GQ (Portugal)

TEMA DE CAPA

Joaquín Cortés mudou o flamenco e, ao mudá-lo, colocou-o no planisféri­o, levou-o a todo o mundo. Agora que se mudou para Lisboa, que foi pai e que estreia o seu mais recente espetáculo, está na altura de fazer um balanço.

- Por Diego Armés, com José Santana. Fotografia de Branislav Simoncik. Styling de Nelly Gonçalves.

Joaquín Cortés em jeito de balanço, com alma de artista e sem falsas modéstias.

JJoaquín Pedraja Reyes, Córdoba, Andaluzia, 1969. Sangue cigano, tez morena, braços compridos, rosto assertivo. Nome artístico: Joaquín Cortés, o nome pelo qual o mundo o conhece, um nome que levou o flamenco mais longe do que alguma vez fora, um bailarino que reinventou as danças, que fundiu os passos, que enfrentou as almas velhas e retrógrada­s para transforma­r um bailado ancestral num espetáculo novo, sofisticad­o e sensual.

Joaquín Cortés, o homem com quem as pessoas querem tirar fotografia­s na rua, atingiu o pico da fama no final dos anos 90. Teve uma ascensão fulgurante, mas, ao contrário do que tantas vezes sucede, soube manter-se lá em cima, no topo. Aprendeu a dosear a exuberânci­a e encontrou mecanismos para conviver com a fama, da qual diz ter conhecido o lado feio.

Conheceu o mundo fascinante do bailado graças ao seu tio Cristóbal que, era ele miúdo, o levava a espetáculo­s de flamenco e não só. A paixão nasceu de imediato. Aos 12 anos entrava na Companhia Nacional de Bailado de Espanha; aos 14, já corria mundo para dançar; aos 20, estreava o seu primeiro espetáculo e aos 21 chamavam-lhe génio, ao mesmo tempo que lhe perguntava­m quem é que ele achava que era.

Joaquín, um lisboeta recente, tem 50 anos, um filho que completou agora o seu primeiro aniversári­o e um espetáculo que estreia, em Atenas, no princípio deste mês. Fala com seriedade e alegria. Tem muitas histórias para contar.

Quando começaste a dançar, entraste diretament­e no mundo do flamenco? Comecei com o flamenco, com o ballet clássico, com a dança moderna, com a dança contemporâ­nea. Comecei logo a dançar um pouco de tudo, porém, as minhas origens, porque sou cigano, vinham do flamenco. As origens do flamenco são ciganas. Identifico-me também por causa da minha família.

O teu tio Cristóbal mostrou-te o flamenco. Nesse tempo ainda vivias em Córdoba, na Andaluzia? Eu nasci em Córdoba, mas logo muito cedo mudei-me para Madrid. Era muito pequeno, tinha 5 ou 6 anos. O meu tio apresentou-me ao bailado já em Madrid. Foi aí que descobri as academias, o flamenco, a dança espanhola, a dança contemporâ­nea, tudo.

Qual é que consideras ser o segredo para o teu sucesso? A verdade é que não sei. Sinceramen­te. No mundo da dança é muito difícil chegares longe. Há alguns mitos no mundo do bailado, como [Rudolf] Nureyev ou [Mikhail] Baryshniko­v, falando dos russos, podes falar de um outro espanhol como Antonio “Bailarín” [Ruiz Soler], dos americanos tens o Fred Astaire, o Gene Kelly, mas é muito difícil atingires um estatuto e estabelece­res um nome que toda a gente conheça em toda a parte, sobretudo de um modo popular.

Acredito que eu tive a sorte de combinar muitas coisas. Por um lado, a dança, por outro lado, a imagem, et cetera, não sei. É uma conjugação de sorte. Houve muito trabalho, muitos anos de muito esforço – que valeram a pena, porque foi graças a esse esforço que me tornei conhecido no mundo inteiro. E hoje em dia, já com uma idade avançada e com 40 anos de carreira, continuo a levar o bailado espanhol ao mundo inteiro.

Na primeira conversa que tivemos, quando nos conhecemos, tu disseste-me “cheguei a um ponto em que era o maior bailarino do mundo”. [Risos.] Sim.

Achas realmente que és? [Risos.] Sou sobretudo o mais conhecido e o mais reconhecid­o. [Risos.] Repara, se vais na rua e as pessoas te param e dizem “Joaquín”, tu ficas “uau!”. É incrível. Estive dois anos completame­nte parado, estive retirado por causa de uma lesão e também, no último ano, porque tive uma criança, um filho, e quis estar com ele. E, mesmo assim, viajei por vários países e as pessoas queriam tirar fotos comigo, continuam a reconhecer-me, fazem aquela pergunta “tu és o Joaquín Cortés?”, meio incrédulas. Isto é incrível depois de tanto tempo. Por outro lado, é muito difícil que te reconheçam, principalm­ente num mundo como o da dança. Se fores ator e fizeres filmes, se fores cantor, é muito mais fácil que te reconheçam, mas sendo bailarino é muito mais complicado. Continuo a achar incrível que, nos dias de hoje, as pessoas continuem a lembrar-se de mim e a saber quem eu sou.

Um dos ingredient­es do teu sucesso é, segurament­e, a mistura de danças e de estilos nos teus espetáculo­s. Completame­nte.

Imagino que, pelo menos no início, te tenhas deparado com reações duras e resistênci­a por parte dos puristas do flamenco. Não só de flamenco, da dança, em geral. Recordo-me que tinha os meus 20 anos ou 21 quando montei a minha primeira obra, que se chamava Cibayí, que significa “maravilhos­a” – “cibayí” [diz-se “cibâdjí”] é uma palavra cigana, vem do romani –, e que foi um sucesso estrondoso. Mas, se fores ver as críticas dos jornalista­s especializ­ados, todos diziam: “Mas quem é este miúdo? Está louco, o que é que ele está a fazer? O que é isto, onde é que ele quer chegar?” Foi muito duro para mim, mas eu estava tão seguro, tão confiante daquilo que fazia, que continuei em frente. E essa polémica que se criou também me ajudou a tornar-me conhecido, porque toda a gente dizia “ai, mas quem é que este miúdo acha que é? O que é que ele acha que vai criar quando já está tudo inventado?”, e eu respondia “não, não está tudo inventado”. Hoje, 30 anos depois, a fusão de danças está na moda, em Espanha. Mas há 30 anos fui eu que inventei isto, desculpem lá.

“EM CÓRDOBA NUNCA ME FIZERAM NADA [EM TERMOS DE HOMENAGEM] E EU SOU, MUITO PROVAVELME­NTE,

O CORDOBÊS MAIS UNIVERSAL DA HISTÓRIA”

“O TEU ÊXITO DISPARA E, NESSE MOMENTO, É DIFÍCIL DIGERIR UM SUCESSO TÃO GRANDE E TÃO

RÁPIDO. FICAS: ‘O QUE É QUE ACONTECEU?’”

És uma figura muito conhecida, participas­te inclusivam­ente em filmes, segundo soubemos, certo? Ao longo da vida, e provavelme­nte por causa do sucesso de que falávamos há pouco, tive muitas solicitaçõ­es de realizador­es e de produtores que me diziam: “Mas porque não fazes filmes?” Por exemplo, o Pedro – o Almodóvar, que é um grande amigo meu – foi o primeiro a dizer-me “Joaquín, quero que apareças num filme meu”. Primeiro, houve um filme em que acabou por não ser possível participar, porque eu tinha uma agenda muito preenchida e não deu tempo. No filme seguinte, A Flor do Meu Segredo, ele disse-me “por favor, Jó, vem fazer este filme comigo, eu escrevo-te um papel à tua medida”, e a verdade é que foi uma aventura incrível, algo muito especial, ele é um grande realizador, muito rigoroso. Mas diverti-me mesmo muito. Ainda por cima, estava rodeado de vários grandes atores espanhóis, a Marisa Paredes, o Imanol Arias, Rossy de Palma, foi uma experiênci­a incrível. Logo, surgiram outros realizador­es, o Carlos Saura, que me convidou para fazer o filme Flamenco, e depois outro realizador, de que agora não me recordo o nome [trata-se de Manuel Palacios], que me convidou para fazer o Gitanos, do qual fui o protagonis­ta com a Laetitia Casta, que fazia de minha mulher. E então, de Itália, chegou o convite para fazer mais um filme [Vaniglia i Cioccolato], agora com Maria Grazia Cucinotta [quem não se lembra da bela Beatrice Russo de O Carteiro de Pablo Neruda?]. Também tive oportunida­des de fazer outros filmes. Um deles não pôde ser porque, à última hora, mudaram o realizador. Foi o [A Máscara de] Zorro, que acabou por ser protagoniz­ado pelo meu amigo Antonio Banderas, que acabou por fazer par com a Catherine Zeta-Jones. Inicialmen­te, o Zorro era para ser dirigido pelo Robert Rodríguez, o realizador de Mariachi. Ele tinha vindo a Barcelona para fazer o casting feminino, havia muitas atrizes espanholas, a Penélope Cruz e outras. Ele faz o casting por toda a Europa em busca da atriz ideal. Acabou por escolher a Catherine. Mas, quando estava em Barcelona, convidaram-no para ir ver um espetáculo meu. Quando ele me viu atuar, disse “este é o Zorro, já tenho o protagonis­ta”. Quando cheguei aos Estados Unidos, ele acabou por ter problemas com a produtora e o Robert Rodríguez saiu do projeto, entrou outro realizador [Martin Campbell]. E foi então que mudaram para o Banderas, que era alguém que estava instalado na América, que o público já conhecia bem e eu saí do projeto. Este foi um. Depois houve outro que eu teria adorado fazer, mas que não foi possível, pois tive um problema familiar grave – a minha mãe foi hospitaliz­ada e eu tive de voltar a Espanha quando estava a viver em Nova Iorque. Os produtores de Dirty Dancing queriam fazer a sequela e o Patrick Swayze estava fora do projeto. Ele era um grande fã meu e disse à produção que gostava que fosse eu a substituí-lo nessa segunda parte, a fazer de professor de dança. A produtora chegou a ir a Nova Iorque, mas eu tive de regressar a Espanha à pressa e desisti. Já tive muitas oportunida­des.

Recebo muitos guiões de filmes ingleses, espanhóis, italianos, americanos – portuguese­s, não. Gosto muito do mundo cinema porque, tal como acontece enquanto bailarino, tenho de criar uma personagem. Tens de ser alguém que não és tu. É muito divertido. É um mundo ao qual não fecho a porta. E, agora que vou voltar a fazer tournées e passar de novo pela América, pode ser que me convidem a fazer algum filme e eu o faça.

É sabido que o público feminino reage muito bem aos teus espetáculo­s. Tens alguma explicação para isso? Não sei. [Risos.] Acho que o flamenco é uma dança muito exótica, sobretudo para as pessoas de fora de Espanha. Vais à América, vais à Ásia, vais à Europa do Leste, e sentes que há um magnetismo muito especial. Acredito que tudo isto, juntamente com a sensualida­de e com a sexualidad­e, com o suor, acaba por gerar algo muito especial que justifique esta questão. Mas não sei. A verdade que grande parte do meu sucesso se deve a essa faceta varonil, sensual e sexual dos espetáculo­s.

Li algures que uma parte substancia­l do teu público é feminino. 60 ou 70%, creio. Consegues confirmar estes números? E 80, e 90%... Sim, sim, é verdade. Eu chegava a um sítio, por exemplo, ao Radio City Music Hall e a maioria do público era feminino. 80% eram mulheres. E os outros 20% eram maridos levados pelas mulheres, “vens comigo ver o Joaquín”. E os maridos sentavam-se e começavam a ver o espetáculo, viam que havia muitas bailarinas, um grande elenco, e ficavam “ah, que bonito, gosto muito, gosto muito”. Inicialmen­te, iam um pouco obrigados, “pff, ver bailado, pff, ver o Joaquín Cortés”, mas depois sentavam-se e acabavam a dizer que tinham gostado. Várias figuras conhecidas acabavam por ir ao meu camarim e dizer “eu não conhecia o teu trabalho, mas adorei, agora entendo o teu êxito”.

Agora tens um filho, um bebé. De que forma é que isso mudou a tua vida? É outra vida, totalmente. Dou graças a Deus, pois é uma experiênci­a única. A mim falavam-me da experiênci­a, os meus amigos, e eu fica “ah, sim, um miúdo, que bonito, está bem”, mas quando me vi a mim com o bebé acabado de nascer nos braços, disse “o que é isto?”. E agora, que ele faz 1 ano, estou apaixonado. A minha vida mudou completame­nte, mas para melhor. Agora que tenho um filho, tenho mais vontade de fazer coisas grandiosas. E quero que ele saiba quem é o seu papá. Já tenho uma carreira longa e gostava que ele ainda pudesse ver-me no palco e percebesse quem eu sou, ou quem eu fui.

Houve uma altura em que a tua vida era mais louca. É um tempo que já lá vai, esse dos romances de capa de revista em que namoravas top models? Claro que, quando te convertes numa pessoa que viaja por todo o mundo e que frequenta os meios em que se encontram as pessoas mais glamorosas, do mundo da moda, do mundo do cinema, do mundo da música, vais a eventos, vais a apresentaç­ões, aos Grammy, aos Óscares, aos MTV Awards, é lógico que conheces as pessoas e pronto acabei por conhecer pessoas e ter relacionam­entos com elas. Na altura, fui muito perseguido pelos paparazzi, isso durou muito tempo. Mas isso também faz parte da vida de um artista.

Mas isso não te incomodava, esse tipo de situações? Ui, muito. Eu conheci o lado feio da fama. Senti-me muito incomodado. Numa das minhas relações mais famosas, terminei a relação porque já estava cansado de tanta perseguiçã­o. Porque, desculpem-me a expressão, mas eu ia à retrete e tinha lá um fotógrafo, praticamen­te. Estás a tomar banho e há um tipo a fotografar-te... por favor.

A imprensa espanhola, achas que é [nesse aspeto da invasão de privacidad­e] melhor do que as outras? A imprensa? Acho que não.

E é pior com os espanhóis do que com os outros? Acho que é pior com os espanhóis por uma razão. Por exemplo, quando eu vivia em Londres, pelo menos aí tinha quatro ou cinco paparazzi que me seguiam, mas que pediam licença para me fotografar­em. “Posso tirar-te uma foto, por favor?“, “ok, mas é uma foto e pões-te a andar”. E pronto, posso continuar a passear pelo Hyde Park, ou seja por onde for. Uma foto e acabava-se. Em Espanha, não. Mais do que uma vez eu quase... acabei ao soco com um paparazzo. Uma vez, fui a correr atrás de um. “Pá, eu mato-te! Já não aguento mais, deixa-me!”

Alguma figura espanhola disse, há tempos – creio que foi a Penélope Cruz –, que a imprensa espanhola era muito pior com as personalid­ades espanholas que tinham sucesso. Acredito que sim. Para mim, era duro. Era duro sobretudo porque não havia respeito. Tiravam fotos a torto e a direito. Estavas num sítio e estava um fotógrafo aqui, outro acolá, um debaixo de um carro, outro empoleirad­o.

Achas que os espanhóis não gostam que os artistas saiam de Espanha? Não, não creio que seja isso. Acredito que seja... há um provérbio espanhol que diz “nadie es profeta en su tierra”. Quando triunfas fora, ao nível internacio­nal, gera-se amor e ódio, gostam que triunfes, mas, ao mesmo tempo, há inveja do teu triunfo. Imagina uma situação – falo do meu caso porque só posso falar do meu: se eu, em vez de ter nascido em Espanha, tivesse nascido na América, já tinha uma estátua no Central Park. Claro. Porquê? O que é que os americanos têm? Por exemplo, têm o Michael Jackson e ele é o logo um deus, mitificam-no logo. Em Espanha, quanto mais famoso te tornas e tal, menos... enfim, não sei. É uma coisa estranha.

Repara, eu nasci em Córdoba, no Sul. Em Córdoba nunca me fizeram nada [em termos de homenagem] e eu sou, muito provavelme­nte, o cordobês mais universal da história. E estou vivo! É que, ainda por cima, não estou morto. Achas que alguém chegou ao pé de mim em Córdoba e me disse “olha, vamos fazer-te uma homenagem”? Já me fizeram homenagens em meio mundo, em países que não são Espanha, mas em Espanha, nada. Porquê? Bom, tudo bem, não querem, no pasa nada, não estou a pedir que me deem uma medalha. Agora... é estranho que vás à Rússia ou aos Estados Unidos e te deem tal e chegas a Espanha e não te dão nada, “olha, este é o dançarino”, “ah, sim, pois é, está bem”. [Risos.]

Agora tens uma vida muito mais tranquila. Sim, se bem que, logo que comece a tour, toda a gente vai começar a falar de novo, aqui, na Europa, na América... Daqui a uns meses, falamos.

Nas histórias de sucesso, há momentos em que a fama sobe à cabeça. Alguma vez aconteceu contigo? No meu caso, o problema foi ter-me tornado famoso ainda muito jovem e muito rapidament­e. Aos 20, 21 anos, estou em Paris no Teatro dos Champs Elysées, os críticos começam a dizer “é o mestre dos mestres”, “é um génio”, “nasceu uma estrela” e, de repente, vêm grandes criadores de moda, como o meu amigo Giorgio Armani, como o Jean-Paul Gaultier, como o Valentino, como o Gianni Versace, todos a quererem vestir-te, todos a quererem que vás às suas festas, à sua casa, começas a frequentar o mundo das modelos, o mundo das atrizes, dos atores, dos produtores, toda a gente queria conhecer o Joaquín Cortés. O teu êxito dispara e, nesse momento, é difícil digerir um sucesso tão grande e tão rápido. Ficas “o que é que aconteceu?”, porque continuas a ser tu, a ser um bailarino. Gosto do bailado, sou um apaixonado pela dança e quero criar espetáculo­s e criar emoção para o público. Mas não pretendia esse sucesso tão grande e tão repentino em todo o mundo. Segurament­e,

ao início ter-me-á subido um pouco à cabeça. Mas apenas o normal. Tive a sorte de ter a minha família que sempre me dizia “põe os pés no chão, não enlouqueça­s, porque a vida continua e vão passar muitos anos – o mais é importante é que te aguentes lá em cima, não é que subas muito e depois caias”. Nesse sentido, penso na minha vida e sinto-me um homem afortunado, um privilegia­do, porque vivi uma vida incrível – e agora estou a viver uma nova etapa que tem sido extraordin­ária, não só ao nível familiar, por causa do meu filho, mas também ao nível criativo. Com a idade que tenho, começas a criar de uma maneira diferente. Começas a ir buscar outras coisas, outras ideias. Mas continuo, e continuo motivado como quando tinha 20 anos, mantenho a intacta a minha paixão pela dança. Pela arte, Pela música, pela dança.

Podes falar-nos um pouco do teu novo espetáculo? Sim. Chama-se Essência e a história concentra-se no que é a fusão dos vários tipos de dança, o ballet clássico, a dança contemporâ­nea, dança espanhola, flamenco, dança moderna, e, ao nível musical, também misturo a música flamenca com a música clássica, com música latina, com música árabe. Enfim, é uma mescla de tudo. No fundo, é um pot-pourri do que fiz ao longo de todos estes anos. Este espetáculo é um pouco como, através de tantas viagens pelo mundo, de tantas experiênci­as, de tantos anos de trabalho... é como que um trabalho sobre isto, sobre o que eu vivi. As emoções que senti ao percorrer todos os países por onde passei.

Tenho uma assinatura pendente que é fazer algo com o fado. O fado é muito parecido com o flamenco. Há aí qualquer coisa e, agora que estou a viver em Portugal também, deveria começar a pensar um pouco – aliás, já comecei a pensar – em ideias para poder fazer algum dia uma fusão, ao estilo Joaquín Cortés, do que é o fado com o meu estilo de dança. Seria interessan­te, porque seria eu, como artista, a mostrar como cresço, como vou evoluindo.

“CONTINUAM A RECONHECER-ME, FAZEM AQUELA PERGUNTA ‘TU ÉS O JOAQUÍN CORTÉS?’, MEIO INCRÉDULAS. ISTO É INCRÍVEL DEPOIS DE TANTO TEMPO”

Em breve, começas a tua digressão internacio­nal. Será de quanto tempo? Se tudo correr bem, espero estar, no mínimo, de dois a três anos em digressão. Isto, para fazer uma tour mundial. Não estamos a falar de ir a Madrid e a Lisboa e parar a seguir. Tens de ir à Ásia, à América, a África, tens de ir até à Austrália, tens de correr o mundo. E tens de ir com a tua companhia a todo o mundo. Isto pode significar viajar até 80, 90, 100 países. Vou começar agora, estamos a arrancar e provavelme­nte vamos passar 2020 e depois 2021 em digressão.

E é muito duro andar em digressões dessa dimensão? Não. Isto é, para mim, não é duro porque eu adoro andar em digressão. Quando estou no cenário, quando estou em palco, adoro estar com o público, é algo que me deslumbra. É algo maravilhos­o, recorrendo ao movimento do corpo, a uma expressão que é universal, poder contar histórias ao público. Para mim, se estiver dois anos ou três anos a viajar pelo mundo, eu estou feliz porque estou a contar as minhas histórias.

Nesta digressão, vais levar o teu filho contigo? Sim, se Deus quiser, porque quero que ele sinta estas emoções, quero que ele saiba quem é o seu pai.

Já tens uma data para espetáculo­s em Lisboa? Ainda não, mas no ano que vem, temos de vir aqui. No ano que vem temos de atuar em Lisboa, temos de ir também ao Porto, fazer pelo menos um par de concertos. Dois ou três shows mais pequenos, por exemplo, aqui no Coliseu, ou então um grande. Eu gostaria que fossem os mais pequenitos, para sentir as pessoas mais próximas de mim, para ser mais íntimo.

Falávamos da dureza das digressões: tu tens 50 anos. Ainda te sentes em forma? Agora, neste momento, ainda tenho de perder quatro quilos ou cinco. [Risos.] Mas vou perdê-los. Dentro de três semanas, tenho de estar impecável. Já reduzi cinco a sete quilos e tenho de perder mais cinco. É duro, mas...

E sentes diferença na performanc­e por causa da idade? Não, eu... sabes o que é? Eu acho que isto só pode ser da genética. O corpo tem memória e eu tenho uma genética muito boa. Eu começo a dançar e posso estar 40 ou 50 minutos a dançar forte, sem parar. Há outros bailarinos que vêm e dizem “uau, eu não consigo fazer isso, como é que fazes isso? Qual é o teu segredo?” – e eu não tenho segredos, ponho-me a dançar e continuo, continuo, como se tivesse pilhas alcalinas, tenho muita resistênci­a, duro, duro e duro. Acredito que é a genética. Para além, claro, do trabalho, do esforço, do sacrifício.

Porque é que a tua digressão de agora não vai começar em Espanha? Tem a ver com aquilo de que falávamos há pouco? Não. A pergunta é: para quê? Quando és um artista global, é diferente. Já estreei obras minhas em Nova Iorque, em Londres, em Paris. Porquê fazê-lo em Espanha? Se eu vou ter muito mais sucesso se o fizer, por exemplo, estreando aqui, em Portugal, ou em Nova Iorque, ou noutro lugar, vai ter muito mais repercussã­o do que se o estrear em Espanha. Isto acontece ao nível mundial. Para quê fazê-lo em Espanha? É só pensar nisto.

A política em Espanha, como a vês? A política em Espanha vai muito mal. Eu gosto de me afirmar apolítico, mas no fim de contas tu tens as tuas próprias crenças, acreditas na tua própria política. Acabas por falar de política. Em Espanha atravessam­os um momento horrível. Porquê? Porque não há grandes líderes políticos. Com todo o respeito pelos líderes que temos agora mesmo, não há personagen­s que tenham o carisma que tinham líderes anteriores e Espanha vai passando um momento um pouco complicado. Com o tema também da Catalunha, estamos num momento de tensão brutal, vamos ver o que vai acontecer. Estamos num momento de crise total. E agora com as eleições quem irá ganhar? É certo que vão ter de ser feitas coligações. A realidade é que não sabes quem vai governar e não há nenhuma personagem com carisma. E sobretudo não existe um projeto político que seja, nos dias de hoje, interessan­te. Espanha é, dentro da União Europeia, um país interessan­te por toda a influência que tem por causa das pessoas que vêm da América Latina, por tudo o que temos ao redor, pelo turismo, há mil coisas. Agora, falando de política, não temos grandes políticos. Esse é, para mim, o maior problema de Espanha neste momento.

O que é que te levou a mudares-te para Lisboa? Olha, vou ser muito sincero: tal como aconteceu com os meus companheir­os que, antes de mim, se mudaram para outros países – o Banderas, o Julio Iglésias, a Penélope, o [Javier] Bardem, etc. –, saí de Espanha porque, ao ter um filho, perguntei-me: “Porque é que eu hei de pagar tantos impostos em Espanha se não me agradecem nada – culturalme­nte falando, sou Espanha, sou marca de Espanha no mundo –, porque é que lhes hei de dar esse dinheiro se o posso dar ao meu filho?” Percebes? Este é um lado, é o tema fiscal. Depois há outros aspetos. Mudo-me de Espanha porque já vivi em muitos sítios, já vivi em Paris, já vivi em Londres, já vivi em Nova Iorque, adoro Lisboa, não porque agora está a crescer, mas porque sempre gostei de Lisboa – é uma cidade antiga com uma certa decadência, tudo isto é mágico, como artista, como criativo, isto ajuda-me muito. Portanto, é um país que sempre me chamou muito a atenção, sempre gostei de Portugal e visitei-o muito desde que era muito jovem. Lisboa agora é uma cidade mais cosmopolit­a, está na moda, vem muita gente para cá, para conhecer, e este é o momento.

Conheces bem o resto de Portugal, para além de Lisboa? Sim, sim, sim... Muitos sítios. Claro, Lisboa e Porto. Bom, deveria andar a conhecer mais ainda, aproveitan­do que agora vivo aqui. E agora que tenho o menino, devia enfiar-me no carro e “vamos fazer quilómetro­s por Portugal e conhecer mais”. Assim que eu tenha tempo, pego num carro, na mulher e no bebé e vamos passear.

Não sei qual é o teu nível de conhecimen­to acerca da comunidade cigana em Portugal. Não tenho muito, sei pouquíssim­o.

Mas sabes que é uma comunidade que se debate com diversos problemas de integração social, cultural... Sim, sei que há problemas mais graves de integração dos ciganos em Portugal do que em Espanha. Sim, é uma perceção correta. Acho que aqui há um bocadinho mais de preconceit­o. Em Espanha também existe, mas acredito que em Espanha os ciganos se tenham, entre aspas, “moldado” mais à cultura, à população espanhola, aos brancos. Aqui, em Lisboa, vejo mais separação, ciganos para um lado, portuguese­s para o outro.

E tu sentiste problemas? Aqui?

Não, não. Mesmo em Espanha, enquanto cresceste. Sabes que o problema, e eu digo sempre isto, o problema não está nas raças, nas etnias. O problema está nas diferenças de classe social. Vais aos Estados Unidos e um negro está em Brooklin, caído na rua, e é um problema para a sociedade americano. Mas, de repente, uma cantora como a Beyoncé é a rainha da América e, lá está, porquê? Porque tem dinheiro. O problema está sempre nas classes sociais. Sempre se passou assim e continua a passar-se. Em Espanha, se vives, se és um cigano que é artista, se és um promotor económico que vive bem, está tudo bem, és um senhor. Se és um cigano que anda pela rua e tal, és um delinquent­e. Já vais roubar, “cuidado, cuidado”. É assim com todos, com o negro, com o cigano, com o judeu – bem, com o judeu não, porque os judeus todos têm dinheiro. [Risos.]

E como é que a comunidade cigana te vê a ti, tendo sucesso, tendo dinheiro, sendo famoso? A sociedade aceita-te melhor, mas e os ciganos, aceitam-te? Os ciganos, na sua maior parte, aceitam-me. Uma parte também me admira. Mas, sobretudo, aquilo que mais me importa nesta questão, é que os miúdos me veem como uma espécie de herói. Esta pergunta é muito boa. E aos miúdos, os adultos de amanhã, apetece-lhes ser tu, ser como tu, porque és famoso, porque tens um carro maravilhos­o, porque tens dinheiro, porque a sociedade e todo o mundo te admira.

Isso, por um lado, é importante. Mas também há um setor, há alguns que, por inveja, olham e dizem “tu chegaste aí, mas eu não consegui chegar aí”. Bom, eu cheguei aqui e tu não, mas tu não trabalhast­e o que eu trabalhei. Se eu cheguei aqui é porque trabalhei. Ou seja, tu também podes consegui-lo. O que acontece é que é mais fácil não trabalhar e fazer o teu tipo de vida, do qual eu não compartilh­o. É por isso que defendo que é tão importante que os miúdos pequenos tenham uma boa educação e bons princípios. Acredito que entre as etnias minoritári­as isto seja mais complicado. Se bem que já não somos uma etnia assim tão minoritári­a. Hoje em dia, há muitos ciganos no mundo. Mas entre as etnias minoritári­as há sempre mais problemas, mais conflitos, por isso, por se separar a educação.

Que tipo de intervençã­o procuravas quando criaste a Fundação Gitana Joaquín Cortés? Queria encontrar uma forma de criar projetos com as crianças e mudar um pouco a imagem dos ciganos na sociedade, ao nível global – primeiro, na Europa, e depois no mundo. Continuamo­s a ter preconceit­os e os preconceit­os não ajudam à evolução dos menores. O que é que eu quero dizer com isto? Os primeiros que têm de fazer com que os meninos vão à escola são os pais deles. Há muitos pais que não querem que os meninos vão à escola por causa da sua ideologia, do seu pensamento. “Ah, vão à escola e são ciganos, mas vão com não ciganos, o menino tem é de ficar comigo e de trabalhar” – não, nada disso, a criança tem de estudar. Quando criei a Fundação Gitana, foi também para mostrar aos pais que as crianças tinham de estudar, que tinham de ter um mínimo de estudos para ter uma educação, uma base educaciona­l. Mas eu digo sempre que estes programas avançam sempre muito devagar, são muito lentos, porque é muito difícil convencer todos – por outro lado, também há a parte não cigana, a parte portuguesa, ou espanhola, a parte branca, que tão-pouco ajuda a que tal aconteça. No fim de contas, é um problema de convivênci­a, há que aprender a conviver entre todos e há que ter sobretudo a tal base, a tal educação. Se tivermos essa base, esses meninos, quando crescerem, vão ser pessoas educadas e não vão querer ter uma vida difícil. Vão querer trabalhar e viver em sociedade, convivendo.

“EU CHEGAVA A UM SÍTIO E A MAIORIA DO PÚBLICO ERA FEMININO. 80% ERAM MULHERES. E OS OUTROS 20% ERAM MARIDOS LEVADOS PELAS MULHERES”

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ASSISTENTE DE STYLING: MARIA FALÉ. A GQ AGRADECE AO TEATRO TIVOLI POR TODAS AS FACILIDADE­S CONCEDIDAS.
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