EXPOSIÇÃO
Uma viagem inédita à intimidade de Jerome David Salinger, o célebre autor de À Espera no Centeio.
Com a maior das discrições, a New York Public Library remodelou uma sala do tamanho de um pequeno quarto e apresenta uma exposição com cartas, fotografias, manuscritos e objetos
pessoais de J. D. Salinger. O espírito de Holden Caulfield volta ao coração da Big Apple.
Não haveria lugar mais adequado para o fazer do que a New York Public Library nem maior bênção do que a da família do escritor para entrarmos, finalmente, no universo pessoal de um dos autores mais celebrados do século XX: J. D. Salinger. No pequeno espaço de uma das galerias da biblioteca nova-iorquina, um número restrito de visitantes descobre objetos pessoais, fotografias e rascunhos de obras que J. D. Salinger guardou e escreveu numa vida escondida, de todas as maneiras possíveis, do olhar de curiosos, admiradores, ou anónimos que lhe escreviam e tentavam visitá-lo na sua casa em New Hampshire.
Inaugurada a 18 de outubro e patente até ao final de janeiro de 2020, a exposição J. D. Salinger poderia chamar-se, na verdade, Jerome David Salinger, tal é a proximidade que criamos com o percurso biográfico de um dos mais reconhecidos autores da literatura ocidental. “Ele era um homem reconhecidamente privado que partilhou o seu trabalho com milhões de pessoas, mas a vida e os pensamentos não publicados fê-lo com menos de uma mão-cheia delas, incluindo comigo”, explicou o filho, Matt, no comunicado da exposição. “Aprendi que, apesar de ele só ter sido pai de duas crianças, existem muitos leitores, pelo mundo fora, que têm também uma relação profunda com ele, através do seu trabalho, e que esperam há muito por uma oportunidade para o conhecer melhor.” Ao contrário de percursos em que se oferece uma interação multimédia entre visitantes e conteúdos, a exposição favorece, pelo contrário, uma leitura e meditação não sobre os efeitos e a fama de uma grande obra literária mas, por outro lado, sobre o homem talentoso e atormentado que a criou.
UM AUTOR EM BUSCA DE SI PRÓPRIO
São objetos da vida pessoal de Salinger que oferecem, assim, uma primeira “biografia autorizada” aos admiradores. Nos primeiros de poucos passos que damos descobrimos, por isso, a Nova Iorque clássica da infância de Salinger: o Upper East e Upper West Side, lugares onde iria viver até à idade adulta e que transporia, de um lado, para as histórias dos vários membros da família Glass (publicadas em Franny and Zooey, Nine Stories, ou Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introduction) e, por outro, na aventura solitária de Holden Caulfield no celebrado The Catcher in the Rye. Nas fotografias deste período, testemunhamos, assim, um miúdo aprumado da classe média-alta da cidade, a posar com os pais no Central Park antes de ter respondido às expectativas da família e de conhecer a disciplina dos colégios militares e uma carreira dedicada a ela.
Ao mesmo tempo, uma nota da sua mãe (que Salinger guardou até ao fim da vida) mostra que Jerome David já vivia para contar histórias: “I accept your story – consider it a masterpiece. Check for 1000$ in the mail”, escreveu-lhe ela, num pequeno papel, antes de deixar a mensagem debaixo da porta do seu quarto. Se a pressão dos pais sobre o seu futuro viria a ser um motivo de tensão, Salinger nunca largaria, contudo, o impulso da escrita. Entre várias cartas escritas por ele, vemos um rapaz desiludido com o ambiente de avaliação no ensino, o espírito disciplinar artificial e absurdo, e, também, a falta de significado de um modo funcionário de viver, revelando a angústia existencial dos jovens adultos que, de espírito e ambições criativas, não sabem enquadrar-se nas exigências do verdadeiro mundo.
Outras fotografias tiradas numa primeira viagem à Europa (onde o pai desejava que trabalhasse na indústria do fabrico de carne, uma experiência que poderá tê-lo tornado vegetariano) mostram um homem jovem e alto por ruas europeias, feliz por viver a uma distância que lhe permitia descobrir novas culturas e, também, dedicar-se solitariamente às questões que lhe atravessavam o espírito.
UMA VIDA MARCADA PELO HOLOCAUSTO
Em 1940, já nos EUA, Salinger conclui um curso de escrita na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e publica o primeiro trabalho de ficção, The Young Folks, para a revista Story. Os seus contos, alguns posteriormente desenvolvidos em livros, seriam reproduzidos em várias publicações de renome, tendo acabado por criar uma relação quase exclusiva com a New Yorker (cuja edição original, a 31 de janeiro de 1948, de A Perfect Day for Bananafish – a primeira com um membro da família Glass e trabalho tido como incitador da sua carreira – é aqui apresentada). Noutras cartas, notamos um homem desiludido com as ilusões do espírito bélico que vingam, por um mundo autoritário, no momento em que rebenta a Segunda Guerra Mundial. Este sentimento está presente na primeira história que publicou na revista (Slight Rebellion off Madison) e que apresentava Holden Caulfield pela primeira vez. As páginas The Catcher in the Rye, aliás, acabariam por ser escritas durante a sua participação na Segunda Guerra Mundial, tendo acompanhado o autor no desembarque da Normandia, em várias batalhas, e, por fim, na libertação de Paris. Os adereços militares são, por isso, uma presença central da exposição, vincando um período perturbante da sua vida que acabaria por influir na maturação da sua escrita e na perspetiva existencialista de Holden, um rapaz que, embora
idealista e aventureiro na paisagem urbana nova-iorquina, se via perseguido por um ceticismo e uma alienação no momento de construir uma relação com o mundo. Vemos, numa carta escrita à filha, as palavras de um autor e soldado que, tendo participado na libertação de campos de concentração nazis, confessava, num raro momento de abertura, as origens da depressão que sofreu depois da guerra: “You never really get the smell of burning flesh out of your nose entirely, no matter how long you live.”
EM PAZ COM O MUNDO INTERIOR
Sem o afirmar diretamente, o percurso da exposição sugere que aquilo que Salinger testemunhou do Holocausto provocou, também, uma distância inquebrável na sua relação com o mundo: um gesto necessário, porventura, para restabelecer a sua paz interior. Os momentos finais da exposição mostram, por isso, um autor que recusa toda a manipulação ou comentário ao seu trabalho em notas escritas à máquina (respondendo com ternura, ainda assim, a uma pequena escola rural que lhe endereçou um convite). Os seus anos de reclusão em New Hampshire são dedicados às coisas estritamente essenciais da sua vida: os netos, a escrita (tanto ficção como pequenos cadernos de notas e citações espirituais), e, por fim, uma rotina de meditação, acupunctura e homeopatia exposta nos livros da sua pequena estante que, entre obras religiosas, de Tchékhov, Emily Dickinson,
Agatha Christie, ou O Livro Tibetano dos Mortos, mostrava, tal como Holden, Franny, Zooey, Seymour, ou Buddy Glass, alguém que encarava o dia a dia como uma viagem espiritual, em busca de uma paz consigo próprio, perante a violência imprevisível de um mundo que esmagava, sem aviso, os últimos traços da nossa inocência.