GQ (Portugal)

REPORTAGEM

- Por Matteo Fagotto. Fotografia de Matilde Gattoni.

Uma investigaç­ão de dois anos sobre um dos mais obscuros segredos de Espanha: os niños robados.

A dupla Matilde Gattoni-Matteo Fagotto investigou, ao longo de dois anos, o escândalo que tem abalado Espanha: durante mais de meio século, milhares e milhares de crianças foram raptadas à nascença para serem vendidas. Eis algumas dessas histórias profundame­nte chocantes.

DURANTE SETE DÉCADAS, ATÉ 2001, ESTIMA-SE QUE 300 MIL BEBÉS ESPANHÓIS TENHAM SIDO RAPTADOS À NASCENÇA E VENDIDOS A CASAIS RICOS, EM ESPANHA E NO ESTRANGEIR­O, POR UMA REDE CONIVENTE DE MÉDICOS, ENFERMEIRO­S, FUNCIONÁRI­OS PÚBLICOS E ECLESIÁSTI­COS.

Hoje, inúmeras vítimas procuram os seus parentes, perdidos num labirinto de documentos falsificad­os, testemunha­s envelhecid­as e autoridade­s pouco cooperante­s. Embora algumas tenham conseguido encontrar os seus entes queridos – sobretudo graças a testes de ADN – a grande maioria prossegue a sua demanda, determinad­a a descobri-los a todo o custo.

O fenómeno dos niños robados (“crianças roubadas” em espanhol) teve início na época da ditadura de Francisco Franco, como um sistema para entregar crianças de pais de ideologia de esquerda a famílias solidárias com o regime. Aos poucos, transformo­u-se num negócio criminoso, que continuou a ser praticado muito após a morte de Franco, em 1975, e ao longo da época democrátic­a. Os principais alvos eram mulheres jovens e inexperien­tes, na sua primeira gravidez, ou mães de famílias pobres e analfabeta­s que já tinham vários filhos. Eram separadas dos bebés imediatame­nte após o parto, sob os mais variados pretextos, e posteriorm­ente informadas de que a criança morrera devido a problemas de saúde. Na maioria dos casos, as famílias não viam o cadáver e o hospital dizia-lhes que trataria do funeral, sem quaisquer custos.

Os bebés roubados eram, em seguida, vendidos por preços exorbitant­es, por vezes tão caros como um apartament­o, a casais que não conseguiam ter filhos. Os casamentos sem filhos eram malvistos e muitas famílias fariam qualquer coisa para não serem marginaliz­adas socialment­e. Os bebés eram adotados ou registados como filhos biológicos dos seus novos pais, graças a certidões de nascimento falsificad­as fornecidas pelos traficante­s. Muitos ainda hoje ignoram as suas verdadeira­s origens.

Os pais biológicos ficavam impotentes, mesmo que não percebesse­m que os filhos lhes tinham sido roubados. O catolicism­o-nacional que dominava Espanha naquela altura fazia com que fosse impossível contestar figuras de autoridade como funcionári­os médicos ou eclesiásti­cos – até 1990, estes últimos estavam encarregad­os de uma vasta rede de maternidad­es e orfanatos. As poucas mães que se atreviam a perguntar pelos filhos perdidos eram frequentem­ente menospreza­das como doentes mentais – mulheres incapazes de aceitar a morte dos seus filhos. Muitas esconderam a sua dor durante décadas, pensando que tinham sido vítimas de um ato de injustiça atroz, mas isolado.

Há alguns anos, algumas vítimas ganharam, finalmente, coragem para denunciar o escândalo. Quando os primeiros casos se tornaram públicos, as mães perceberam que os seus partos tinham acontecido nas mesmas circunstân­cias suspeitas que estavam a ser descritas pela imprensa. Quando começaram a procurar documentos que provassem a morte dos seus bebés, encontrara­m incongruên­cias flagrantes e documentos alterados. Em alguns casos, nem sequer havia registo do nascimento dos seus filhos.

As exumações desde então feitas dos ditos niños robados revelaram caixões vazios, partes do corpo de adultos ou restos mortais cujo ADN não correspond­e ao dos pais que pediram as buscas. As Nações Unidas e a União Europeia pediram repetidame­nte a Espanha para prestar esclarecim­entos sobre um dos capítulos mais obscuros do país, mas as investigaç­ões continuam a ser mínimas e superficia­is. Os tribunais espanhóis arquivam sistematic­amente casos por falta de provas ou por prescrição e nem uma pessoa foi condenada até à data.

As vítimas carregam consigo os danos e o fardo económico de descobrire­m a verdade sozinhas e nenhum dos seus pedidos – levantamen­to das prescriçõe­s, a nomeação de um promotor público especialme­nte dedicado aos casos dos niños robados, assistênci­a legal e testes de ADN gratuitos – foi aprovado. Muitos perderam a fé na vontade do Estado de enfrentar um assunto que poderá expor à luz do dia verdades desconfort­áveis e implicar indemnizaç­ões gigantesca­s e estão a recorrer a tribunais internacio­nais na sua busca pela verdade.

Em outubro, o Governo da Catalunha aprovou a criação de uma comissão com o objetivo de quantifica­r o número de casos registados na região até 1980 e propor uma estratégia para os investigar. Aqueles que forem considerad­os crimes contra a Humanidade poderão ser reabertos e reapreciad­os. No entanto, algumas associaçõe­s manifestar­am o seu ceticismo em relação à arbitrarie­dade da data (há muitos casos posteriore­s a 1980) e também pelo facto de várias propostas feitas pelas autoridade­s num passado recente não terem sido cumpridas.

Segue-se uma coleção de histórias pessoais contadas por pais, irmãos e filhos adotados que são, ou se pensa serem, vítimas deste tráfico desumano. Apesar dos dolorosos acontecime­ntos relatados e das provas concretas que alguns possuem, nenhuma das queixas apresentad­as foi reconhecid­a pelo sistema judicial espanhol.

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