À PAULADA TUDO SE RESOLVE
Já velho, surdo, doente e com fama de maluco, Goya pôs-se a pintar as paredes da sua casa – as famosas pinturas negras. Mesmo quem nunca ouviu falar em Goya já viu certamente Saturno a devorar o filho. Menos conhecida é a cena de dois camponeses a lutarem à paulada. Para quem conhece a história de Espanha, a metáfora é transparente: a vocação dos espanhóis para se dividirem.
Por estes dias, fervem com os separatistas catalães. Há 30 anos, era o terrorismo dos independentistas bascos. Antes disso foi a guerra civil que levou à ditadura franquista. No século XIX, as lutas entre progressistas e moderados. E quando Goya fez a pintura, o conflito entre liberais e absolutistas.
As pinturas negras estão agora no Museu do Prado, em Madrid. A mudança fez-se às três pancadas quando foram transladadas da Casa del Sordo (os vizinhos chamavam a Goya “o surdo”). A tinta ficou agarrada ao reboco e os camponeses perderam as pernas: ficaram atascados na lama até aos joelhos. Mesmo assim, 200 anos depois continuam cheios de energia a rodar os cajados.
Há dias, passando em frente ao hospital da Estefânia, vi duas raparigas muito agitadas: com os carros parados no sinal vermelho e as portas abertas, dois homens com idade para ter juízo disputavam a pole position ao sopapo. O mais robusto e grandalhão, julgava que ia limpar as patinhas no focinho do executivo engravatado, mas enganou-se redondamente, que ele andava no ginásio. Espetou-lhe meia dúzia de borrachos, fê-lo rodar até cair e ainda o imobilizou no alcatrão, antes de reentrar no SUV. O representante da classe operária levantou-se, descamisado e com o nariz em sangue. Queria retomar a luta de classes, mas o sinal verde abriu e eu saí de cena.
“Porque é que estão a lutar!”, gritava a rapariga a atravessar a estrada. As mulheres julgam que os homens têm uma razão para lutar e que os problemas não se resolvem assim. O que elas não percebem (e os homens foram esquecendo, convencidos pelas avós de que são bons meninos) é que a agressividade masculina só precisa de causas para ter uma desculpa. Chama-se a isso transferência: patriotismo, racismo, clubismo, ideologia, religião, porque me pisou o ténis novo, porque empurrou e não pediu licença, porque se julga melhor que os outros. Os brutamontes ainda são os mais honestos: nem inventam. “Estás a olhar para onde?” É um clássico: Pás-pás-pás e deixa-te estar que já acalmei.
Se os homens são máquinas explosivas, admira ver tanto povo sereno e paz na terra. A civilização dá-nos entretenimento e guloseimas para adormecer a sede de chupar a carótida dos adversários. Quando se fala em civilização pensamos logo em sociedades tecnológicas porque a inovação é a arma secreta das conquistas. Até meados do século passado, a Alemanha e o Japão eram os países com a tecnologia mais avançada e a comunidade científica mais evoluída. Tinham uma arte grandiosa, mas eram sociedades militares. Tornaram-se nações pacíficas porque os vencedores aprenderam a lição. Em vez de ser castigada pela derrota na Segunda Guerra Mundial, a sociedade alemã e japonesa foi saneada. Os militares e políticos foram julgados pelos crimes de guerra, mas teve início um vigoroso plano de reconstrução e desenvolvimento económico. O prestígio mudou certamente: trocaram tanques por eletrodomésticos. A disciplina militar manteve-os competitivos: chamam-lhe agora ética de trabalho.
Estamos dispostos a mudar, até mesmo a abdicar de privilégios, ganhando algo em troca. Quando o nosso estatuto é rebaixado, reentramos no vermelho. Qualquer motivo é bom para soltar as garras. É só esperar o momento. Não somos assim tão diferentes dos elefantes: os que pertencem à manada feminina, vivem contentes e pachorrentos – a fêmea idosa é a patroa, mas todos os meses vão de férias, às escondidas, gozar o amor com as mais jovens; já os excluídos, que foram rebaixados à manada dos machos, desgraçam tudo por onde passam. Quando se aborrecem, lutam entre si. Os velhos são os piores: desde que foram expulsos do convívio feminino, só querem vingar-se. As presas crescem com a idade, mas partem-se facilmente. A força da juventude para disputar um lugar no bem-bom já era. Sobra o ressentimento e a vaidade ferida.
O crepúsculo dos elefantes vai a par com a decadência das sociedades poligâmicas humanas. Os regimes baseados em tudo para os fortes e nada para quem perde revelou-se desastroso para a sobrevivência. Prevalecem os vencedores que distribuem a riqueza e permitem aos adversários restaurar a dignidade. Cumprimenta o perdedor e não percas a oportunidade de o ajudar discretamente. “Que a mão esquerda não saiba o que deste com a direita” já dizia o nazareno.