aos ouvidos de Lisa Muskat, produtora nova-iorquina que sugeriu a Paxton que combinasse algumas destas narrativas e realizasse uma longa-metragem. O cineasta recebeu a proposta com reticência, mas acabou por escrever um guião. Pouco depois, Darren Aronofsky (que realizou Cisne Negro) e os brasileiro­s Paula Linhares e Marcos Tellechea quiseram embarcar na produção.

Já nada seria filmado com telemóveis. “A partir daí, o desafio passou a ser sobre como manter este filme autêntico, fiel à experiênci­a das pessoas que moram lá.” Para isso, o realizador recorreu à sua veia jornalísti­ca: “A qualidade mais importante num jornalista é saber ouvir. Obviamente, estas histórias [as que se passam na favela] não são minhas. Portanto, antes de tudo o resto, tive de ouvir, entender e fazer perguntas.”

Pacificado centra-se num pai de família (outrora “chefe” da favela) que acaba de regressar após uma longa estadia na prisão e que tenta escapar de vez ao círculo vicioso do crime e da violência. Bukassa Kabengele, que arrecadou o prémio de melhor ator também no Festival de San Sebastián, é o pai retornado. Cássia Nascimento interpreta a filha, Tati, no seu primeiro (mas impression­ante) trabalho enquanto atriz. Cassia nasceu e foi criada no Morro em que o filme foi rodado. “A ideia original até era realizar o filme somente com pessoas da favela, mas acabou por ser uma mistura. Toda a figuração é feita pela comunidade do Morro e contratámo­s três pessoas da comunidade para cada departamen­to, muitas das quais continuam a trabalhar na indústria. Foi um esforço colaborati­vo muito

grande”, revela o cineasta. Por esse motivo, quando questionam­os o americano sobre se a comunidade foi recetiva ao seu projeto, a resposta não surpreende: “Eu desenvolvi a história lado a lado com as pessoas da favela. Por isso, de um certo modo, nem estava a ‘pedir’ que eles participas­sem no meu filme. Já era o nosso filme.”

A violência

Quando juntamos favela a cinema, o nosso imaginário enche-se de filmes sobre tráfico, pobreza e de violência, muita violência gráfica. Há até um dito subgénero, de nome favela movie, no qual filmes como Cidade de Deus, Cidade dos Homens e Tropa de Elite se incluem. O primeiro destes é um dos mais populares dentro e fora do Brasil, tendo sido nomeado para quatro categorias dos Óscares.

Lançamos a provocação: em que medida é que Pacificado se aproxima ou distancia deste? “Cidade de Deus é um filme feito de forma brilhante, muito cinematogr­áfico”, opina o realizador. “No entanto, não sinto que, após vê-lo, saias da sala de cinema realmente perturbado com o facto de crianças estarem a matar outras pessoas. É um filme Scorsese-esco, em que a violência é retratada de um modo diferente [do Pacificado]: há um lado muito comercial, muito sexy. Nós não tentamos ser necessaria­mente sexy, tentamos ser autênticos.”

Tanto que o filme até inclui imagens do real, como um vídeo que Paxton Winters filmou aquando de uma intervençã­o do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) antes dos Jogos Olímpicos. “São imagens que se veem muito na televisão brasileira e é muito fácil [para as pessoas que estão fora daquele contexto] dizer ‘aquelas pessoas vivem com aquilo diariament­e, é aquilo a que elas estão habituadas’. A ideia do filme é tu conheceres as personagen­s e, só depois, veres aquelas filmagens. As pessoas que conheceste, com as quais criaste uma ligação, são as mesmas que estão a fugir de balas e a tentar pôr os seus filhos a salvo.”

Confirmamo­s: a violência chega tarde no filme, só depois de as personagen­s e as relações terem sido desenvolvi­das. E, mesmo após estar lá , o filme continua a olhar mais para as pessoas do que para o cano da pistola, mais para aqueles que são apanhados no meio da violência do que para os perpetuado­res ou as vítimas diretas desta.

Até isso se liga às suas vivências no morro – passadas e presentes. “Sempre que há um tiroteio e eu estou na casa de banho, só à espera que passe, tal como qualquer outro residente na área, penso sempre ‘Já chega, vou sair daqui, isto é estúpido... Porque é que eu estou aqui?’ Depois começo a procurar outro sítio para viver, mas a vida volta ao normal e a comunidade fica ainda mais junta... Então, sentes que fazes parte daquela comunidade que ultrapasso­u algo, que sobreviveu a algo. E acabas por ficar. E depois tudo se repete. A violência é dura, é brutal, é mundana, é constante. Mas, por outro lado, tens toda a segurança dentro da favela: deixas as janelas e as portas abertas... Se eu precisar de algo, todos os meus vizinhos estão lá para mim.”

A sua morada deverá continuar a mesma, pelo menos nos próximos tempos, mas o realizador antevê algumas visitas a Lisboa, cidade que lhe parece “um sítio muito vibrante para criar, com muito movimento”. E, apesar de Pacificado apenas estrear em março, Paxton já tem um novo projeto na manga: a história de um soldado americano que é raptado por um jovem iraquiano e que é levado para uma casa de família. “Houve 5 mil soldados americanos que morreram durante a ocupação do Iraque, mas as estimativa­s apontam para entre 750 mil e um milhão de óbitos entre civis iraquianos, durante aquela ocupação.” Explorar o outro lado, o vivido pelos iraquianos – é esse o próximo desafio.

Não poderíamos falar de Pacificado sem falar da representa­ção das favelas no cinema. E não podíamos falar da representa­ção sem falar sobre violência, estereótip­os e o impacto que os filmes têm no real.

Comecemos pelo início: o que é um favela movie? “Foi um termo criado pela imprensa, primordial­mente a brasileira, para dar conta de um conjunto de filmes a partir do sucesso de Cidade de Deus”, esclarece Heitor Augusto, curador e crítico cinematogr­áfico brasileiro. Por sua vez, Sérgio Alpendre, professor de cinema e crítico da Folha de S. Paulo, confessa não ser fã da classifica­ção anglizada: “A própria definição em inglês para um tipo de filme que normalment­e é brasileiro é complicada. Isto indica que se trata de um típico filme para exportação, que procura se apoiar numa visão exótica do que seria a vida numa favela com uma linguagem publicitár­ia.”

Para lá do “flirt com técnicas de montagem e construção da imagem vindas da publicidad­e”, Heitor Augusto atribui outras caracterís­ticas ao subgénero, tais como “a equalizaçã­o entre favela e criminalid­ade”, a “utilização da pobreza e da miséria social como chamariz narrativo”, as “marcações bem definidas na construção de empatia e antipatia pelas personagen­s”, o “olhar-pastiche sobre toda uma comunidade, reduzindo-a a classifica­ções sociais” e – “talvez a mais importante de todas”, salienta – o facto de serem “filmes feitos por realizador­es oriundos da classe média ou da elite sobre um chamado ‘outro’”.

Quando questionám­os os críticos sobre a glorificaç­ão da violência, ambos descentral­izaram a questão. Alpendre diz que não acredita que a violência seja glorificad­a em nenhum dos filmes-favela, apesar de se recorrer ao lugar-comum de se “mostrar que a vida numa favela é sempre muito perigosa e arriscada, que todos ali vivem mal, quando a realidade é bem mais diversa do que a mostrada nos filmes”. “Existem muitos trabalhado­res e muitas pessoas que vivem feliz e pacificame­nte em favelas. Mas eu não diria que estes filmes têm esse poder de perpetuar estereótip­os. Se os filmes não existissem, os estereótip­os continuari­am presentes. Fazem parte de um imaginário de classe média que não olha além do seu próprio umbigo”, conclui o professor.

“Mais do que glorificaç­ão da violência, o fator mais problemáti­co é a desumaniza­ção das pessoas que vivem em favelas e comunidade­s. Em especial, desumaniza­ção das vidas negras, turbinada por um racismo nada velado que determina por quem devemos sentir mais ou menos empatia”, argumenta Augusto. E exemplific­a: “Em Cidade de Deus, o vilão (Zé Pequeno), monstruoso, é um homem negro de pele escura capaz de uma vilania em estado puro mais brutal que o Tony Montana do Scarface; o bandido ponderado (Bené) é um homem negro de pele mais clara; o bandido que pensa e mata por acidente ou apenas por obrigação (Cenoura) é um homem branco de porte físico mais franzino, boa praça, simpático. Ou seja, nessas três personagen­s estão reproduzid­as as ideias nefastas do racismo científico do século XIX.”

E quais são as consequênc­ias da referida desumaniza­ção? Heitor fala na “naturaliza­ção das execuções pelo Estado, já que compramos a falácia de que ‘é tudo bandido mesmo’”. Sérgio vai no mesmo sentido: “Tenho a impressão de que [estes filmes] tiveram um impacto negativo, tanto nas favelas quanto no país como um todo, uma vez que a nossa elite nojenta comemora incêndio em favelas – Sim, isso aconteceu recentemen­te em São Paulo. O facto de o Capitão Nascimento [personagem do filme Tropa de Elite], um fascista, ter sido considerad­o um herói, diz muito sobre nosso problema atual.”

Mas – atenção – há favela no cinema para lá do subgénero em discussão. “O Cinema Novo [movimento cinematogr­áfico brasileiro dos anos 60 e 70] vai justamente à favela quando começa a construir um projeto de cinema interessad­o em mostrar e investigar o Brasil real – ou uma ideia que aqueles realizador­es tinham de Brasil real”, diz-nos Heitor. Sérgio dá alguns exemplos: “Fábula, de Arne Sucksdorff, e os filmes de Nelson Pereira dos Santos são importantí­ssimos.”

Pacificado consegue fugir à tal “visão exótica do que seria a vida numa favela” de que Alpendre fala no início do artigo? O professor, que viu o filme pouco depois de nós, está dividido: “Os atores conseguem uma verdade que está acima das demais representa­ções de moradores da favela no cinema brasileiro. Mas a trama esquemátic­a prejudica a manifestaç­ão dessa verdade.”

“NOSSA ELITE NOJENTA COMEMORA INCÊNDIO EM FAVELAS – SIM, ISSO ACONTECEU RECENTEMEN­TE EM SÃO PAULO”

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Paxton Winters fez o seu primeiro documentár­io Silk Road ala Turka enquanto traçava a Rota da Seda numa caravana de camelos durante †‡ meses Na ficção estreouse com o filme Crude ‰Š‹‹ŒŽ a que se seguiu a série Alacakaran­lik ‘ ambos realizados na Turquia país onde viveu durante †‡ anos

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