DESTINO
Pode ser um dos sítios mais pobres da Sardenha, mas Sulcis é rica em praias isoladas, arqueologia ancestral, florestas densas e pessoas cujo talento diário aproxima o passado do presente.
De praias paradisíacas à floresta num piscar de olhos. Este pode muito bem ser o seu próximo destino de sonho.
NNos dias que correm, é preciso percorrer uma estrada serpenteante de duas vias através de montanhas cobertas de carvalhinhas, murta e alfazema silvestre até chegar a minha casa. Parece um ato de purificação: são 20 minutos de curvas e contracurvas por passagens de pedra cor de barro que nos libertam de um mundo onde há aeroportos, autoestradas e navios de cruzeiro, para outro: Sulcis, no Sudoeste da Sardenha. Isto continua a deslumbrar-me porque fui criada numa casa contemporânea de meados do século XX nos desfiladeiros de San Diego e depois passei anos em vários edifícios sem elevador na baixa de Manhattan e em Brooklyn até, mais recentemente, ir viver para um apartamento em Milão cujo hall de entrada está despudoradamente decorado com uma alcatifa vermelha fofa. Eu era, essencialmente, uma rapariga da cidade. Há três anos, porém, mudei-me para Santadi, uma aldeia minúscula numa das províncias mais pobres e intrigantes de Itália.
Geograficamente isolada do resto da ilha por picos íngremes, Sulcis está semiabandonada – décadas de migração em busca de emprego nas estâncias turísticas da Sardenha e da Europa quase dizimaram a população. Esta pobreza é compensada pela beleza bucólica da região, com ovelhas a pastar por entre amendoeiras e pereiras desalinhadas, e frondosos pomares de citrinos junto às margens do rio. Há casas de campo em pedra a ruir junto às estradas, estufas abandonadas cobertas de flores silvestres e algumas imitações recentes de brutalismo, vestígios de uma vaga de otimismo dos anos 90, que se erguem austeramente no meio das searas de trigo. Há imensos espaços abertos vazios onde uma pessoa pode perder-se e sentir-se só.
Quando comecei a conhecer Sulcis, ficava constantemente espantada com estas imagens contraditórias. Não era a beleza suave e artificial da Toscana e não tinha nenhuma da decadência desorganizada da Sicília. Era um mundo sereno completamente distinto – selvagem e caprichoso, compassivo e despretensioso. “Acha mesmo que alguém vai querer visitar este sítio?”, perguntaram-me, repetidamente, os nativos quando me mudei para cá. “Bem”, dizia eu, “temos vinhos fantásticos e uma das maiores florestas de Itália, a Gutturu Mannu, mesmo ao lado. Estamos a 15 minutos de imensas praias, numa região que produz azeite, alcachofras, tomate, borrego e queijo. Temos sítios arqueológicos, um clima ameno... Portanto, pode ser que sim.”
Vim aqui pela primeira vez em 2005, com o Ivano, que pouco depois se tornou o meu parceiro no trabalho, na vida e em casa. Ele nascera e fora criado em Milão, mas a família era da Sardenha. Ele contava-me histórias sobre as suas férias de verão quando era pequeno, passadas na pequena casa de pedra da sua avó: sem iluminação nas ruas, nem estradas alcatroadas, com oliveiras e calor. Quando era pequeno, Ivano acompanhava os pastores que levavam os seus rebanhos para as terras baixas em busca de água. Mais tarde, casámo-nos num curral de ovelhas com vista para uma faixa de rio que serpenteia por entre lotes agrícolas e aldeias sonolentas encostadas à estrada.
Ivano e eu decidimos, finalmente, mudarmo-nos para lá em 2015. Queríamos investigar as particularidades do artesanato e da cultura sarda e servir de ponte entre os estrangeiros (designers, jornalistas, investidores) e as entidades locais que lhes pudessem interessar. Comprámos um aglomerado de casas de campo em ruínas de finais do século XVIII e instalámo-nos com os nossos dois filhos pequenos num local a 10 minutos de onde Ivano passava o verão. Éramos os estranhos residentes de Santadi.
Estou, neste instante, na nossa casa nova, a apreciar as flores das cenouras silvestres e o muro de figueiras-da-índia à espera dos fotógrafos Paola Ambrosi de Magistris e Murray Hall. Não vejo a Paola
há dez anos. Ela ainda não conhece os meus filhos e, entretanto, casou-se com Murray, um australiano simpático, honesto e talentoso. Paola é alta e magra, com uma voz suave e doce, olhos azuis acinzentados. Ficámos logo amigas quando nos conhecemos em Nova Iorque há alguns anos, mas perdemos o contacto. Para mim, recebê-los aqui é um dos maiores prazeres da meia idade.
O nosso plano é mostrar-lhes Sulcis de uma perspetiva insider-outsider: pessoas que conhecem um local intimamente, mas ainda reparam nas suas singularidades. Organizámos uma sessão fotográfica de duas irmãs de olhos escuros da nossa vila, vestidas com os seus elaborados trajes tradicionais. Vamos visitar uma mulher que tece byssus dourada, ou seda do mar, um material fabricado a partir da saliva solidificada de moluscos protegidos, colhida a cerca de 30 quilómetros a oeste daqui, na vila de Sant’Antioco, e vamos entrar sorrateiramente num nuraghe abandonado – são gigantescas construções líticas pré-históricas que parecem fortalezas e pontilham toda a ilha. Vamos explorar as minas em ruínas da costa sudoeste – ativas durante milhares de anos, mas agora defuntas –, que atestam a importância do passado e o declínio presente da região. Visitaremos a adega da Cantina di Santadi e assaremos uma cabra com o meu sogro. Depois, vamos conhecer o trabalho de alguns artesãos e beber o potente vinho nativo Carignano del Sulcis, enquanto conversamos sobre os nossos anseios – antigos e novos. Eles estão a estacionar o carro à nossa porta. Levamo-los, a correr, para dentro de casa e deleitamo-nos com o facto de estarmos todos juntos, na mesma sala.
“Atenção, turistas! A Sardenha não é Itália!”, exclama Murray e rimo-nos todos. Ele está a referir-se ao graffito que viu pintado na parede de uma ruína nas redondezas, que serve de sinal de boas-vindas, embora um pouco frontal, para qualquer pessoa que chegue a Sulcis de automóvel. Sim, acenamos com a cabeça: é verdade. Apesar de a Sardenha fazer parte de Itália há mais de 150 anos, tem as suas próprias tradições, as suas mitologias, os seus próprios idiomas e dialetos. Os sardos referem-se aos outros italianos, sem ponta de ironia ou de maldade, como continentali, e ainda sentem uma ligação profunda com a civilização Nuragic nativa, da Idade do Bronze. Os omnipresentes sítios pré-históricos (mais de 7 mil) da ilha são uma fonte de grande orgulho, tal como deviam ser.
Começamos, então, por levar Paola e Murray até à antiga necrópolede Montessu, acima da vila de Villaperuccio, a poucos minutos de distância. À primeira vista, Montessu parece uma simples colina, mas depois abre-se gradualmente, revelando a forma de uma ferradura, com um vale e vários buracos escavados no meio da vertente coberta de erva – grutas que foram esculpidas diretamente na rocha vulcânica por volta do terceiro milénio a.C. para serem usadas como sepulturas comunitárias. Têm desenhos elaborados gravados nas paredes e câmaras amplas e húmidas. As maiores parecem caveiras gigantescas com o olhar fixo.
No passado, os sardos acreditavam que estes domus de janas (casas de fadas) eram habitações de espíritos míticos. Apesar de ser italiana, Paola nunca ouvira falar nas janas e quer conhecer as lendas da ilha, por isso conto-lhe algumas das histórias que conheço. O meu sogro diz que não devemos visitar as fontes da floresta durante a noite para não enfurecer as fadas – essa é a altura para os animais selvagens beberem em paz. Um amigo nosso, um jovem empresário, contou-me que se consegue ouvir uma jana poderosa batendo na trama do seu tear numa gruta vizinha. Caminhamos lentamente ao longo da cumeeira onde se encontram as sepulturas vazias e silenciosas e falo a Paola sobre os brebus: orações e rituais que os sardos seguem para se livrarem do mau-olhado. Não é difícil imaginar as grutas cheias de espíritos: vestígios dos nossos antepassados partilhados. Somos os únicos na enorme bacia e o sol começa a descer, tornando-se dourado.
Algumas manhãs mais tarde, dirigimo-nos para oeste, para a vila caiada de Calasetta para embarcarmos no veleiro vintage em madeira de um amigo e visitarmos a ilha de San Pietro. Carloforte, a sua única aldeia, tem uma história complicada. Foi fundada em 1739 por pescadores de coral oriundos dos arredores de Génova que tinham passado os 200 anos anteriores ao largo da costa da Tunísia. Quando o coral da região acabou, o Rei Carlos Emanuel III deu-lhes esta ilha para repovoar a costa ocidental da Sardenha. Atracamos no porto pequeno e reluzente e desembarcamos para explorar a ilha minúscula.
Murray trabalhou como aprendiz de construtor naval quando era mais novo, por isso vamos visitar um dos últimos especialistas nesta arte, caminhando junto à costa até chegarmos à zona industrial da aldeia, a sete minutos do centro. Tonino Sanna acolhe-nos na sua oficina cheia de coisas e de serradura, que contém os esqueletos gigantescos de vários navios. Alguns estão aqui para serem reparados, mas Sanna mostra-nos, sorrindo, uma estrutura colossal que começou a construir de raiz, respeitando o estilo local. É claro que o navio estará à venda, se alguém quiser comprá-lo, mas ele espera que fique na sua oficina durante algum tempo. Carloforte foi, em tempos, famosa pelos seus construtores navais, mas a indústria sofreu um declínio drástico nos últimos anos. Há um pequeno grupo de homens a conversar e a beber café. Quando irrompem numa gargalhada, Murray olha para nós, pedindo-nos para traduzir. “Falam uma língua completamente diferente”, diz Ivano, encolhendo os ombros. “Não entendo uma única palavra.”
A Sardenha contém vários mundos: a extravagante Costa Esmeralda; o retiro catalão de Alghero; as orlas costeiras montanhosas selvagens a oriente e a ocidente; a prática e insular Barbagia; os arrozais da diligente Oristano. A ilha parece um país em miniatura, diz sempre Ivano — e as diferenças de idioma, gastronomia e temperamento entre a animada Carloforte e o resto de Sulcis são um exemplo perfeito disso. Em Sulcis, falamos sobre o nosso isolamento. Carloforte, por outro lado, tornou-se um paraíso turístico, apesar de ser uma ilha pequena ao largo da nossa própria ilha.
Avançamos para um almoço demorado, em que comemos atum pescado localmente e cascà, um prato que parece cuscuz, um resquício dos tempos em que os carlofortini viveram na Tunísia, no terraço ensolarado de uma tasquinha adorável chamada Tonno di Corsa. O atum é preparado de seis maneiras diferentes, cozido, braseado, temperado, fumado, salgado e curado, e vai-se tornando progressivamente mais intenso à medida que avançamos pelo prato, culminando numa última fatia tão potente que ponho a minha, discretamente, no prato de
Ivano. Em seguida, conduzimos até à outra ponta da ilha para visitar uma reserva natural onde falcões-da-rainha nidificam em falésias de arenito denteadas antes de regressarem a Madagáscar para o inverno. Está a tornar-se tarde e temos de voltar ao ferry, mas Paola e Murray demoram-se, sentados à sombra de quatro enormes figueiras, observando a mistura ruidosa de nativos e turistas na praça principal.
Alguns dias mais tarde, em Santadi, encontramo-nos com um grupo de mulheres de Sa Domu Antiga, um pequeno museu etnográfico. A casa baixa e modesta, com tetos revestidos a canas e paredes grossas de tijolos de adobe, é uma espécie de museu vivo, tudo no seu interior foi doado por famílias locais e, por isso, a vila considera-o um espaço comunitário. Por vezes, alguém organiza um almoço no local e, durante a cerimónia do Matrimónio Mauritano (um casamento encenado segundo a tradição local), a noiva é vestida em Sa Domu Antiga. Hoje, pedimos para usar o forno redondo típico para fazer um pão chamado coccoi, cuja massa é cortada com tesouras e cozida em formas com decorações extravagantes. É o pão oferecido às noivas e preparado para cerimónias religiosas – um pão que, frequentemente, parece demasiado bonito (agora que o pão é abundante) para comer.
Murray está preocupado com a luz, pois o teto é baixo e está pintado de cor de rosa escuro e a sala está cheia de cestos, panos e objetos de cerâmica. As mulheres estão ocupadas com a massa, temendo que o calor inclemente de Sulcis a seque antes que conseguirem trabalhá-la, moldando-a em formas redondas e pontiagudas. “Podemos ir lá para fora?”, sugere Murray. “Assim não ficam bonitos”, respondem as mulheres. Este momento parece emblemático da minha vida aqui: somos frequentemente tradutores culturais, criando uma ponte entre dois mundos, tentando explicar a cada um os preconceitos culturais que todos temos, embora não nos apercebamos.
Nas minhas primeiras visitas a Sulcis, não conseguia conciliar a riqueza dos vários ofícios – têxteis com cores vivas e padrões complexos, cerâmica minuciosamente decorada com mil e um pormenores, facas feitas à mão que toda a gente parecia ter nos bolsos — com a pobreza flagrante da região. A atenção ao pormenor era algo que eu associava ao luxo dos tempos livres e da riqueza. No entanto, os nativos sentem orgulho em fazer coisas bonitas e necessidade de honrar o passado. Para estas mulheres, este pão é sagrado porque é o pão que fizeram com as suas mães e avós em tempos idos, que agora parecem muito distantes. Muitos Sulcitani na casa dos 60 anos cresceram sem sapatos nem água corrente. Agora, os seus netos têm smartphones e Nikes e quase ninguém faz o seu próprio pão. É por isso que estas mulheres o consideram um ritual que as transporta de volta para o tempo em que um pão ainda era um bem valioso. E elas convidaram-nos a estar aqui com elas, que é a melhor dádiva da humanidade.
Começamos a entender-nos. Convenço as mulheres a levarmos uma mesa lá para fora e pomo-la à sombra da casa. Elas amassam a massa, coradas, cientes da presença do fotógrafo. Paola bombardeia-as com perguntas e elas não tardam a descontrair-se. Começam a contar piadas, enquanto pressionam a massa branca contra o tampo da velha mesa de madeira. Juntam pedaços grossos e moldam-nos em formas elaboradas. Os pães ficam diligentemente à espera em cestos grandes e planos, cobertos por panos de linho. O dia está abrasador – até à sombra de um carvalho gigantesco estamos encharcados em suor. As mulheres usam ramos de malva seca para acender rapidamente o lume do forno e o fumo fragrante que enche o pátio informa todos os moradores da aldeia que alguém está a fazer pão.
Chega a altura de carregar o forno. Uma mulher avança com uma mão cheia de farinha. Diz uma oração, beijando a mão fechada, e atira a farinha para dentro do forno quente. Vira-se para nós e ri-se, feliz. Ouço Paola murmurar para si própria: “Aquilo foi fabuloso.” Elas mexem-se depressa, limpando as cinzas do fogo e enchendo-o com a pá de madeira pesada. O pão fica pronto passados poucos minutos e tiram-no do forno: primeiro uma ferradura decorada com galinhas no ninho; depois uma boneca e, por fim, um pão insuflado com uma estrela minúscula no meio. As mulheres dizem, com humildade, que os pães não estão perfeitos, mas estão felizes e orgulhosas. Dividem os pães entre nós e entregam-nos, acompanhados por um beijo na bochecha e um aperto de mão bem forte.