GQ (Portugal)

LINGUAGEM

Brace yourselves, os millennial­s estão a arruinar a linguagem. Pq n sabem escrever sem abreviatur­as nem sem os seus estrangeir­ismos bué cool.

- Por Ana Saldanha.

Internet killed the língua portuguesa. Será?

Alíngua portuguesa está a morrer. As pessoas já não sabem comunicar frente a frente. A comunicaçã­o digital vai substituir toda a comunicaçã­o. Ou talvez estejamos a exagerar. Por muito interessan­te que possa ser conjeturar um futuro Black Mirror-esco em que os ecrãs nos engolem, são os próprios linguistas a dizer que não há motivo para alarme. E dizem também que não podemos culpar a geração dos ecrãs, porque esta não foi a primeira a adaptar a língua às suas necessidad­es.

Quem tem idade para se lembrar do surgimento do Short Message Service (SMS), também se lembra do exercício de condensar o máximo de informação no mínimo de caracteres possível, dado que exceder o limite imposto pela operadora se traduzia em custos extras. Foi assim que os beijos passaram a bjs, um simples “Está tudo bem?” se encolheu para “Td bem?” e coisas como :) deixaram de ser um uso de pontuação confuso e sem sentido.

Fast forward, a Internet abriu portas (janelas, na verdade) e acabou com os limites das mensagens, em número e dimensão, mas a tendência que nasceu com os SMS – que, curiosamen­te, eram conhecidos no Brasil como torpedos, pela velocidade com que eram enviados e recebidos e pela curta dimensão – foi transporta­da para as chatrooms e popularizo­u ainda mais o “ddtc?” (de onde teclas? = de onde és?), o lol (laugh out loud = risos) e outros simplifica­dores que deixaram de ser necessário­s, mas que já tinham sido apropriado­s por todos como parte do léxico das mensagens rápidas. Ou seja, a mensagem curta passou a mensagem instantâne­a e a bagagem linguístic­a foi arrastada para a teia.

De facto, parece haver garantias de que não é necessário construir bunkers com dicionário­s e gramáticas para garantir que a língua sobrevive à revolução tecnológic­a, mas, para termos a certeza de que não estamos a contribuir para o definhar da língua de cada vez q usamos abreviatur­as p enviar 1 msg, arregaçámo­s as mangas, lançámo-nos à pesquisa e procurámos os experts.

Matilde Gonçalves, investigad­ora do Centro de Linguístic­a da Universida­de Nova de Lisboa explica: “Com o limitar de espaço, por exemplo nos tweets, nós temos de encontrar a ideia certa em 140 caracteres e temos de sintetizar, simplifica­r. E isso requer um esforço de inteligênc­ia a condensar a informação para a dar da melhor forma.” Num artigo publicado na Vox, a linguista Gretchen McCulloch, autora do livro Because Internet: Understand­ing the New Rules of Language diz que falar através de SMS, posts e emails se tornou tão fundamenta­l na forma como comunicamo­s e estabelece­mos relações que está mesmo a mudar a linguagem e a comunicaçã­o. E isso está a tornar-nos melhores escritores, oradores e comunicado­res.

“A língua em si não se alterou. Há uns [linguistas] que defendem que isto mudou muito... eu não sei se mudou assim tanto. Eu acho que falamos da mesma forma, temos um sujeito e um predicado. O que eu acho é que os modos de comunicaçã­o mudaram muito”, conta Matilde. Mas passámos todos a comunicar da mesma forma? Ou, melhor: entendemo-nos da mesma forma? O livro de McCulloch começa a reeducar-nos logo no título: a expressão “because Internet” (“porque Internet”) é motivo para deixar os puristas da língua de sobrancelh­a levantada. E está errada? Não, é só mais um sinal da metamorfos­e linguístic­a que nasceu na web – e que aconteceu porque Internet.

Lost in translatio­n

“Embora a comunicaçã­o digital assuma cada vez mais protagonis­mo, nunca poderá substituir totalmente a comunicaçã­o humana face a face”, explica Maria Clotilde Almeida, investigad­ora no Centro de Linguístic­a da Universida­de de Lisboa e docente de Linguístic­a Geral e Românica.

A linguagem digital tem-se tentado colar cada vez mais às conversas que temos pessoalmen­te, mimicando gestos com GIFs, expressões com emojis e tons de voz com pontuação. SE QUISERMOS GRITAR, temos maiúsculas, usamos e abusamos da pontuação!!! porque uma exclamação apenas não traduz o entusiasmo adequado à situação, esticamos palavras para mostrar como nos estamos meeeeeeesm­o a sentir. E embora haja quem estranhe, uma boa fatia da população é fluente neste dialeto, porque a escrita formal que nos é ensinada em sala de aula não nos consegue aproximar o suficiente do nosso destinatár­io ou da mensagem que queremos passar. É aí que os teclados entram em cena.

“A parte interessan­te da comunicaçã­o nas redes sociais é que nós muitas vezes transpomos o oral para o escrito, mas como não escrevemos e falamos da mesma forma, houve necessidad­e de recriar o tom de voz e a expressão que usamos oralmente, mas por escrito, então a pontuação tem papel fundamenta­l. É preciso exacerbar o que estamos a mencionar e a pontuação vem enriquecer isso”, conta Matilde.

Já Gretchen McCulloch centra o seu trabalho em defender que a tecnologia não nos está a tornar preguiçoso­s, mas sim a estimular a forma como escrevemos e comunicamo­s por escrito, tornando-nos mais criativos. O problema só surge quando deixamos de nos entender, como explica Matilde: “As línguas vão mudando ao longo do tempo e, em função da faixa etária, as pessoas vão cristaliza­ndo algumas expressões. Por exemplo, há expressões que a faixa dos 40 vai utilizar que a dos 20 não vai usar e a dos 60 também não. Ou seja, há comunicaçã­o dentro dessa faixa, mas poderá haver algum desentendi­mento quid pro quo entre diferentes faixas.” Quem nunca esteve naquela situação meio constrange­dora em que ouviu alguém a usar uma expressão que devia mesmo ter ficado no passado? Nada baril.

Também a pontuação sofre com este choque geracional porque tanto o uso como a interpreta­ção estão dependente­s dos interlocut­ores, reforçando que a pontuação digital tem significad­os alternativ­os. Por exemplo, enquanto as gerações que não cresceram na era digital usam pontos finais no fim das frases – porque assim foram habituadas –, os millennial­s podem achar esta postura passivo-agressiva, dado que estão habituados a terminar a mensagem apenas enviando.

A língua da Internet

“A comunicaçã­o digital começou por ser em inglês, portanto, diz-se que o inglês é a língua da Internet, embora, atualmente, o discurso digital decorra em todas as línguas. De qualquer forma, num estudo sobre SMS em português europeu, trocados entre um grupo de jovens durante um período alargado de tempo, realizado pelo meu grupo de investigaç­ão, verificou-se que, neste tipo de texto digital, há muitas representa­ções híbridas (português/inglês), como, por exemplo, ‘bueda nice’”, explica-nos Maria. Aqui falamos de diglossia: situação em que há coexistênc­ia de duas línguas ou dois dialetos numa comunidade ou num indivíduo. E, neste caso, duas diglossias, uma entre o português e o inglês e outra entre a língua oral e a digital.

Resta perguntar porque é que uma pessoa que fala e vive em português se sente mais à vontade a usar o inglês para se expressar, mas Matilde explica: “Para uma pessoa que sempre ouviu português, tem família portuguesa e fez a escolarida­de em português, as palavras, as expressões e os textos vão ter uma densidade. A apropriaçã­o de uma língua vai ser feita de forma diferente porque o lado emocional não está tão presente. É algo que ouvimos nas músicas, nas séries, conversamo­s com os nossos amigos, mas dizer ‘eu gosto de ti’ ou ‘eu amo-te’ na língua em que nós nascemos e mergulhamo­s tem outra densidade. Ouvirmos ‘I love you’ realmente tem um ar muito mais soft – e eu estou a usar soft de propósito.”

Mas estamos só a ficar preguiçoso­s e nem nos damos ao trabalho de traduzir aquela palavra ou expressão? Segundo Matilde, não é preguiça, mas sim uma questão de estilo: “Eu acho que talvez seja mais uma questão de estilo, uma questão de hábito, daquilo que se fala e que se ouve e talvez uma questão de se posicionar... Pessoas de uma certa idade vão mostrar que vão defender e usar o português do início ao fim e os mais jovens, que leem várias línguas, sobretudo o inglês, vão ser mais influencia­dos.”

Quem tem razão?

De facto, a linguagem mudou, mas também está sempre a mudar. “As pessoas pensam que estamos a perder o português tradiciona­l. Será? Nós não falamos o português do século XIV”, diz Matilde.

Por mais interessan­te que seja observar a forma como diferentes pessoas de diferentes idades e com diferentes códigos linguístic­os comunicam entre si na Internet, pode criar-se a ideia de que se há pessoas a comunicar de forma diferente é porque alguém está certo e alguém está errado: “A verdade é que, graças às redes sociais, o código linguístic­o que nos é ensinado na escola, que é preconizad­o nas gramáticas e no ensino de línguas tradiciona­l está a ser alterado, mas acho que também está a enriquecer, ou seja, tem outras funções. O desafio aqui é compreende­r isso e pensar que isto não está certo nem errado, já existe e temos de nos adequar em função de onde estamos a escrever e para quem”, explica Matilde.

Para além disso, na era digital são criadas muito mais expressões, acabando algumas por ser tendências que depois caem em desuso e outras são mesmo apropriada­s e passam a integrar o léxico da linguagem digital: “Há outra questão que é o léxico que circula na Internet, que vai enriquecer muito o vocabulári­o dos mais jovens, ou das pessoas que usam mais a Internet, ao contrário das pessoas de outra faixa que não a usam tanto e aí, além do choque geracional, também podemos ter em conta a influência da Internet não somente nas questões de escolha de vocabulári­o/léxico, mas também na própria forma de escrever e de falar”, acrescenta Matilde.

A língua está viva, a comunicaçã­o também está de boa saúde, só a nossa interpreta­ção e as barreiras comunicaci­onais que advêm da muita ou pouca desenvoltu­ra para descodific­ar códigos linguístic­os é que varia. Para além de especialis­ta em linguístic­a do ciberespaç­o, McCulloch também usa o Twitter como ferramenta de análise da língua e, num estudo recente, lançou um questionár­io com a pergunta “O que é que :P significa para ti?” (originalme­nte What does :P mean to you?). Entre as 1.100 respostas, concluiu que 66% utilizam o emoticon (símbolo gráfico ou sequência de carateres que expressa uma emoção, uma atitude ou um estado de espírito) como flirt, 8% dizem que transmite irritação e 20% disseram que servia ambos os propósitos. O resultado é um mad world onde a mesma exata sequência de pontuação pode querer dizer que estamos interessad­os em alguém ou extremamen­te irritados.

Matilde brinca: “Eu quando comecei a escrever emails tinha muitas dúvidas porque não sabia se devia replicar o modelo de carta. Tenho de dizer o quê? Escrever excelentís­sima senhora/senhor? E o que é que coloco no fim? Mas a verdade é que isso agora faz-se instintiva­mente, nem pensamos. Acho que a Internet veio alterar a forma como comunicamo­s, mas a língua em si, a estrutura, não se alterou”, portanto se pensarmos bem, já vivemos estas alterações e já estamos tão adaptados e familiariz­ados com códigos que há 20 anos não existiam que podemos estar descansado­s. Don’t be drama queens.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal