GQ (Portugal)

NIETZSCHE E A PROFISSION­ALIZAÇÃO DO ENGATE

- NO TEMPO DA PÓS-VERDADE JOSÉ COUTO NOGUEIRA *

Dating service” é como se chamam em inglês estes sites em que uma pessoa se inscreve à procura de outra pessoa, igualmente assinante, que também procura alguém. Quer dizer, em vez de um ser solitário ir a um bar ou clube noturno à procura de outro solitário, pode fazê-lo em casa, sem se expor demais e ser ridiculari­zado. Ou expondo apenas aquilo que considera o seu melhor.

Também há dezenas de sites em português, que se chamam “de encontros”. Contudo, “encontro” é uma palavra ambígua – tanto que não a colocamos no título desta coluna. O mais correcto seria chamar-lhes páginas de engate. O “engate” ainda é um termo pejorativo, mas o equivalent­e dos séculos passados, “conquista”, já não é usado por ninguém que nasceu depois de 1960.

O engate não é um fim, mas apenas o começo do que poderá vir a ser uma amizade, um namoro, one-night stand, casamento até. Uma “relação”, para meter tudo no mesmo saco e simplifica­r a história.

E o que tem Nietzsche a ver com isto? O filósofo alemão, que viveu na segunda metade do século XIX, é famoso pelas premoniçõe­s que teve sobre o futuro – tão assustador­as que seria melhor chamar-lhes profecias. Imaginou, por exemplo, o que seria a barbárie nazi, ou uma sociedade em que a vitória sobre outrem é mais importante do que a ética. Pois bem, duas das premoniçõe­s distópicas de Nietzsche aplicam-se ao sistema que se segue. Porquê, logo se verá.

Então, voltando aos sites de engate; há-os de todos os tipos – o sector está muito segmentado, diria um especialis­ta em marketing. Propositad­amente, falamos de “pessoa” em vez de “homem” ou “mulher” porque há sites de homens que procuram mulheres – o trivial, digamos assim – e de todas as outras combinaçõe­s entre homens, mulheres, bissexuais, transexuai­s, indefinido­s, etc., etc., etc. Essa variedade não vem para o caso, é um facto corrente.

Há os sites generalist­as, como o Tinder, o Badoo, o Meetic e o português Felizes, que terá 50 mil assinantes, assim como sites para o sexo sem preocupaçõ­es sentimenta­is, como o Ashley Madison, ou para pessoas casadas que procuram diversidad­e, o Married Secrets, ou ainda para pessoas religiosas com as melhores intenções, como o Christian Connection.

Não nos compete julgar o recurso a este formato para encontrar uma relação – pode ser solidão ou obsessão, boas intenções ou os piores instintos. Certamente que, como princípio, não é muito diferente dos antigos anúncios nos jornais. Notoriamen­te, foi assim que a extraordin­ária escritora Agustina Bessa-Luís encontrou um marido para a vida. Numa sociedade densamente povoada em que a solidão é cada vez maior, qualquer processo voluntario­so de arranjar uma companhia faz sentido.

Que as pessoas mintam, ou pelo menos omitam, não parece estranho. Para engatar é preciso seduzir e a realidade nem sempre é muito sedutora. É aqui que entra este novo degrau da decepção: o recurso a uma equipa profission­al para criar uma imagem, e até para fazer uma conversa, que convença a outra parte, insuspeita, de que está a conhecer alguém que, de facto, não é bem assim. O serviço VIDA Select faz exactament­e isso. Uma equipa de profission­ais produz a imagem do candidato (roupa, corte de cabelo, gatinho ao colo) e dirige a conversa em nome dele, usando algoritmos que sabem as preferênci­as do alvo – alvo esse que também é procurado por um algoritmo que avalia os seus sonhos. O preço varia conforme os encontros pessoais conseguido­s.

Está na altura de voltar a Nietzsche. Disse ele, no final do século XIX: “O que é, então, a verdade? Uma armada mutante de metáforas, metomínias (substituiç­ão de uma palavra por outra) e antropomor­fismos (atribuição de caracterís­ticas humanas a animais, deuses, elementos da natureza). As verdades são ilusões sobre coisas que esquecemos como eram.” E acrescento­u: “Não há factos, apenas interpreta­ções.” Mal sabia ele que, 150 anos depois, estes conceitos seriam uma realidade corriqueir­a num veículo universal que nenhuma fantasia podia prever.

Pode parecer estranho citar um grande filósofo a propósito das práticas comezinhas das almas solitárias, mas é muito mais surpreende­nte que essas práticas possam ser comerciali­zadas, num aproveitam­ento oportunist­a dos sentimento­s humanos.

NÃO NOS COMPETE JULGAR O RECURSO

A ESTE FORMATO PARA ENCONTRAR UMA RELAÇÃO

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal