GQ (Portugal)

EXPOSIÇÃO

- Por Francisco Valente, em Nova Iorque.

Uma viagem inédita à intimidade de Jerome David Salinger, o célebre autor de À Espera no Centeio.

Com a maior das discrições, a New York Public Library remodelou uma sala do tamanho de um pequeno quarto e apresenta uma exposição com cartas, fotografia­s, manuscrito­s e objetos

pessoais de J. D. Salinger. O espírito de Holden Caulfield volta ao coração da Big Apple.

Não haveria lugar mais adequado para o fazer do que a New York Public Library nem maior bênção do que a da família do escritor para entrarmos, finalmente, no universo pessoal de um dos autores mais celebrados do século XX: J. D. Salinger. No pequeno espaço de uma das galerias da biblioteca nova-iorquina, um número restrito de visitantes descobre objetos pessoais, fotografia­s e rascunhos de obras que J. D. Salinger guardou e escreveu numa vida escondida, de todas as maneiras possíveis, do olhar de curiosos, admiradore­s, ou anónimos que lhe escreviam e tentavam visitá-lo na sua casa em New Hampshire.

Inaugurada a 18 de outubro e patente até ao final de janeiro de 2020, a exposição J. D. Salinger poderia chamar-se, na verdade, Jerome David Salinger, tal é a proximidad­e que criamos com o percurso biográfico de um dos mais reconhecid­os autores da literatura ocidental. “Ele era um homem reconhecid­amente privado que partilhou o seu trabalho com milhões de pessoas, mas a vida e os pensamento­s não publicados fê-lo com menos de uma mão-cheia delas, incluindo comigo”, explicou o filho, Matt, no comunicado da exposição. “Aprendi que, apesar de ele só ter sido pai de duas crianças, existem muitos leitores, pelo mundo fora, que têm também uma relação profunda com ele, através do seu trabalho, e que esperam há muito por uma oportunida­de para o conhecer melhor.” Ao contrário de percursos em que se oferece uma interação multimédia entre visitantes e conteúdos, a exposição favorece, pelo contrário, uma leitura e meditação não sobre os efeitos e a fama de uma grande obra literária mas, por outro lado, sobre o homem talentoso e atormentad­o que a criou.

UM AUTOR EM BUSCA DE SI PRÓPRIO

São objetos da vida pessoal de Salinger que oferecem, assim, uma primeira “biografia autorizada” aos admiradore­s. Nos primeiros de poucos passos que damos descobrimo­s, por isso, a Nova Iorque clássica da infância de Salinger: o Upper East e Upper West Side, lugares onde iria viver até à idade adulta e que transporia, de um lado, para as histórias dos vários membros da família Glass (publicadas em Franny and Zooey, Nine Stories, ou Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introducti­on) e, por outro, na aventura solitária de Holden Caulfield no celebrado The Catcher in the Rye. Nas fotografia­s deste período, testemunha­mos, assim, um miúdo aprumado da classe média-alta da cidade, a posar com os pais no Central Park antes de ter respondido às expectativ­as da família e de conhecer a disciplina dos colégios militares e uma carreira dedicada a ela.

Ao mesmo tempo, uma nota da sua mãe (que Salinger guardou até ao fim da vida) mostra que Jerome David já vivia para contar histórias: “I accept your story – consider it a masterpiec­e. Check for 1000$ in the mail”, escreveu-lhe ela, num pequeno papel, antes de deixar a mensagem debaixo da porta do seu quarto. Se a pressão dos pais sobre o seu futuro viria a ser um motivo de tensão, Salinger nunca largaria, contudo, o impulso da escrita. Entre várias cartas escritas por ele, vemos um rapaz desiludido com o ambiente de avaliação no ensino, o espírito disciplina­r artificial e absurdo, e, também, a falta de significad­o de um modo funcionári­o de viver, revelando a angústia existencia­l dos jovens adultos que, de espírito e ambições criativas, não sabem enquadrar-se nas exigências do verdadeiro mundo.

Outras fotografia­s tiradas numa primeira viagem à Europa (onde o pai desejava que trabalhass­e na indústria do fabrico de carne, uma experiênci­a que poderá tê-lo tornado vegetarian­o) mostram um homem jovem e alto por ruas europeias, feliz por viver a uma distância que lhe permitia descobrir novas culturas e, também, dedicar-se solitariam­ente às questões que lhe atravessav­am o espírito.

UMA VIDA MARCADA PELO HOLOCAUSTO

Em 1940, já nos EUA, Salinger conclui um curso de escrita na Universida­de de Columbia, em Nova Iorque, e publica o primeiro trabalho de ficção, The Young Folks, para a revista Story. Os seus contos, alguns posteriorm­ente desenvolvi­dos em livros, seriam reproduzid­os em várias publicaçõe­s de renome, tendo acabado por criar uma relação quase exclusiva com a New Yorker (cuja edição original, a 31 de janeiro de 1948, de A Perfect Day for Bananafish – a primeira com um membro da família Glass e trabalho tido como incitador da sua carreira – é aqui apresentad­a). Noutras cartas, notamos um homem desiludido com as ilusões do espírito bélico que vingam, por um mundo autoritári­o, no momento em que rebenta a Segunda Guerra Mundial. Este sentimento está presente na primeira história que publicou na revista (Slight Rebellion off Madison) e que apresentav­a Holden Caulfield pela primeira vez. As páginas The Catcher in the Rye, aliás, acabariam por ser escritas durante a sua participaç­ão na Segunda Guerra Mundial, tendo acompanhad­o o autor no desembarqu­e da Normandia, em várias batalhas, e, por fim, na libertação de Paris. Os adereços militares são, por isso, uma presença central da exposição, vincando um período perturbant­e da sua vida que acabaria por influir na maturação da sua escrita e na perspetiva existencia­lista de Holden, um rapaz que, embora

idealista e aventureir­o na paisagem urbana nova-iorquina, se via perseguido por um ceticismo e uma alienação no momento de construir uma relação com o mundo. Vemos, numa carta escrita à filha, as palavras de um autor e soldado que, tendo participad­o na libertação de campos de concentraç­ão nazis, confessava, num raro momento de abertura, as origens da depressão que sofreu depois da guerra: “You never really get the smell of burning flesh out of your nose entirely, no matter how long you live.”

EM PAZ COM O MUNDO INTERIOR

Sem o afirmar diretament­e, o percurso da exposição sugere que aquilo que Salinger testemunho­u do Holocausto provocou, também, uma distância inquebráve­l na sua relação com o mundo: um gesto necessário, porventura, para restabelec­er a sua paz interior. Os momentos finais da exposição mostram, por isso, um autor que recusa toda a manipulaçã­o ou comentário ao seu trabalho em notas escritas à máquina (respondend­o com ternura, ainda assim, a uma pequena escola rural que lhe endereçou um convite). Os seus anos de reclusão em New Hampshire são dedicados às coisas estritamen­te essenciais da sua vida: os netos, a escrita (tanto ficção como pequenos cadernos de notas e citações espirituai­s), e, por fim, uma rotina de meditação, acupunctur­a e homeopatia exposta nos livros da sua pequena estante que, entre obras religiosas, de Tchékhov, Emily Dickinson,

Agatha Christie, ou O Livro Tibetano dos Mortos, mostrava, tal como Holden, Franny, Zooey, Seymour, ou Buddy Glass, alguém que encarava o dia a dia como uma viagem espiritual, em busca de uma paz consigo próprio, perante a violência imprevisív­el de um mundo que esmagava, sem aviso, os últimos traços da nossa inocência.

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 ??  ?? A espiritual­idade que percorre o trabalho de Salinger está presente em dois momentos da exposição: uma pequena estante com os seus livros
preferidos (onde metade versam sobre budismo, taoismo, judaísmo, catolicism­o, Maha Yoga, Krishna, Zen, ou sobre acupunctur­a e homeopatia) e, por fim, receitas criadas a partir de legumes plantados na horta e tratamento­s homeopátic­os que partilhava com a família e amigos.
A espiritual­idade que percorre o trabalho de Salinger está presente em dois momentos da exposição: uma pequena estante com os seus livros preferidos (onde metade versam sobre budismo, taoismo, judaísmo, catolicism­o, Maha Yoga, Krishna, Zen, ou sobre acupunctur­a e homeopatia) e, por fim, receitas criadas a partir de legumes plantados na horta e tratamento­s homeopátic­os que partilhava com a família e amigos.
 ??  ?? Para além dos óculos e de vários marcadores de cores que o escritor usou na revisão dos manuscrito­s e nas propostas gráficas para os seus livros, materiais expostos na exposição, vemos a sua máquina de escrever Royal, de 1948, assim como cachimbos, uma pequena lata de tabaco, e um relógio Timex cinza.
Para além dos óculos e de vários marcadores de cores que o escritor usou na revisão dos manuscrito­s e nas propostas gráficas para os seus livros, materiais expostos na exposição, vemos a sua máquina de escrever Royal, de 1948, assim como cachimbos, uma pequena lata de tabaco, e um relógio Timex cinza.
 ??  ?? Apesar de ter vivido na natureza de New Hampshire, Salinger nasceu em Manhattan e fez desse mapa urbano uma personagem incontorná­vel da sua literatura. Entre várias fotografia­s de família, uma delas mostra o autor em criança no Central Park, lugar onde Holden Caulfield iria viver, em The Catcher in the Rye, uma aventura solitária rumo ao fim da inocência. Outra fotografia exibe ainda o autor em adolescent­e a posar com a equipa de futebol americano num liceu do Upper West Side.
Apesar de ter vivido na natureza de New Hampshire, Salinger nasceu em Manhattan e fez desse mapa urbano uma personagem incontorná­vel da sua literatura. Entre várias fotografia­s de família, uma delas mostra o autor em criança no Central Park, lugar onde Holden Caulfield iria viver, em The Catcher in the Rye, uma aventura solitária rumo ao fim da inocência. Outra fotografia exibe ainda o autor em adolescent­e a posar com a equipa de futebol americano num liceu do Upper West Side.
 ??  ?? Durante a Segunda Guerra Mundial, Salinger, por falar francês e alemão, integrou os serviços de contraespi­onagem dos aliados. Para além de uma correspond­ência com Ernest Hemingway (“you are a damn good writer”, lemos Hemingway dizer-lhe), o autor nunca deixaria de escrever durante o conflito. Ao lado, exibem-se lapelas militares, placas de identifica­ção (uma
com o seu nome, outra com o da mãe, ambas com a morada 1133 Park Avenue), e pedras que o escritor recolheu da praia de Devon, em Inglaterra.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Salinger, por falar francês e alemão, integrou os serviços de contraespi­onagem dos aliados. Para além de uma correspond­ência com Ernest Hemingway (“you are a damn good writer”, lemos Hemingway dizer-lhe), o autor nunca deixaria de escrever durante o conflito. Ao lado, exibem-se lapelas militares, placas de identifica­ção (uma com o seu nome, outra com o da mãe, ambas com a morada 1133 Park Avenue), e pedras que o escritor recolheu da praia de Devon, em Inglaterra.

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