GQ (Portugal)

IMAGENS SECRETAS

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

Uns 12 anos atrás, num daqueles parques que estimulam ou simulam a liberdade da natureza nas metrópoles europeias, uma cigana puxou a minha mão e pôs-se a ler coisas nas linhas dela. Não me perguntou o nome nem a idade, não quis saber do invólucro específico que se encarregav­a de mim desde o começo. O meu começo. Lembro-me que eu caminhava sozinha entre o lago e o arvoredo quando ela levantou o corpo do banquinho e se agarrou à minha camisa. Nem deu tempo de me recompor do susto que de vez em quando a intervençã­o de um corpo noutro traz, que a rasteira de uma vida noutra vida pode dar. Quando dei por mim já ela passava a mão na minha e revirava um pouco os olhos. Porque eu caminhava sozinha há tanto tempo, tão natural entre as coisas, nem sequer aconteceu de lhe oferecer as minhas defesas pré-concebidas.

Caminhamos todos sempre um pouco defendidos, mais ainda se formos fruto e flor da cidade europeia. Mas a cigana veio tão de repente, tão certa de sua visão, que num segundo lá estava eu, de mão estendida a ouvir as palavras dela. Falou-me do tempo e das chances que o tempo dá aos homens. E, sem ela saber nem eu onde é que a minha vida ainda haveria de ir dar, sugeriu-me que não falasse tanto. Que aprendesse a receber o segredo e a cuidar um pouco dele. “Fale menos”, disse ela. Disse só aquelas duas palavras, mas daquilo eu retive também uma frase inaudível que parecia sussurrar: “Receba aquilo que vem do espírito entrelaçad­o nas palavras e faça por guardá-lo um bocado só para si.” Depois largou a minha mão e foi embora, não sem antes me piscar o olho. Acontece que eu não tinha nem 30 anos, era estrangeir­a de país mas não de continente, esforçava-me ainda só por saber distinguir os plátanos dos castanheir­os, pensava mesmo que dali para a frente só ia querer saber de um domingo no parque e nada mais. Estava longe de sequer antecipar os desastres amorosos que cairiam em meu colo, ou o espanto que viria antes disso. Não estava nem aí para as horas que ainda havia de passar em filas de aeroporto, ou de supermerca­do, menos ainda para as lágrimas que escorreria­m desde o meu olho mau até ao colarinho da minha camisa. Acima de tudo eu não tinha a menor ideia de que dali a pouco tempo eu começaria a dedicar uma percentage­m grande dos meus dias às palavras.

Na semana passada viajei para outra cidade europeia, uma que também não é minha e que por acaso também está repleta de parques. Porque eu mudei e as cidades também, agora eu caminho sempre um bocado mais defendida. Faço por antecipar a chegada de um estranho à bainha da minha camisa, embora não esteja certa de que isso faça muito por mim. Preservand­o-me dos surgimento­s súbitos eu afasto-me dos sussurros, e suspeito que os sussurros nos instruam bastante. Seja como for, desta vez ninguém surgiu do arvoredo para ler a minha mão, nem nenhum destino me foi ditado. E eu, já que estava de férias, fiz também por me afastar da palavra escrita o mais que pude, sabendo à partida que a tarefa seria inglória. Mais difícil que aprender a ler é aprender a desler. Mas desta vez eu fixei a minha atenção nas imagens, abandonand­o um pouco os vocábulos presos nos livros, nas paredes dos museus, até mesmo nas gargantas das mulheres e dos homens que constantem­ente nos ditam coisas. Vi então traços geométrico­s coloridos que pareciam mesmo simular o canto de um pássaro. Vi desenhos sanguíneos onde a barba de um homem ia envelhecen­do de facto no papel, trocando as voltas ao tempo. Vi cartazes levantados na avenida e nesses cartazes estavam esboçadas as montanhas de um país distante. Vi esculturas mínimas cravadas em osso. Vi a caligrafia de um pintor espalhada na tela, rejeitando a palavra legível mas nem por isso abandonand­o as histórias. Aliás, em todas as imagens eu vi como planavam as histórias, e desta vez as histórias não precisavam de palavras. Lembrei-me então da cigana, que na verdade eu nunca esqueci. Quando ela me sugeriu que falasse menos ou até que escrevesse menos, ela não quis sugerir que abandonass­e as narrativas. Quis, isso sim, que me aproximass­e um pouco mais do segredo. O mesmo espírito que está entrelaçad­o nas palavras vem impregnado nas imagens. O mesmo tesouro que se revela pela garganta, ele está impresso em nossas mãos.

Numa época revolta como a nossa, talvez importe sim falar um pouco menos e observar um pouco mais. Porque as histórias não estão nem um pouco preocupada­s com a época – elas existem debaixo de fogo ou na sombra do parque, lambem as paredes do supermerca­do tanto quanto lambem a parede de um museu, estão para lá da palavra escrita ou da palavra dita. Brotam quando querem, de qualquer colarinho: esteja ele encharcado em lágrimas ou aberto ao calor de uma cidade estrangeir­a. Estão aí como sempre estiveram, prontas a saltar de um banquinho e a ensinar-nos alguma coisa permanente, secreta, sem tempo nem defesa.

NUMA ÉPOCA REVOLTA COMO A NOSSA, TALVEZ IMPORTE SIM FALAR UM POUCO MENOS E OBSERVAR UM POUCO MAIS

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