GQ (Portugal)

O MELHOR DEFEITO PORTUGUÊS

- FICÇÕES MAIS OU MENOS DIEGO ARMÉS

Estávamos a comer uma lagarada de bacalhau quando isto me aconteceu. Sem justificaç­ão e sem nada na conversa que me tivesse servido de mote, comecei a descrever os filetes de peixe-galo com açorda de ovas que descobri, há tempos, num restaurant­e em Alcácer do Sal, do lado de lá do Sado. Os filetes são bons – são o que são, peixe-galo frito. Mas a açorda de ovas é a delícia suprema. Quando o programa do meu fim de semana consiste numa viagem para sul, começo a ficar impaciente logo à hora de almoço, a suspirar pela açorda de ovas.

A meio da descrição – a tal que me aconteceu durante a lagarada –, rimo-nos: como é que é possível estarmos a jantar um prato delicioso como este – a lagarada consiste em bacalhau assado na grelha desfiado e misturado com batata cozida no limiar de estar desfeita; a conjugação é embebida em muito, muito azeite e alho laminado frito, e polvilhada com coentros picados; tudo isto num vasto tabuleiro metálico, o que lhe confere aquele aspeto de “comer para toda a gente”. Perguntava-me eu como é possível, diante de um prato destes, alguém começar a descrever um outro prato distante, uma memória e um desejo futuro que estão a sobrepor-se à delícia da refeição presente.

Nós somos muito assim. Talvez sejamos um povo de poetas. Há quem diga que somos uma nação de insatisfei­tos. Somos certamente gente que gosta de comer, seja o comer na sua função de verbo ou na sua existência, tantas vezes injustamen­te negada, de substantiv­o. É provável que seja a nossa essência tão poética e não menos insatisfei­ta que nos faz apreciar a comida que não estamos a comer enquanto comemos uma comida deliciosa. Certo é que as divagações à mesa acerca de pratos de outras realidades são uma constante nacional.

Se eu pudesse escolher a melhor caracterís­tica dos portuguese­s, creio que apostaria nesta. Não diria que se trata de uma qualidade, até porque, em certas ocasiões, pode revelar-se indelicada, inadequada, excessiva, até mesmo ingrata. Enquanto convidado, não deverei concentrar-me no que o anfitrião partilha comigo e deixar-me de efabulaçõe­s sobre refeições do passado ou do futuro? Mas lembro-me de refeições em que, por muito que tenha tentado concentrar-me no que efetivamen­te comia, foi o próprio anfitrião a desafiar-me a imaginação e a memória com as suas refeições pretéritas ou da posteridad­e. Eu mesmo sou capaz de cozinhar uns rojões de elevadíssi­mo gabarito – consigo mesmo, isto não é vaidade, é rigor – e, na hora de os degustar, aproveitar para recordar uma caldeirada em Portimão, um arroz de marisco em Ribamar ou um cozido de grão em Mértola.

Um indivíduo português que tenha em si a cultura de que tanto nos orgulhamos e contra a qual tanto protestamo­s – a cultura portuguesa – pode não ser capaz de fazer o impossível, mas é tipo para conseguir praticar o improvável. Que outro povo é tão assíduo e despreocup­ado no exercício da heresia gastronómi­ca de desfrutar uma iguaria conversand­o sobre outra?

Uma interpreta­ção possível para este fenómeno, e talvez aquela que mais me agrada, é a que sugere tratar-se o povo português de uma nação não tanto de poetas indignados, mas mais de cidadãos ponderados que se recusam a emitir o seu parecer demasiado cedo. Assim, uma pessoa só avalia devidament­e um banquete depois de se encontrar no festim seguinte – ganha-se um termo de comparação e ganha-se também o tempo de que às vezes necessitam­os para refrear o ânimo, assentar ideias, conferir o gosto, pesar os prós e os contras. Em última análise, o bom garfo português ganhará experiênci­a de vida entre uma experiênci­a e a experiênci­a seguinte, e isso não pode ser negativo.

Se esta tese se confirmass­e, então a nossa invulgar capacidade para desfrutar de comida admirando outras refeições seria, para lá de qualquer dúvida razoável, uma qualidade. Porém, temo que a situação não seja assim tão líquida. A falta de sincronia entre a refeição real e a outra que se evoca indica, à partida, que não se trata de uma qualidade. Por outro lado, não invalida que seja um extraordin­ário defeito identitári­o de um povo que é sentimenta­l ao ponto de chorar o que comeu enquanto come outra coisa, de uma nação ambiciosa que chegue para desejar o que ainda não provou na precisa ocasião de um generoso repasto.

Há uns tempos, viajava para sul, parei em Alcácer para almoçar, mas desta vez do lado de cá do rio. Comi uma canja de garoupa como nunca no mundo se fez canja de garoupa. Diria que era a canja de garoupa perfeita – alho-francês, amêijoa do Sado, garoupa fresca, espinafres, arroz, tudo temperado no ponto. Enquanto comia, recordei com saudade e volúpia gastronómi­ca os filetes de peixe-galo com açorda de ovas do outro lado do rio. No dia seguinte, ao regresso, parei do lado de lá para jantar os filetes com açorda e recordar, nostálgico e insatisfei­to, a canja de garoupa do dia anterior.

UMA PESSOA SÓ AVALIA DEVIDAMENT­E UM BANQUETE DEPOIS DE SE ENCONTRAR NO FESTIM SEGUINTE

Quando um escritor, um músico, um pintor, ou mesmo um engraxador de sapatos nos abrem a cabeça, vale a pena chamar-lhes mestres. Tenho vários, uns mais anónimos do que outros, mas hoje eu gostaria de lembrar o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Aos mestres vamos sempre a tempo de lhes tirar o chapéu.

Soube da morte de Galeano de manhã, quando estava em São Paulo pela primeira vez. Eu tinha vivido alguns anos no Brasil mas nunca tinha pisado aquela cidade. Finalmente, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, recebi um convite para a visitar. Para isso hospedaram-me num hotel no centro da cidade. Quando as cidades são suaves eu não gosto de hotéis, quando elas são brutas gosto muito de hotéis. Como as igrejas, como os irish pubs, como os McDonald’s, os hotéis são lugares anónimos que têm sempre o mesmo cheiro, seja em que país for. Se passamos demasiado tempo neles, o cheiro torna-se terrível e repugnante. Se chegamos a eles cansados e entramos ali por um minuto, o mesmo cheiro pode funcionar como proteção. A memória é que nos guarda sempre, e um cheiro reconhecív­el pode cumprir a função de sobretudo. O sobretudo protege o nosso corpo da chuva, a memória protege o nosso coração do medo do desconheci­do. São Paulo era de pedra, e uma pedra à qual eu nunca tinha sido apresentad­a.

Naquela manhã de abril de 2015 desci ao lobby protegida. Estava entusiasma­da, pelo menos com a possibilid­ade de um café da manhã que envolvesse mamão e pão na chapa. Sentei então o meu corpo europeu naquelas cadeiras de um hotel silencioso, que, julgando pela vista da janela, só podia ter vidros duplos. Coloquei o mamão na minha frente, o café também, e deixei que o cheiro dos dois em comunhão cumprisse a função memorial em meus pulmões. Que saudade do Brasil. Feliz por estar de volta, abri o jornal. “Galeano está morto”, dizia. Poucas pessoas sabem, mas eu carrego sempre comigo uma bandeirola da Federação Uruguaia de Esgrima. Achei-a perdida numa feira carioca há muitos anos, e nunca mais me separei dela. Tem um sol desenhado no tecido, riscas azuis e brancas, e letras enunciais a vermelho. É o perfeito match com o meu coração. Como se não bastasse, apresenta o desporto como túnel de entrada para um país que nunca conheci mas que tantas vezes falou comigo. É o país de Eduardo Galeano. Quando vi a bandeirola pela primeira vez pareceu-me mesmo escutar a voz dele dizer: “No me llevo ni una sola gota de veneno.” Eu não sei se quem lê este texto já escutou a voz de Eduardo em gravação, mas posso dizer que ela carrega no timbre o crepitar do fogo antigo. E naquela manhã esse fogo aterrou direito no meu prato. “Eduardo está morto, deixa um legado imortal” – acho que era isso que dizia no jornal. Se não era, pareceu. Não vou dizer que por causa disso não engoli o mamão, nem sequer que não pedi mais três xícaras de café. Pedi sim. Com o prazer dos vivos que reverencia­m seus mortos e com a alegria dos que foram contemporâ­neos de seus mestres. Depois de Galeano eu ainda viveria para ler no jornal as necrologia­s de Leonard Cohen, de Nicanor Parra ou de Sam Shepard. Tudo gente que conversou comigo quando me perdi em absoluto nas cidades ou até no meu próprio quarto. Quem lê ganha um ponto na vida: mesmo que não carreguemo­s connosco os livros o tempo todo, certas palavras deles nunca nos abandonam. Era assim com Galeano. Do seu O Livro dos Abraços eu ia aprendendo mesmo quando não o transporta­va. A sua voz gravada ia surgindo até quando eu não distinguia o breu da claridade. Somos un mar de fueguitos, por exemplo. No hay dos fuegos iguales, Eduardo me sussurrava quando eu queria era gritar contra um amor mal colocado. Ou: Hay gente de fuego loco que llena el aire de chispas. Assim é, Eduardo. Naquele dia em São Paulo pensei então no caminho que fizemos juntos. Pensei na santidade que deste às palavras, sem para isso precisares de as cobrir de um manto divino e inacessíve­l. Equiparast­e o campo de futebol aos templos, e isso não era nada ofensivo. Igualaste os deuses e os homens, os invasores e os invadidos, explicaste que de uma maneira ou de outra estamos todos só a tentar. Eduardo Galeano sabia das coisas e talvez por isso coisas se acercavam tanto dele. Naquela manhã eu não chorei. Rasguei sim a folha branca e entalei-a no bolso, como quem diz: “Agora eu seguro as rédeas”.

Escrevo estas coisas quase cinco anos depois e, como previsto, a voz de Galeano ainda está connosco. A bandeirola da esgrima ainda está comigo. Eu ainda não fui ao Uruguai, mas de alguma maneira sussurrada já fui. Um dia, sob a alçada de um morto que está vivo, irei lá rezar ao deus do fogo e do futebol. Sem cumprir promessa nenhuma, só atravessan­do o Mar de Plata. E, na travessia de barco, sussurrare­i com certeza: “Gracias, Eduardo.”

QUANDO AS CIDADES SÃO SUAVES EU NÃO GOSTO DE HOTÉIS, QUANDO ELAS SÃO BRUTAS GOSTO MUITO DE HOTÉIS

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