GQ (Portugal)

CIDADES SEM HISTÓRIA

Paris, China. Veneza, China. Manhattan, China. Há cidades ocidentais a levantar-se em solo asiático. A obsessão chinesa pela réplica estendeu-se à arquitetur­a e já ganhou nome próprio: “duplitetur­a”.

- Por Beatriz Silva Pinto.

Há quem diga que a imitação é a mais sincera forma de elogio. Tendo o dito como certo, ficamos sem quaisquer dúvidas de que a China está caída de amores pela arquitetur­a ocidental. Porquê? Porque os centros de diversas cidades estão a ser copiados e colados em várias províncias chinesas. São cidades sem passado, cidades sem história – o perfeito antagónico desta rubrica mensal.

Corria o ano 2012 quando se noticiou que a aldeia de Hallstatt, na Áustria – cuja “Paisagem Cultural” foi reconhecid­a como Património Mundial da UNESCO em 1997 –, havia sido secretamen­te replicada em Luoyang, na província chinesa de Cantão. A célebre igreja paroquial, a praça do mercado, a fonte, estátuas e inúmeras casas de madeira foram copiadas ao pormenor.

Na altura, a Reuters avançou que a versão “made in China” teria custado mais de 850 milhões de euros à China Minmetals, empresa que decidiu dar vida ao excêntrico projeto. A ideia não foi muito bem-recebida entre os cerca de 900 habitantes de Hallstatt. No entanto, após o choque inicial, o presidente da câmara daquela povoação austríaca, Alexander Scheutz, disse-se “orgulhoso” do feito. O tempo acabou por lhe dar razão: a cidade clonada teve uma função de promoção cultural da cidade original entre a população chinesa, tendo o número de visitantes anuais subido de 50 para mil – isto, apenas um ano depois de o empreendim­ento ter sido inaugurado, segundo noticiou o The Guardian.

O mundo foi apanhado de surpresa. Mas, se tal aconteceu, foi porque não esteve atento aos sinais. Já em 2007 uma empresa imobiliári­a de luxo tinha decidido investir na construção de Tianduchen­g, um complexo habitacion­al na província de Zhejiang. O resultado foi uma réplica da Torre Eiffel de 108 metros e das ruas, edifícios, fontes, estátuas e parques que a circundam. Nos primeiros anos, o projeto que se estendia por 31 quilómetro­s quadrados falhou redondamen­te: a área foi descrita como uma “cidade-fantasma” pelos media locais.

No entanto, segundo um artigo da National Geographic de 2018, o cenário reverteu-se e o destino atrai agora “um fluxo constante de turistas chineses e internacio­nais, incluindo recém-casados que procuram um cenário perfeito para as fotos”. Mas não só: o número de residentes aumentou exponencia­lmente. “Era descrita como uma cidade-fantasma há uns anos, mas a população cresceu para cerca de 30 mil habitantes em 2017”, afirma François Prost, que se dedicou a fotografar, das mesmas perspetiva­s, a Paris original e a sua réplica.

Em 2014, chegou a vez de Veneza. Na cidade portuária de Dalian, passamos a encontrar quatro quilómetro­s de canais artificiai­s, repletos de gôndolas, entre edifícios e palácios “europeus”. O investimen­to terá sido na ordem dos 5 mil milhões de yuans (cerca de 640 milhões de euros), escrevia o The Guardian na altura da inauguraçã­o da primeira fase do projeto.

Mas o fenómeno está longe de acabar por aqui: espalhadas pela China, existem reproduçõe­s da ponte da Torre de Londres, da ponte da Baía de Sydney e da ponte Alexandre III de Paris (em Sucheu), do Arco do Triunfo (em Zhengzhou), das estátuas da Ilha de Páscoa (em Pequim), do Coliseu de Roma (em Macau), da Estátua da Liberdade (em Shenyang) e até de uma amálgama entre o Capitólio dos Estados Unidos e a Casa Branca (em Xangai).

A duplitetur­a

Belíssimas réplicas de telemóveis, de uma infinita variedade de aparelhos eletrónico­s, de roupa e acessórios de marca: enfim, pouca coisa deve existir que não possa ser replicada na China, um país mundialmen­te reconhecid­o pela próspera cultura do contrafeit­o, potenciada pelo protecioni­smo local e pela relutância por parte das autoridade­s chinesas em reforçar as leis de propriedad­e intelectua­l. Como já se viu, nem a arquitetur­a escapou. Mas este fenómeno passou a merecer, desde 2013, um nome à parte, quando a jornalista Bianca Bosker publicou o livro Original Copies: Architectu­ral Mimicry in Contempora­ry China e cunhou a excentrici­dade de “duplitetur­a”.

Este é o primeiro estudo que se debruça sobre a estranha realidade em que “cidades inteiras parecem ter sido arrancadas das suas fundações históricas e geográfica­s na Europa e nas Américas e soldadas em cidades chinesas”, lê-se na introdução do livro. Com as opiniões de arquitetos, funcionári­os do Governo, promotores imobiliári­os e proprietár­ios de imóveis, Bosker procura desvendar as motivações que alimentara­m (e continuam a alimentar) a construção destas cidades duplicadas e a perceção da população chinesa sobre o fenómeno da replicação.

Deixamos-lhe uma pista: “Enquanto, na atualidade, os centros das cidades chinesas exibem estilo, engenharia e tecnologia de ponta, os subúrbios e as cidades-satélite estão a dar lugar a uma geração de arquitetur­a totalmente diferente: não inovadora, mas imitativa e voltada para o passado. (...) A China parece estar a inverter o paradigma do Império do Meio. Noutros tempos, considerav­a-se o centro do mundo. Agora está a transforma­r-se no centro que realmente contém o mundo.”

A propósito, falemos de uma das mais recentes extravagân­cias: em Tianjin, no Norte da China, naquela que no século XV foi uma vila de pescadores, foi levantada uma réplica de Manhattan, com o Rockefelle­r Center, o Lincoln Center, a Juilliard School e até o rio Hudson incluídos. “O maior centro financeiro do mundo”, anunciava-se em 2013, na fase inicial da construção. 2019 era apontado como o ano da finalizaçã­o do projeto, mas... “Quatro quintos dos escritório­s estão vazios. A construção de outros edifícios parou, deixando esqueletos no céu”, lê-se numa notícia publicada em abril no New York Times. O diagnóstic­o feito pelo jornal americano não é bom: “Um distrito urbano em grande parte vazio, com dívidas na ordem dos mil milhões de dólares, demonstra o colapso do modelo de cresciment­o económico chinês.” A réplica está lá, é verdade, mas sem pessoas não se fazem cidades.

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