POLE POSITION
Para o realizador James Mangold, Le Mans ‘66: O Duelo é sobre “excelência, risco, ir a jogo e ter coragem para seguir em frente quando tudo parece perdido. São estas as coisas que têm mesmo importância para mim”.
Cineasta irrequieto e inteligente, James Mangold tem uma das mais cativantes e diversificadas filmografias entre os realizadores da atualidade. Le Mans ‘66: O Duelo parece muito diferente da primeira obra de Mangold, o filme independente intimista Heavy – que lhe granjeou o prémio de Melhor Realizador no Sundance Film Festival em 1995 –, mas o realizador ainda mostra fascínio por muitos dos mesmos temas. O seu filme anterior foi Logan, no qual conseguiu humanizar, com sucesso, o icónico super-herói Wolverine, o que lhe rendeu uma nomeação para os Óscares na categoria de Melhor Argumento Adaptado. Mangold já trabalhara anteriormente com Christian Bale, o protagonista de Le Mans ‘66: O Duelo, no seu western 3:10 To Yuma, que sucedeu ao seu filme biográfico sobre
Johnny Cash, Walk The Line. Não sendo um grande fã de corridas de automóveis, Mangold sentiu-se atraído pela história de Le Mans ‘66 devido aos temas que nele identificou.
Em vez de nos limitarmos a dizer que Le Mans ‘66: O Duelo é um filme sobre corridas, poderemos dizer que é sobre a demanda da perfeição? Sim, eu adoro carros, adoro as máquinas, e acho todo aquele mundo e aquela demanda pela perfeição fascinantes. Acho que é uma excelente alegoria para quase tudo na vida. Podemos até dizer que este filme é sobre a dificuldade de fazer grandes filmes. O estúdio, o público, a luta pela originalidade e a vontade de quebrar barreiras – [a luta contra] as ideias estabelecidas, o over thinking e o marketing. Espero que este filme leve o espectador a viajar para trás, até uma altura – sobretudo na vida americana – em que ainda estávamos a tentar perceber quem éramos e como poderíamos fazer coisas fabulosas. Agora, tornámo-nos tão corporativos, tão protegidos, tão adversos ao risco… Afastámo-nos tanto desse tipo de descoberta e de irmos a jogo, de apostarmos as nossas vidas. Agora o jogo é muito mais prudente. Naquela altura, o importante era: “Quem pode construir o melhor carro?” Agora alcançámos a perfeição de várias formas. No final da década de 60, porém, estes carros eram bestas muito à frente do seu tempo. Estes inovadores temerários estavam na linha da frente da tecnologia, antes de haver computadores ou sequer calculadoras. Eles desenhavam o carro, faziam-lhe ajustes e experimentavam-no – e aprendiam através de tentativa e erro. Era uma coisa maravilhosa.
OO filme também é sobre estas duas figuras em particular. São personagens especiais, não são? É uma parábola: Carroll [Matt Damon] é o vendedor, um tipo capaz de falar pelos cotovelos. Ken Miles [Christian Bale] é mais direto, um tipo que se mete em todo o tipo de problemas, que não tem mecanismos de autocensura e que, provavelmente, nem sabe que devia tê-los. Todas as pessoas poderão identificar-se com alguém neste filme. Toda a gente, de uma forma ou doutra, é empática. Quer dizer, até o Henry Ford, há alturas em que conseguimos compreendê-lo, nomeadamente a vida isolada que ele viveu. Quando ele diz: “Gostava que o meu pai tivesse visto isto…” [Quando Shelby o leva a dar uma volta] Ele está excitado e aterrorizado e intimidado, mas também comovido por ter vivido uma experiência que – numa vida onde não há mais do que foie gras e escritórios e carros elegantes – o levou ao encontro da sua essência e o comoveu. Isso é excitante e comovente e faz-nos sentir algo por alguém que antes só achávamos pesadão.
O que o cativou nesta história? Aquilo que me entusiasmou foi este conjunto singular de personagens. Os filmes tornaram-se um bem tão transacionável que por vezes parecem isso mesmo. Os esforços para nos afetar ou entusiasmar parecem reduzir-se a pressionar uma série de botões pré-programados num sintetizador. Eu estou interessado em dar vida a algo que me faça pensar: “Não sei bem onde isto vai parar…” Essa excitação de ver um filme sem saber o que vai acontecer – é isso que me interessa. Sinto muito interesse pela componente física e masculina dos westerns. Eles têm a capacidade de ser delicados de formas que os filmes de ação contemporâneos não têm. Os filmes [contemporâneos] tornaram-se orientados para miúdos de 14 anos.
Mas eu não tenho um tema que me mova. Não tenho a certeza de que isso seja saudável e sei aquilo que me atrai nos projetos. A coisa mais perigosa que existe para um realizador é ser categorizado. Quando comecei, senti-me mal por um realizador ser designado A Voz da América Rural e outro A Nova Resposta a Hitchcock, ou ainda O Novo Homem dos Thrillers, O Novo Billy Wilder, e por aí adiante. Toda a gente decifrava o que éramos e em que categoria nos arrumavam na loja dos discos. Ou bem que somos country ou rock ‘n’ roll ou disco, não é? E eu pensei: “Oh, aquela [categoria] consegue imensa cobertura de imprensa. Assim que as pessoas sabem em que caixa os arrumar, em que histórias ou resumos os incluir…” No meu caso, fiz um filme sobre polícias [Cop Land], um filme independente [Heavy], um filme sobre mulheres numa instituição mental [Vida Interrompida]. E a imprensa não sabia onde me arrumar. O sistema não sabe lidar muito bem com pessoas que mudam de sítio. O Billy Wilder [que realizou Quanto Mais Quente Melhor e O Apartamento] só fez uma comédia no seu 13.º filme! E eu ainda nem sequer fiz 11 filmes. Estou muito feliz. Foi um longo percurso, mas estou a mudar de direção agora e tenho a possibilidade de fazer um musical, porque fiz Walk The Line, ou de fazer um procedimental por causa de Cop Land, ou um western por causa de 3:10 To Yuma, ou uma comédia por causa de Kate & Leopold ou Knight & Day. Tenho permissão para entrar em tantos campos. E isso também me permite usar todas as lições que aprendi em todos esses géneros e sintetizá-las. Por exemplo, eu não queria que Le Mans ‘66 fosse um filme sério e épico, cheio de pretensões. Queria que transmitisse a sensação de estarmos na box com aqueles tipos e fazermos parte da equipa.
Isso transparece no filme. É perigoso e excitante, mas também brincalhão e caloroso. É mais divertido e mais animado do que algumas pessoas poderão estar à espera. Acho que toda a gente tem uma ideia preconcebida de que vamos fazer determinado filme e que terá de ser muito sóbrio – uma história cheia de manias e pretensões – e não há problema nenhum nisso. Para mim, no entanto, estas personagens que eu estudei, com a sua energia, temeridade e o facto de, por vezes, não fazerem a menor ideia de para onde vão e se limitarem a fazê-lo – eram elas que contavam aquilo que eu queria contar, porque essa era a parte mais interessante para mim. Essa é a parte mais interessante de fazer filmes: o facto de não sabermos.
A maior mitologia que os realizadores impingem aos alunos e à imprensa, a toda a gente, na verdade, é que nós imaginamos tudo antes de começar. A verdade – o segredo mais bem guardado de todos os bons realizadores que conheço – é que, por vezes, podemos imaginar uma coisa no início, mas as coisas mesmo boas são as que vão acontecendo enquanto filmamos, porque é nessa altura que o filme se revela. Poderemos ter uma série de ideias sobre o que vamos filmar e como vamos fazê-lo, mas assim que o filme ganha vida e a forma como o filme ganha ou não vida, pelo menos para mim, diz respeito à capacidade do realizador para ajustar a sua visão inicial. O elenco representa um papel muito importante.
Falando no seu elenco, Matt Damon diz que aquilo que Christian Bale fez foi extraordinário. Acho que é um dos melhores desempenhos dele. Acho que é o papel mais próximo da maneira de ser dele, tendo em conta que o conheço há uma década. Sim, é o papel mais próximo da maneira de ser dele. Ele está mesmo a interpretar uma versão muito boa e ligeiramente exagerada do Christian. Trabalhador, mas não apanhado na teia do jogo corporativo e do marketing. Um tipo que adora o seu trabalho e se desinteressa completamente assim que o assunto passa a ser vendas, publicidade ou
“PODEMOS ATÉ DIZER QUE ESTE FILME É SOBRE A DIFICULDADE DE FAZER GRANDES FILMES”
o que for. Ele adora aquilo. É um idealista. Nem sempre é a pessoa mais diplomática, mas é incrivelmente bondoso e não sabe lidar com tretas – é quase alérgico! Também é um excelente pai e um marido maravilhoso – todas estas coisas se encaixam neste papel.
A confiança que se sente entre ele e Damon no ecrã é incrível, não é? Sim. Temos de acreditar nas pessoas. Fazer filmes é assim – é mesmo assim. Eu estou tramado se um dos meus atores for mau. Estou completamente tramado. Não há nada a fazer. Mas a emoção de fazer estas coisas, se conseguirmos juntar as pessoas certas e confiarmos uns nos outros, então… Não é que não haja dias maus, ou que alguma cena não funcione, mas pensamos: “Será que conseguimos resolvê-la juntos?” E isso, acho eu, vem da confiança, de todos serem bons. E, aqui, eram todos fantásticos no seu trabalho, como Ken Miles e Carroll Shelby, por exemplo. Eles tinham uma confiança enorme: “Se alguém vai conseguir tirar-me deste poço são estas mentes.” E era exatamente assim que eu também me sentia.
A relação que existe entre Miles e Shelby é rara, não é? Absolutamente. Faz-nos pensar no verdadeiro valor de ter amigos assim. Faz mesmo. Porque estamos tão isolados. É como os westerns influenciarem o meu trabalho. Porque eu acho que os westerns são muito mais do que pessoas com chapéus a montarem cavalos e tudo isso. Há toda uma essência que aprendemos com aquele estilo de vida, com aquela época em que a tecnologia ainda não nos roubara a nossa interdependência uns dos outros. Há muitos filmes que começam por ter um estilo western, ou seja, nos quais as vidas de umas pessoas estão nas mãos de outras – filmes de guerra, filmes de polícias e até filmes de super-heróis. É uma questão de família, de sobrevivência: a maneira como temos de aprender a confiar uns nos outros. Isso é uma coisa que me interessa imenso. É algo que nos faz muita falta nos dias que correm. De certa forma, nunca estamos seguros. Nunca podemos depender de alguém, exceto talvez numa urgência médica, quando a nossa sobrevivência está em risco – e mesmo assim, a maneira como as pessoas ajudam é tão conflituosa e cautelosa que se perde a sensação de urgência.
Matt e Christian gostaram das cenas de corridas no filme? Adoraram! Christian era um motoqueiro maluco. Ele adorou corridas de motas durante anos até se magoar mesmo muito a sério num braço e a família o obrigar a parar. Pô-lo atrás do volante destes carros foi uma manobra de sedução. Ele adora velocidade. Ele adora as máquinas. Ele adora aquilo tudo. [No local das filmagens] ele ia correr nos carros e nós conseguíamos perceber isso nas filmagens – ele está a voar pelo espaço nestas coisas! E o Matt. Ele já conduziu mais nos seus filmes Bourne, mas tanto ele como Christian têm muita noção das acrobacias e são ótimos atletas. Muito do material de que precisávamos, quando temos Christian a correr, não se resume ao que ele está a fazer, mas ao que os outros carros estão a fazer, ao que os tipos à volta dele estão a fazer. Só filmamos alguns minutos do filme por dia, por isso temos de nos manter concentrados nas tarefas de cada dia. Quando tudo se junta tão depressa na fase da edição é uma maravilha. Eu só consigo imaginar – e lidar com – aquilo que tenho à minha frente. O segredo é focarmo-nos nisso.
Trata-se, evidentemente, de um filme desportivo, mas também é uma história fabulosa sobre pessoas aparentemente não talhadas para a vitória que conseguem alcançar o impossível. Rocky foi, de alguma forma, uma influência para si neste filme? Sim. Eu adoro esse filme! É um filme espetacular e altamente influente. E há um aspeto interessante: uma personagem que decide não fazer aquilo de que gosta porque gosta de outra pessoa. Há uma noção de cedência, de compromisso – algo que é necessário para conseguirmos viver melhor. Não podemos lutar com toda a gente. Não podemos lutar com a câmara municipal todos os dias. A lição que aprendi com Rocky é conseguir transmitir algo original com um filme desportivo. Em vez de ser apenas “…e depois o tipo destemido ganhou” ou “eles perderam”. É isso que o público espera. E, estranhamente, é isso que quer, mas depois as pessoas ficam desiludidas quando [essa vitória] é demasiado fácil. Porque a vida não é fácil. Por vezes, basta chegarmos lá perto.