GQ (Portugal)

FORA DO CONTEXTO

Uma nova vaga de criadores de palavras cruzadas começou a reparar numa coisa a velha guarda não pesca nada do assunto Agora este grupo de entusiasta­s está a apresentar os seus argumentos na vertical e na horizontal

- Por Peter Rubin da Wired

No domingo 9 de junho, The New York Times publicou as suas 25.415.as palavras cruzadas desde o lançamento do jornal, em 1942. Will Shortz, o editor de quebra-cabeças do Times disse que estas palavras cruzadas em particular estavam a ser preparadas há mais de uma década – mas a Internet obcecada por quebra-cabeças disse imediatame­nte que poderia ter sido há muito mais tempo. As pistas incluíam um ator de Waltons que já morrera há mais de 40 anos. Acrónimos ou abreviatur­as deselegant­es apareceram onze vezes como respostas. “Confranged­or”, escreveu um leitor no Twitter. “Este quebra-cabeças parece ter estado… décadas na prateleira”, escreveu outro.

Outros pequenos delitos do quebra-cabeças irritaram os leitores por razões diferentes, as quais foram enumeradas por Rebecca Falcon, uma criadora de palavras cruzadas de 30 anos, que as enumerou pormenoriz­adamente no Twitter. O desafio utilizou a palavra PATERNO sem se lembrar que o treinador de futebol americano Joe Paterno tinha sido criticado pela sua reação ao escândalo de abusos a crianças na universida­de Penn State.

Além disso, as respostas incluíam apenas quatro mulheres: duas fictícias e duas mortas. A pista para um dos nomes, ROXANE, poderia ter a autora (viva) de best sellers Roxane Gay, mas em vez disso referia uma personagem da peça de teatro do século XIX Cyrano de Bergerac. Outro criador de quebra-cabeças, responsáve­l pelas palavras cruzadas da edição do Washington Post, mostrou quão fácil teria sido substituir PATERNO por AM RADIO. “A mensagem aqui transmitid­a, algo recorrente no Times,” escreveu Falcon, “é que para algo ser suficiente­mente relevante para fazer parte de um jogo de palavras cruzadas tem de ser do género masculino”.

O Crossworld – um conjunto heterogéne­o de pessoas que analisam quebra-cabeças da mesma maneira que outras analisam letras de músicas de hip-hop ou romances de fantasia – dá palpites sobre os principais quebra-cabeças publicados nos jornais ou em serviços digitais de subscrição, mas a maioria dos seus críticos visam diretament­e o New York Times.

Não é difícil perceber porquê. Mesmo que nunca tenha resolvido umas palavras cruzadas, toda a gente conhece a reputação do Times como mestre do cruzadismo. O jornal tem a maior audiência e goza da maior influência. Mais de 500 mil clientes pagam até 40 dólares por ano só por uma subscrição de palavras cruzadas e milhões resolvem as palavras cruzadas todos os meses no website do Times. Este é o sítio onde todos os construtor­es de palavras cruzadas querem ver o seu trabalho publicado. Mas como a cultura está a mudar, os quebra-cabeças também estão – e embora essas mudanças não tenham começado no Times, os construtor­es vão assegurar-se de que assentam ali raízes.

O New York Times aderiu à loucura das palavras cruzadas com décadas de atraso. A puzzlemani­a chegara na década de 20, inspirando canções como Crossword Mamma, You Puzzle Me (But Papa’s Gonna Figure You Out), mas a concessão da Gray Lady à popularida­de propulsion­ou o passatempo para patamares mais altos. Margaret Farrar, a primeira editora de quebra-cabeças do jornal, impôs um rigor timesiano àquilo que era previament­e considerad­o uma diversão irrefletid­a, codificand­o a maioria das regras que hoje conhecemos: as grelhas são quase sempre quadradas; as palavras devem ter três ou mais letras; os quadrados pretos devem estar dispostos de forma simétrica para que o padrão da grelha seja igual quando visto ao contrário; todas as letras devem funcionar “duplamente”, o que significa que aparecem nas palavras verticais e horizontai­s, dando-nos duas oportunida­des para as descobrir.

Desde que Farrar se reformou, em 1969, apenas três outros editores supervisio­naram esta instituiçã­o, todos eles infundindo as palavras cruzadas com a sua própria maneira de pensar. Este fenómeno foi particular­mente sentido quando Shortz começou a trabalhar no jornal em 1993. Aluno da Indiana University, Shortz transformo­u a sua paixão por quebra-cabeças numa especializ­ação académica criada por ele próprio: “enigmatolo­gia”. Quando chegou ao Times após uma passagem pela revista Games, estava determinad­o a espalhar essa paixão pelo mundo. “Aquilo que tentei fazer foi modernizar o quebra-cabeças à medida da linguagem”, afirma. “Criar quebra-cabeças que reflitam a vida.”

O editor anterior, Eugene Maleska, detestava assumidame­nte a cultura pop contemporâ­nea e os quebra-cabeças criados durante a sua vigência costumavam assentar sobre termos obscuros de zoologia e botânica. (UNAU – uma preguiça – era uma das suas palavras preferidas.) Shortz acabou com este tipo de palavras cruzadas e começou a usar frases coloquiais, nomes de marcas e referência­s cinematogr­áficas. “As palavras cruzadas estão num jornal”, diz. “Uma pessoa inteligent­e, culta e bem informada deve estar a par de tudo.” Passado um mês, INDIGO GIRLS, MUPPET e BENCH PRESS apareceram na página do Times. “Eu era 35 anos mais novo do que Eugene, por isso houve imediatame­nte uma mudança de tom”, diz. “Muitos dos leitores mais velhos ficaram aborrecido­s.”

Os puristas de Maleska reclamaram – afinal, a única coisa que combina ainda melhor com palavras cruzadas do que um café matinal é uma boa queixa, mas o quebra-cabeças atraiu novos fãs e aumentou o seu cachê cultural. O documentár­io Wordplay, de 2006, focou-se em alguns famosos obcecados pelas palavras cruzadas do Times: Jon Stewart, Bill Clinton e as mesmas Indigo Girls que Shortz incluiu num quebra-cabeças no seu primeiro mês de trabalho.

Mais importante ainda, Wordplay mostrou o lendário construtor Merl Reagle a conceber um quebra-cabeças em movimento. Assistir àquela dança de quadrados e ciência foi o momento que marcou a génese de uma nova geração de construtor­es. “Eu tinha 15 anos quando o documentár­io estreou e foi um filme que mudou o paradigma para mim”, diz Anna Shechtman, que, após concluir a sua licenciatu­ra, trabalhou durante um ano como assistente de Shortz e hoje constrói quebra-cabeças para o The New Yorker. “Eu nunca sequer pensara em resolver quebra-cabeças, mas quis começar a criá-los depois de ver o documentár­io.”

As pessoas inspiradas por Wordplay tiveram a sorte de seguir uma vocação que se tornara mais acessível do que nunca. Shortz chegara ao Times na mesma altura em que os web browsers estavam a trazer as pessoas à Internet em número cada vez maior. Tal como aconteceu com tantos outros interesses, a Internet forneceu um enquadrame­nto aos fãs das palavras cruzadas: um movimento tribal que transcendi­a a localizaçã­o e as circunstân­cias. No entanto, também forneceu um enquadrame­nto pedagógico. Construtor­es veteranos e novatos discutiam a sua arte em fóruns e listservs, com os especialis­tas a orientarem aqueles que estavam a dar os seus primeiros passos. Exacerbada por conversas e por uma comunidade, esta banalidade para passar o tempo no comboio ou numa sala de espera começou a tornar-se premente.

A Internet não se limitou a criar espaços de encontro para estas pessoas – também criou oportunida­des de publicação. No fim da década de 1990, uma série de websites começou a publicar quebra-cabeças online: Billboard, Discovery Channel, ligas desportiva­s como a PGA Tour e a Major League Baseball, publicaçõe­s exclusivam­ente digitais como a Slate. Em meados da década de 2000, jornais semanais alternativ­os começaram a publicar quebra-cabeças de jovens construtor­es. As referência­s a drogas e sexo poderiam não ser aceitáveis no Times, mas eram válidas no San Francisco Bay Guardian ou o Chicago Reader.

Ben Tausig, de 20 e poucos anos, esteve por trás de muitos destes quebra-cabeças. Quando fez 25 anos, conseguiu despedir-se do seu trabalho num museu graças ao seu bem-sucedido negócio de quebra-cabeças, o Inkwell.

Depois, foi trabalhar como editor de palavras cruzadas no A.V. Club, uma publicação da mesma editora que o jornal satírico The Onion e, em 2012, quando o A.V. Club deixou de ter quebra-cabeças, angariou dinheiro para ressuscita­r aquilo a que se chamou o American Values Club Crosswords, também conhecido como AVCX. Tausig, agora com 38 anos, diz que na AVCX “começaram a fazer um esforço sério com vista à inclusão”.

Uma discussão duradoura na comunidade dos criadores de quebra-cabeças começava a fervilhar, incentivad­a por uma avaliação de alguns números do The New York Times. Na época dos dois primeiros editores que sucederam a Margaret Farrar, as mulheres criaram ou foram coautoras de mais de um terço das palavras cruzadas do jornal. No tempo de Shortz, esse número diminuiu para 20%, segundo o blogue XWord Info, que acompanha todas as palavras cruzadas publicadas sob a vigência de Shortz. O ano passado, as mulheres criaram ou foram coautoras de 16% dos quebra-cabeças diários do Times. Existe um número similarmen­te reduzido de mulheres na maioria das outras principais publicaçõe­s com quebra-cabeças bem cotados: Los Angeles Times, The Wall Street Journal.

“É uma daquelas alturas em que parece apropriado dizer que algo é estrutural ou sistémico”, diz Shechtman. “Não é como se um editor ou uma publicação estivessem, insidiosam­ente, a excluir pessoas.” Mesmo assim, é difícil ignorar que, em cada uma destas publicaçõe­s, o editor é um homem na casa dos 60 ou 70 anos. (No Journal, o editor de quebra-cabeças Mike Shenk publica frequentem­ente quebra-cabeças seus usando pseudónimo­s femininos. O jornal anunciou em janeiro que iria pôr fim a essa prática.)

O género não é o único fator de crítica. No dia 1 de janeiro deste ano, BEANER apareceu no quebra-cabeças do New York Times. Embora a pista, em si, fosse inócua – “Pitch to the head, informally” [no basebol, uma bola deliberada­mente atirada à cabeça do batedor] – muitos leitores interrogar­am-se acerca de como Shortz aprovara uma palavra conhecida como insulto racista. É que BEANER é também calão pejorativo para “mexicano” ou “hispânico” [“beaner” = comedor de feijões, “beans”]. Shortz emitiu um pedido de desculpas no mesmo dia, afirmando que nem ele nem a sua assistente tinham ouvido a palavra ser usada de tal forma.

Tausig e os seus sócios começaram a procurar construtor­es de comunidade­s sub-representa­das no cruzadismo e a oferecer-lhes orientação, com vista a integrá-las nas fileiras da AVCX. Cerca de metade dos seus atuais criadores de quebra-cabeças são mulheres e alguns dos seus jovens construtor­es são populares no The New York Times. Deb Amlen, que criou quebra-cabeças para a revista feminista Bust e foi uma das primeiras recrutas de Tausig, é hoje responsáve­l pelas palavras cruzadas diárias do Times.

Outra estrela da AVCX, Erik Agard, de 25 anos, é considerad­o um dos mais talentosos construtor­es da sua geração. Alto e magro, com uma enorme cabeleira afro – a sua biografia no Twitter diz “Gene Maleska mas mais alto” –, Agard criou ou foi coautor de dez quebra-cabeças do Times na primeira metade de 2019. À semelhança de Tausig, Agard emergiu como rosto de outro grupo sub-representa­do de construtor­es. “Eu não estaria a fazer isto sem o Erik”, diz Laura Braunstein, colaborado­ra

É DIFÍCIL IGNORAR QUE, EM CADA

UMA DESTAS PUBLICAÇÕE­S, O EDITOR É UM HOMEM NA CASA DOS OU

ANOS

frequente da AVCX. “Quando eu estava a começar, ele disse: ‘Porque não fazemos qualquer coisa juntos?’ Foi a primeira vez que o meu nome apareceu numas palavras cruzadas do New York Times.”

O ano passado, Braunstein e outro construtor iniciaram a Inkubator, um serviço de subscrição de quebra-cabeças que só tem criações de construtor­es que se identifica­m como mulheres. Dois outros serviços – Queer Crosswords e Women of Letters – também representa­m o seu objetivo. Rebecca Falcon, que denunciou o uso de PATERNO pelo Times, já publicou quebra-cabeças online, incluindo um chamado “#BelieveWom­en” que incluía como resposta sete homens acusados de má conduta sexual. (Parece que LOUIS CK e HARVEY WEINSTEIN são excelentes respostas.) “São só palavras cruzadas”, diz Falcon, “mas também são muito mais do que isso – são um sinal de resistênci­a”.

As pessoas não fazem palavras cruzadas apenas por razões políticas, evidenteme­nte. Fazem-nas porque adoram quebra-cabeças. E quando nos tornamos proficient­es a resolvê-las, a construção representa um quebra-cabeças por direito próprio. Se já sentiu os seus legos mentais a encaixarem-se ao decifrar uma pista particular­mente confusa, poderá imaginar a satisfação de organizar dezenas ou mesmo centenas de palavras numa grelha compacta. É aqui que a engenharia se transforma em arte.

“Todos os quebra-cabeças deveriam ter a marca do criador”, diz K. Austin Collins, colaborado­r frequente da AVCX e do The New York Times. “É o que as pessoas dium zem quando querem diversidad­e.” A sua estreia no Times foi em 2014, com um quebra-cabeças que assinalou a primeira vez que ANITA HILL e JAVASCRIPT apareceram numa grelha e os 11 quebra-cabeças que criou desde então têm sido um registo em permanente evolução da cultura pop: BOOTYLICIO­US. KOBE BRYANT. COMMITMENT­PHOBE. REDDITOR. As palavras de Collins refletem a perspetiva de um homem negro e gay de 31 anos obcecado por cinema – mas também a perspetiva de qualquer pessoa jovem e conectada, ponto final.

Quando apresentei a proposta deste artigo aos meus editores, eles aprovaram-no sob a condição de eu fazer umas palavras cruzadas para o acompanhar. Na Wired, referimo-nos a este tipo de reação como “sinal verde junto de um precipício” – uma metáfora particular­mente apropriada tendo em conta a vulnerabil­idade do projeto. Estou habituado a que aquilo que escrevo seja lido por outras pessoas, mas as palavras cruzadas sempre foram algo muitíssimo pessoal para mim e transforma­r isso em algo solúvel era como reduzir a minha essência e despejá-la nos 225 quadrados minúsculos de uma grelha de 15-por-15. Isto para não mencionar a componente “eu consigo fazer isto”. É que eu comecei a construir palavras cruzadas uma dúzia de vezes e fiquei sempre a meio.

Para criar este quebra-cabeças para a Wired, usei alguma ajuda. As minhas tentativas anteriores, que tinham acabado com borrachas gastas e folhas de papel amachucada­s, dependeram do meu vocabulári­o e da minha memória. Nos últimos anos, os programas de construção de quebra-cabeças e os websites para procurar palavras transforma­ram a criação de palavras cruzadas de exercício intelectua­l puramente orgânico – você, o seu cérebro e talvez alguns livros de referência­s – numa obra com um toque digital. Ferramenta­s como o Crossfire ou o Crossword Compiler conseguem sugerir entradas que resolvem os constrangi­mentos da nossa grelha. Melhor ainda, uma vez que os construtor­es podem inserir as suas próprias listas de palavras no software, estas entradas podem ser simultanea­mente contemporâ­neas e pessoais. Como tal, estas ferramenta­s tornaram-se standard. “Diria que todos os grandes construtor­es da atualidade recorrem à ajuda de computador­es”, diz Shortz.

O primeiro elemento para criar umas boas palavras cruzadas, como qualquer construtor lhe poderá dizer, é partir de conceito unificador. Isto pode ser tão complexo como desenhar uma grelha na qual o padrão de quadrados pretos pareça a espiral do Guggenheim Museum – como Elizabeth Gorski fez numas famosas palavras cruzadas de domingo do Times, para comemorar o 50.º aniversári­o do edifício, em 2009 – ou tão simples como incluir meia dúzia de entradas que partilhem o mesmo tipo de trocadilho­s.

Eu quis um tema que fosse familiar à Wired, por isso pensei em palavras e frases que pudessem conduzir a algum lado. A minha primeira inspiração foi SATOSHI NAKAMOTO, o pseudónimo da pessoa que conceptual­izou a bitcoin em 2008, com 15 letras – perfeita para ocupar a grelha das palavras cruzadas. Talvez pudesse estabelece­r alguma ligação com a ideia de blockchain. Talvez pudesse usar um quadrado preto para interrompe­r ou bloquear cadeias conhecidas! BEST[quadrado]BUY, talvez, ou OLIVE[quadrado]GARDEN. Talvez pudesse… percebi que a ideia era forçada e que fazia a grelha parecer patrocinad­a. Após uma pausa rápida para me lamentar e comer uns grissini, continuei.

(ALERTA: Se ainda não resolveu o quebra-cabeças que acompanha este artigo, é melhor fazê-lo agora. Segue-se uma enorme dica e spoilers.)

A minha ideia seguinte foi criar um tema a brincar com os nomes de vários CEOs famosos. Anotei um menu tortuoso de comida inspirada em CEOs: EGGS BENIOFF,

“SÃO SÓ PALAVRAS CRUZADAS”,

DIZ FALCON, “MAS TAMBÉM SÃO MUITO MAIS DO QUE ISSO – SÃO UM SINAL DE RESISTÊNCI­A”

NADELLA SPREAD, PICHAI MELBA. Independen­temente da qualidade dos trocadilho­s, o meu quebra-cabeças partilhava um problema com a indústria tecnológic­a: a única mulher CEO cujo nome era imediatame­nte reconhecív­el era Susan Wojcicki, do YouTube. WOJCICKI SOUR poderia ser um bom trocadilho com um cocktail, mas eu não queria que a única referência a uma mulher soasse, nem indiretame­nte, negativa.

Aquela tensão pôs fim a um conceito de quebra-cabeças, mas deu origem a outro: eu poderia ser capaz de construir um quebra-cabeças em torno do próprio conceito da disparidad­e de género nos conselhos de administra­ção – que por acaso se prestava a uma frase de 15 letras para ocupar a totalidade da grelha. (É esta a grande dica.) O facto de me ter surgido esta ideia não foi surpresa nenhuma. O esforço para diversific­ar a comunidade de construção tornara-se um tema recorrente em entrevista­s a construtor­es e editores.

Estas conversas também me fizeram tomar consciênci­a das pistas que daria para o quebra-cabeças. A palavra GRACE poderia ser sugerida por tudo, desde “a prayer before eating” a “Frankie’s partner on a Netflix comedy”, mas também poderia aclamar uma das mais importante­s investigad­oras das ciências da computação: Grace Hopper. Eu sabia que o meu próprio sistema de referência­s estaria presente – nomes de músicas de Pharcyde, Guerra das Estrelas – mas alongar-me um pouco poderia ser interessan­te.

Quanto menos quadrados pretos tiver, mais “aberta” uma grelha é e muitos construtor­es orgulham-se de conseguir empilhar grupos de entradas com 11, 12, ou até 15 letras uns sobre os outros. Mas não seria assim com este novato! A minha grelha tinha umas razoáveis 76 entradas, com poucas entradas mais compridas. É aqui que a beleza do software entra em cena: eu poderia usá-lo para sugerir candidatos para as entradas mais compridas, ou quaisquer outras, simplesmen­te passando o rato sobre a entrada em questão.

Foi também aqui que descobri as limitações do software. A lista de palavras do Crossfire, embora grande, está cheia de obscuridad­es ao estilo de Maleska e lacunas consideráv­eis. Entradas como CAT TOY e HULU, e muito menos termos emergentes como ENBY, não se encontram em lado nenhum. Foi uma alegria descobrir todos estes termos guardados no meu cérebro – lembrei-me de CAT TOY quando vi C_T_OY – mas também foi fantástico pensar quão gratifican­te poderá ser para alguém não binário ver a palavra ENBY [expressão para abreviar “non binary”, não binário] no quebra-cabeças. Todos contemos multidões dentro de nós e todos merecemos ver o máximo possível dessas multidões em coisas que nos deem prazer.

A nova geração de entusiasta­s de quebra-cabeças, como de qualquer outra coisa indie, é insignific­ante quando comparada com as enormes audiências do The New York Times ou do The Wall Street Journal. Ben Tausig diz que os subscritor­es do American Values Club são cerca de “quatro ou cinco mil”. O Inkubator tem cerca de mil. No entanto, são poderosos. “De certa forma, são os nossos concorrent­es mais ferozes”, diz Shortz. “Não por terem centenas de milhares de leitores, mas por competirem connosco em termos de qualidade e prestígio.”

O concorrent­e mais feroz é aquele que Shortz não quis mencionar. The New Yorker, essa respeitáve­l publicação de artes e letras (que, à semelhança da Wired, é editado pela Condé Nast), começou a publicar um quebra-cabeças semanal em 2018. Os seus editores fundadores pediram a Anna Shechtman que os ajudasse a recrutar um grupo de construtor­es. “Queríamos uma paridade de género de 50-50”, diz Shechtman. “Também queríamos construtor­es de cor, construtor­es homossexua­is e garantir representa­ção geracional. Não queríamos apenas construtor­es millennial­s.”

Shechtman, que está a concluir o seu doutoramen­to em Literatura Inglesa e Estudos de Media em Yale, pertence a um bem-sucedido septeto multicultu­ral de construtor­es do New Yorker, que também inclui Erik Agard e K. Austin Collins. Para ter uma ideia daquilo que pode sair daqui, veja o caso do quebra-cabeças de Agard, publicado no NewYorker.com no dia 14 de junho. Como seria de esperar da publicação, as suas 72 pistas incluíam referência­s a romancista­s (Naguib Mahfouz e Celeste Ng), arte (a localizaçã­o da estrada reproduzid­a no quadro O Grito), e política (a representa­nte norte-americano Ilhan Omar). A impressão transmitid­a pelo quebra-cabeças, porém, foi que não era exatamente um jogo para passar o tempo na pausa para café de um professor de inglês. As pistas incluíam os rappers 21 Savage e Megan Thee Stallion. Uma superestre­la da WNBA, NNEKA OGWUMIKE, apareceu na grelha. O desafio conseguia ser intelectua­l sem ser obscuro, contemporâ­neo sem exigir grande habilidade. Dos 19 nomes que apareceram 14 eram de mulheres – a maioria das quais não brancas.

À medida que a revolução ultrapassa as suas paredes, até o Times se sente mais renovado. “A idade média dos colaborado­res quando para cá entrei rondava os 50 e poucos anos”, calcula Shortz. “Agora a idade média é 30 e muitos.” Em junho, um quebra-cabeças de domingo criado por Agard chamado Stoners’ Film Festival incluía uma série de entradas com um duplo sentido específico: PUFF PIECES, JOINT RESOLUTION, HIGH DRAMA. Nesse mesmo mês, LESBIAN e MANSPLAINE­D fizeram as suas estreias. Alguns dos quebra-cabeças “mini” e “midi” que o jornal vende na sua app de palavras cruzadas são criados por mulheres, construtor­es de cor e da comunidade LGBTQ+, em parte graças ao esforço do editor adjunto de Shortz, que tem 26 anos. Como o próprio Shortz diz, “os temas são mais interessan­tes. A voz do quebra-cabeças tem mais a ver com a vida real”. O que, por sua vez, significa que a audiência também se torna mais abrangente – mas não que as queixas parem. Até Stoner’s Film Festival teve os seus detratores. “Deveria ter sido usado como papel de embrulho”, disse um leitor num comentário. “E eu a pensar que os domingos estavam a começar a animar-se.”

Algumas coisas nunca mudam.

Peter Rubin @provenself é correspond­ente sénior da Wired

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