GQ (Portugal)

CAPELINHA DAS APARIÇÕES

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Bruno Vieira Amaral recorda o “silêncio dos cordeiros” oferecidos ao sacrifício.

Nas últimas semanas muito se tem falado sobre o caso do recém-nascido atirado para um caixote do lixo pela mãe. A mulher ficou em prisão preventiva indiciada pela prática do crime de homicídio na forma tentada. Soube-se que tem 22 anos, vivia na rua e não contou a ninguém que estava grávida. Quando começou a sentir as contrações, saiu da tenda onde vivia com o companheir­o e dirigiu-se para um lugar isolado. Aí, pôs-se de cócoras, fez força e deu à luz. A criança caiu no chão, num saco que a mãe tinha levado com ela pois era sua intenção, desde o início, deitar fora o bebé. Foi isso que fez. Pouco depois, depositou o filho num ecoponto e voltou para a tenda. A criança foi encontrada no dia seguinte por dois sem-abrigo que passavam perto dos caixotes do lixo. Por milagre ou pela invulgar capacidade de resistênci­a dos bebés, o menino sobreviveu. Toda a gente, dos que se apressaram a apedrejar a mãe aos que logo a quiseram canonizar como grande vítima da sociedade da indiferenç­a, fez a mesma pergunta: “Porquê?” E toda a gente acha que um dia mais tarde, inevitavel­mente, a criança fará essa pergunta ou, pelo menos, terá de a carregar consigo em silêncio.

No romance Beloved (Amada), a escritora norte-americana Toni Morrison conta a história de Sethe, uma escrava que foge de uma plantação chamada Sweet Home, e que, na iminência de ser capturada, degola a filha ainda bebé. Essa morte não é abandono, é libertação. Sethe não quer que a filha conheça a não vida da escravidão. Os escravos evitavam afeiçoar-se aos filhos pois “não valia a pena memorizar feições que nunca veria transforma­rem-se em adultas”. Amar pouco era uma forma de proteção. Quanto menos amassem, menos sofreriam. A filha de Sethe regressa como fantasma para assombrar a família. “Porquê?”, é a pergunta que a imaginamos a fazer. A pergunta que o próprio Jesus fez nos seus momentos finais: “Pai, porque me abandonas?”

Mas há uma outra história mais antiga em que o silêncio da vítima se impõe. Não há revolta, nem interrogaç­ão. Apenas silêncio. Tinha Abraão a idade de 100 anos e Sara, sua mulher, já chegara aos 90, quando Deus lhes disse que haveria de lhes dar um filho e que o seu nome seria Isaac. Riu-se Abraão da promessa do Senhor pois era impossível que em idade tão avançada pudessem conceber o filho que até aí lhes fora negado. Mas Deus cumpriu a promessa e, aos 100 anos, Abraão foi mesmo pai de um menino, ao qual foi dado o nome de Isaac e que, aos 8 dias de idade, foi circuncida­do, tal como ordenado pelo Senhor.

Certo dia, anos depois, Deus chamou Abraão à sua presença e ordenou-lhe que fosse com o filho à terra de Moriá e aí o oferecesse em holocausto. Abraão não hesitou. Como desobedece­r a um Deus que cumpre as suas promessas e opera os maiores milagres? Nessa madrugada em que ouviu a voz de Deus, albardou um jumento, chamou dois dos seus servos e, acompanhad­o pelo filho, partiu para o lugar que Deus lhe indicara. Quando já estavam perto, após três dias de viagem, Abraão prosseguiu sozinho com o filho até à montanha do sacrifício. Isaac viu que o pai tinha tudo o que era necessário para o holocausto exceto o cordeiro sacrificia­l: “Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto, meu filho”, tranquiliz­ou-o o pai. No cimo da montanha, Abraão ergueu um altar, amarrou o filho e deitou-o sobre a pilha de lenha. Pegou no cutelo, levantou a mão e quando se preparava para matar o filho o anjo do Senhor falou-lhe: “Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto, agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único.” Como recompensa, Deus promete-lhe que o abençoará e multiplica­rá a sua semente.

Apesar de a Bíblia contar a história de Isaac, nada nos diz sobre o que ele sentiu ao saber que o pai estava disposto a sacrificá-lo por obediência a Deus. O episódio é sobre a fé de Abraão, a relação especial dele com o seu Deus, a confiança absurda que, vista sem os véus da crença, se assemelha ao fanatismo mais hediondo. Abraão não questiona Deus sobre as razões para o sacrifício que lhe é pedido. Aceita-o sem um protesto, disposto a executá-lo sem o mínimo exame de consciênci­a. A história é tão perturbado­ra que o filósofo dinamarquê­s Soren Kierkegaar­d lhe dedicou um livro, Temor e Tremor, para compreende­r o “salto de fé” de Abraão. Em toda a narrativa, Isaac é um mero adereço. Na verdade, é aquilo que é: um cordeiro sacrificia­l que, por acaso, sobrevive. Vive no silêncio e o silêncio dele vive em nós.

A mulher que abandonou o filho no lixo poderia ter dito que ouviu uma voz. Talvez a considerás­semos mais louca e menos cruel. Já o bebé sobreviveu porque chorou e, ao chorar, fez-se ouvir aos homens que por ali passavam. Talvez um dia pergunte à mãe “porquê?”. Talvez guarde para ele essa questão. Um dos homens que lhe prestaram socorro gostava que lhe dessem o nome de Salvador. Mas podia ser Amado. Ou Isaac porque o nome da mãe, como relatado pelos jornais, é Sara.

DEUS CHAMOU ABRAÃO À SUA PRESENÇA E ORDENOU-LHE QUE FOSSE COM O FILHO À TERRA DE MORIÁ E AÍ O OFERECESSE EM HOLOCAUSTO. ABRAÃO NÃO HESITOU

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