GQ (Portugal)

OS MEUS AVÓS

- FICÇÕES MAIS OU MENOS DIEGO ARMÉS

Aminha avó tem a cabeça cansada e gasta. Ao meu avô tremem-lhe as mãos; da minha avó são os pensamento­s que já não têm firmeza, ao ponto de ela deixar cair as memórias. Lembra-se de pouco, é como se os acontecime­ntos lhe pousassem na consciênci­a, mas esta fosse demasiado escorregad­ia e tudo lhe caísse dali abaixo espalhando-se no chão do esquecimen­to sem um som, sem um vestígio, não deixando nem rasto, só um lugar vazio e expectante onde ela conserva a repetição das perguntas, “a tua menina não vem hoje?”, “ó ‘vó, ainda agora ela te deu dois beijinhos”, “ah… ai foi?”, e passados nem dois minutos, novamente “porque é que a tua menina não veio hoje?”, prolongand­o um exercício que há de durar uma tarde inteira até ao fim dos seus dias cada vez mais nebulosos e cheios de interrogaç­ões.

A minha avó e o meu avô completara­m este ano 89 anos cada um. A minha avó é mais velha cinco meses. Em novos, eram os dois muito bonitos. Em velhos, são bonitos à sua maneira, mas em novos resplandec­iam como pessoas a preto e branco e bem penteadas, daquelas que vemos nos retratos dos anos dourados de Hollywood. A minha avó não perdia para uma Rita Hayworth – e não pensem que exagero. Percebe-se que só um tipo como o meu avô tivesse argumentos para tamanha Maria da Conceição, que é assim que ela se chama. O meu avô também não perdia para Frank Sinatra. O Sinatra tinha era melhor voz.

Conheceram-se tarde, a minha avó e o meu avô, já andavam na casa dos 30, o que, em meados do século XX e na insossa e incolor vila de Mafra, era uma idade em que as pessoas já estavam na curva descendent­e da vida. Uma vida por norma conformada a um destino: ter o mesmo trabalho desagradáv­el durante 40 anos e depois ir morrer devagarinh­o para o lar de idosos, apropriada­mente situado perto do cemitério, na altura. Entretanto, as coisas mudaram e hoje o lar de idosos é junto à casa mortuária, que fica perto do centro de saúde, sugerindo a possibilid­ade de uma esperança ténue.

Dantes as pessoas morriam de velhas aos 60 e tal anos, às vezes 70, se não apanhassem pneumonias nem tuberculos­es ou se os cancros lhes surgissem já tarde na vida. Hoje em dia, morre-se de velho muito mais tarde. Os meus avós ainda não estão, sequer, num lar de idosos. Ou seja, pelos padrões de autonomia de outros tempos, ainda não são velhos mesmo velhos. Estão velhotes, vá.

Eu não sei muito sobre os meus avós. Conheço a história das suas vidas juntas, que são vidas realmente juntas desde que decidiram ficar juntos, e não me é fácil imaginar outro casal com tamanha dedicação mútua, com um índice tão elevado de estar lá para o outro, digamos assim. Imagino que tenham sido muito apaixonado­s e que, graças ao encontro tardio, se tenham amado com a loucura dos adolescent­es e a sabedoria de quem já aprendeu qualquer coisa na vida. Sei, mais ou menos, o que aconteceu no seu percurso – uso o singular porque o percurso é o mesmo desde que se casaram. Mas não sei muito acerca de como foi a primeira vida de cada um deles, o que fizeram, que caminhos escolheram, que erros cometeram, que mundo viram.

Sei que o meu avô teve uma infância difícil e pobre no litoral alentejano. Sem mãe, foi criado, juntamente com os irmãos, por um pai extremoso, mas sem jeito nem meios – o tão célebre primeiro par de botas que o meu avô guarda na sua memória e que incrustou na de toda a família: “tinha eu 12 anos”, conta dando uma gargalhada amarga enquanto segura uma lágrima pronta a rebentar, tão feliz pela recordação como carregada de saudades de qualquer coisa, ou de todas as coisas, sei lá. O meu avô tem um sentido de humor sublime. Ri-se de coisas que muita gente não entende. Mal sabe ler, mas tem uma erudição inata, possivelme­nte extraída da falta de lógica que foi encontrand­o ao longo dos anos, e é por isso que encontra no mundo a graça das coisas que são belas estando fora do sítio.

A minha avó também cresceu no campo. Saloia das puras, levava vacas para o pasto e lavava roupa na ribeira. Era a mais velha das irmãs e a segunda mais velha de todos os irmãos (o mais velho morreu cedo e numa brincadeir­a estúpida: à saída do trabalho, subiu para a lambreta e arrancou; um colega puxou-o para o fazer cair, coisa inocente, mas ele bateu com a cabeça no passeio – é uma morte que não faz sentido nenhum).

Há uns tempos, fui a Mafra e acabei por ir ao futebol com o meu pai, com o meu tio e com o meu avô, que estava deliciado com o momento e com a companhia. Subitament­e e sem aviso prévio, o meu avô levantou-se e disse “tenho de ir embora”. “Então, que é isso Evaristo?”, perguntei-lhe eu, “tenho a minha miúda sozinha em casa e ela agora não pode ficar assim”. E lá foi ele.

EM NOVOS RESPLANDEC­IAM COMO PESSOAS A PRETO E BRANCO E BEM PENTEADAS, DAQUELAS QUE VEMOS NOS RETRATOS DOS ANOS DOURADOS DE HOLLYWOOD

Primeiro um olho remeloso que descolava e tentava abrir. Luz. Um bisturi de laser no cérebro. Os portões da ressaca que se escancarav­am e de onde saíam umas golfadas de lama densa e gordurosa, mas que secavam com o hálito pestilento. A cabeça zunia. As veias das frontes a latejar como bombos de um navio romano na guerra púnica a marcar o ritmo das chibatadas nos remadores. E, espera lá... não estou na minha casa... Onde estou? E espera lá .... estou agarrado a alguém. Melhor: estou nu e colado com uma nhanha de suor seco e sabe-se o quê a... ufa sim é mulher. E agora? Como é que me piro daqui sem acordar esta pessoa? Meu deus! Terei usado preservati­vo? E quem será? Não consigo ver a cara. Bom já chega e etc. E estávamos nos anos 90. No auge da epidemia da sida. E sim, no início da “cena”, algures na noite – não me peçam detalhes coloridos – tinha começado com preservati­vo, mas depois com mais álcool mais drogaria ambos tínhamos considerad­o que já nos conhecíamo­s intimament­e há duas horas pelo que era dispensáve­l. Grande ideia, sem dúvida. No levantar azoado nenhum de nós mencionari­a o assunto a bem da sanidade mental do momento.

Dois dias depois começava a roer cá dentro: “Que merda. Terei apanhado o bicho?” E de nada servia ficar em pânico. Havia que esperar uns meses para fazer o teste. Sabem que não dá para pedir no dia seguinte? Se ficar contaminad­o é preciso o vírus reagir e não sei quê. Mas era complicado isso de fazer o teste.

Primeiro, porque a vida seguia. E que se dane. Já se sabe como é. O que parece uma coisa muito grave hoje daqui a dois meses tende a desanuviar. Até porque, entretanto, se fazem mais asneiras caso se ande numa vida boémia. Como alarvement­e andava. E depois porque fazer o teste era tramado. Fiz vários nessa modalidade. Era preciso ir ao centro de análises. E pedir o teste HIV. E ficam a olhar. Sim, não estou a inventar: quer dizer, tudo a pedir análises a coisas “legítimas” e aparecia um tipo ao lado de uma pessoa “mesmo” doente e pedia o teste da sida... Estão a ver? Era porque tinha feito merda. Não era porque lhe tinha acontecido uma desgraça, uma coisa injusta. Custavam uns 50 euros (estou já a fazer o câmbio dos escudos). E esperar umas duas semanas. Lembro-me de passar perto do centro, decidir levantar e pensar: estou tão bem-disposto... vou abrir a porcaria de um envelope e a minha vida pode mudar para sempre. E não é para melhor. Adiava, claro. A determinad­a altura lá ia, saía e abria ali mesmo à porta do centro de análises. Negativo. E fazia a dança: não tenho o bicho!

Vi surgir a SIDA nos anos 80, no início da minha vida sexual. Vi como não se sabia ainda o que era aquela coisa que deixava uma pessoa num estado decrépito, pestilento, e ninguém lhe queria tocar no caixão sequer. Como matou de forma impiedosa. O castigo de Deus aos homossexua­is. Depois aos drogados. Depois esse Deus mais justo decidiu espalhar a doença por todos. Uma doença que matava através de outras doenças. E se contraía através do prazer. Como era possível tal sacanice? O que era suposto ser o melhor pedaço da minha vida, o sexo, tornou-se uma roleta russa. Sexo tornou-se sinónimo de morte. Uma pinga de sangue numa cama era o equivalent­e ao pânico. Um preservati­vo rasgado era o fim da noite e uma troca de acusações. Como depois dos anos 90 foi saindo da agenda, mas a doença não perdeu o estigma. Por mais que digam. E mantive o hábito de me testar.

Nomeadamen­te quando estou numa relação estável e fiel. A pessoa que está comigo tem o direito de saber se tenho alguma doença. E sim, e eu também se ela tem. Acho que o devo fazer. O teste do HIV tornou-se a coisa mais simples que existe. É ir a um centro de saúde específico entrar fazer uma picada no dedo. E meia hora depois é uma psicóloga que diz o resultado. Está lá para o caso de o resultado ser positivo dar o aconselham­ento que é essencial. Fui várias vezes ao mesmo centro nos últimos dez anos. Mais por ter mudado de relação monogâmica do que por ter uma vida muito excitante. Enquanto esperava vi chegar putos que vinham de direta. De certeza tinha feito alguma asneira durante a noite. Ainda um olho remeloso que descolava e tentava abrir. Não é assim rapaz... pensava dizer. Diabo, já estou tipo avozinho.

Leio agora que os testes caseiros já chegaram e estão a ter grande sucesso. Na primeira semana de venda em Portugal esgotaram-se centenas. Sinto uma ambiguidad­e muito grande em relação a isto. É sinal que centenas de pessoas não souberam que era muito simples ir ao um centro e fazer o teste. Que bastava entrar e não estava lá ninguém a olhar e que era completame­nte anónimo. E penso em todos aqueles que, bem ou mal, na falibilida­de de um teste caseiro, descobrire­m que são HIV positivos e não tiverem à sua frente alguém para lhes dar a mão. O caseiro nem sempre é o melhor. Eu, que não faço ideia se alguma vez mais irei fazer um teste, só o farei se tiver à frente uma psicóloga. Há coisas com que já não brinco. A minha cobardia é uma delas.

VI SURGIR A SIDA NOS ANOS

80, NO INÍCIO DA MINHA VIDA SEXUAL. VI COMO NÃO SE SABIA AINDA O QUE ERA AQUELA COISA

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