O PAI NATAL E OE PAI TIRANO
A nossa educação cristã seria outra se, em vez de festejarmos no Natal os presentes dos reis magos, celebrássemos a fuga para o Egito.
Um dos tweets mais badalados recentemente foi o de um pai que partilhou a lista de Natal da filha de 10 anos. Tinha 26 pedidos. Mais do que a ambição da criança, que imaginou o saco do pai natal com 26 embrulhos só para ela, impressionou-me a natureza dos pedidos, que incluíam 12 marcas, algumas de luxo.
Para além de um coelho, e de comida para o coelho, ela queria um iPhone 11, o novo modelo do Mac Book Air, uma câmara GoPro, uma bolsa Chanel, sapatilhas Vans xadrez, ténis Puma cor-de-rosa, sandálias Gucci, brincos e joias, perfumes e óleos essenciais... quase me esqueci que também pedia 4 mil dólares e um relógio despertador.
Nós, os adultos, achamos piada às crianças não por ainda acreditarem no Pai Natal, mas por serem umas grandes comediantes. Com a sua noção apurada do absurdo, as crianças têm todo o gosto em participar da comédia que é a nossa vida, como por exemplo salvar o planeta das alterações climáticas e comprar um novo modelo de telemóvel.
Levamos vidas fúteis, dedicadas a recompensas pueris e a ações a que não medimos as consequências. Somos danados para a brincadeira, mas este mundo é mesmo estruturado por relações de causa e efeito, e os efeitos quase sempre inundam as nossas boas intenções com uma perversidade espetacular. É por isso que tantas crianças enlouquecem antes de se tornarem adultas. Elas nem imaginam que é o excesso de presentes a enterrar-lhes a noção de futuro. Um maluco com poucos meios no máximo consegue destruir-se a si mesmo; deem-lhe alguns recursos e ele encarregar-se-á de no mínimo destruir mais algumas vidas à sua volta.
Uma das consequências imediatas da liberdade sexual e dos métodos anticoncecionais foi os homens terem deixado de ser pais. Nascem cada vez menos crianças porque ninguém se dispõe de boa vontade a ser o Pai Natal desses monstrinhos adoráveis que trocam a sua ternura pela satisfação dos caprichos mais assustadores. E como, entretanto, os homens não podem explicar nada, sob pena de serem acusados de mansplaining, nem tão pouco podem assumir uma posição de princípio, sob pena de serem acusados de masculinidade tóxica, evitam implicar-se seja no que for. Quanto menos compromissos, menos acusações de faltarem às responsabilidades. Podendo evitá-las, quem não?
Observados em manada, os homens fazem por estes dias fraca figura. Desde que perderam o poder e a vontade de se comportarem como pais tiranos, preferem beber o elixir da eterna juventude. Não havendo filhos para criar, limitam-se a satisfazer os próprios caprichos. E assim continuam a fazer vida de crianças.
Os rapazes atualmente têm pior rendimento do que as meninas na escola, são os primeiros a desistir da sua educação e os últimos a investir numa carreira. Deixaram de ter ambições de chefia e, pudera!, se nem conseguem dar um rumo à sua vida, por que carga de água haveriam de pretender dar um rumo à vida dos outros?
Os rapazes podem hoje entregar-se à satisfação dos seus desejos mais individualistas. Mais difícil é encontrarem uma causa, em que possam formar o caráter. Quando se deixam apanhar num enredo familiar, e se tornam pais, até estão dispostos a pagar contas. A endividarem-se. A satisfazer os pedidos mais assombrosos ao Pai Natal.
Partilharem o seu modo de vida, onde se sujeitam a mostrar onde fraquejam, é outra história. Longe vão os tempos em que a educação de um filho era acompanhar o pai no seu lugar de trabalho.
Observando um quadro de Ticiano, com quase 500 anos, apercebo-me do quanto nós, homens, filhos e pais reticentes, nos afastámos do sentido de honra. A cena, pintada por Ticiano, alude ao momento em que o general Alfonso de Ávalos se dirige ao seu exército, amotinado por falta de comida e de pagamento. A forma como ele convenceu os seus homens a esperarem por mais uns dias, e a submeterem-se à sua autoridade, deixaria a opinião pública de hoje de cabelos em pé. Tendo de dirigir-se a Milão, para convencer os patronos da cidade a darem-lhe o dinheiro que devia aos soldados, deixou o filho como caução à guarda do exército. O seu filho, Francesco Ferdinando, nem 10 anos tinha quando se deu o episódio.
A decisão de Alfonso de Ávalos foi considerada imprudente. Até o imperador sacro-romano germânico, Carlos V, o repreendeu. Mas se hoje sabemos desta história foi porque ele quis que ela fosse contada. Foi o próprio Alfonso de Ávalos a encomendar o quadro a Ticiano, depois de ser nomeado governador de Milão.
Nem o amor se conquista com presentes, nem o respeito se adquire sem compromisso. Ao usar o filho como caução da sua honra, Alfonso de Ávalos enviou uma mensagem de confiança aos seus homens e deu uma lição de liderança ao filho, que também veio a ter uma importante carreira política e militar. Quem arriscaria hoje tal gesto? No quadro, Alfonso de Ávalos dirige-se aos soldados e discursa para eles. Ao lado dele, Francesco Ferdinando segura o elmo do pai e olha para nós. Como que a interrogar-nos: e vocês, desse lado do tempo, em que situações melindrosas se viram metidos com os vossos pais?