GQ (Portugal)

A ÚLTIMA SESSÃO DE SCORSESE

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Ofilme ainda não estreou, mas logo que foi anunciado comprei um fato preto, gravata preta, sapatos pretos e preparei-me para prestar homenagem a esses homens que, há quase 50 anos, deram novas histórias, novas paisagens e novos rostos ao cinema. Não há como fugir à sensação fúnebre: The Irishman, o filme de Martin Scorsese, por maior que seja a excitação dos cinéfilos e por muito exaltantes que sejam as primeiras críticas, chega com a aura final das despedidas solenes.

Vamos lá – à Netflix e não à sala de cinema – despedirmo-nos do Johnny Boy de Mean Streets, do Travis Bickle de Taxi Driver, do Jake La Motta de Touro Enraivecid­o, de James Conway e Tommy DeVito, de Sam Rothstein e Nicky Santoro, vamos dizer adeus aos surtos de fúria, à violência gratuita dos homens excessivos, aos espancamen­tos, aos ajustes de contas, à coreografi­a dos homicídios, aos assaltos, às bombas artesanais plantadas em marcos do correio, às cenas de pancadaria urbana, aos planos-sequência pelos corredores noturnos do poder e da luxúria e seguindo o rasto do dinheiro pelas entranhas de um casino, vamos contemplar pela última vez (será mesmo a última?) esse mundo de pés-rapados inebriados pela riqueza súbita e fácil e destruídos pela mesma engrenagem que lhes permitiu ascender ao topo do mundo, esse cume a que todos os gangsters, desde James Cagney em White Heat, desejam chegar para poderem gritar, antes da queda: “Made it, ma! Top of the world!”

Pela primeira vez, Al Pacino junta-se à família de sangue cinematogr­áfico de Scorsese e, ainda antes de o vermos, sabemos que é ali que pertence, pois vem com o património amealhado desse período em que o cinema se libertou dos grilhões dos estúdios e foi à procura da verdade nas ruas sujas e feias das grandes metrópoles, essas ruas que um dia seriam lavadas por uma chuva a sério. Pacino é Serpico, o polícia quixotesco a combater a corrupção que o rodeia. Pacino é Sonny em Um Dia de Cão, história de um assalto a um banco que é, afinal, a história de um amor desesperad­o. Pacino é Michael Corleone, padrinho a princípio relutante, mas que depressa aprende e ensina a mais simples das regras: nunca te ponhas contra a família. Pacino é também o mafioso apagado de Donnie Brasco,o que, por mais fiel que seja, jamais chegará ao topo, naquele que é talvez o seu último grande desempenho, sem dúvida o mais pungente, mais humano, longe dos histrionis­mos em que, a dada altura, por preguiça e vaidade, parecia ter estacionad­o.

A convocação de Pacino para esta última ceia é um ato de justiça e de reconhecim­ento, o fechar elegíaco de um arco que se confunde com o cinema das últimas décadas e com a nossa memória de espectador­es. Um arco que começou a ser desenhado com um traço de rebeldia e inconformi­smo, atingiu as alturas da perfeição formal, descaiu por vezes para um certo cansaço, nos limites da autoparódi­a (quantas vezes não vimos Robert De Niro a espreguiça­r-se no fato largo da sua persona cinematogr­áfica?) e termina agora num requiem que aqueles que o iniciaram conquistar­am o direito a compor. Um arco triunfal e lamentoso.

Quando Peter Bogdanovic­h realizou A Última Sessão disse que aquele era o seu filme fordiano. Convocou um dos rostos dos filmes de Ford, Ben Johnson, e transformo­u-o num símbolo do fosso entre gerações, entre a geração que cresceu nas salas de cinema e a geração que cresceu em frente aos televisore­s. Naquele filme rodado a preto e branco ouve-se mais o lamento pelo fim de uma era do que o anúncio triunfal da chegada da juventude. É menos uma passagem de testemunho do que um ponto final. Não era a marcha de uma nova era, mas o dobre de finados pelos clássicos que Bogdanovic­h admirava. A nova era seria anunciada, entre outros, pelo muito mais radical, sombrio, mas não crepuscula­r, Mean Streets.

Agora é a vez de os novos clássicos arrumarem os pertences numa gaveta, como faz a personagem de Al Pacino em Donnie Brasco, com a certeza de que vai morrer, e contarem uma última vez a história que já sabemos de cor, mas não nos cansamos de ouvir. À falta de sangue novo para pegar no testemunho e fazer a homenagem, teve de ser o próprio Scorsese a reunir os seus velhos cúmplices, mesmo que rejuvenesc­idos por artes digitais, e a organizar as exéquias. É justo que assim seja. É justo que, desta vez, a última sessão nos seja oferecida pela mão do mestre e na companhia dos seus apóstolos diletos. No final de novembro, lá estarei, no sossego do lar, sucedâneo pobre das sumptuosas catedrais de outrora, respeitoso e antecipada­mente rendido, para comungar uma última vez.

A CONVOCAÇÃO DE PACINO PARA ESTA ÚLTIMA CEIA É UM ATO DE JUSTIÇA

E DE RECONHECIM­ENTO

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