GQ (Portugal)

O BOM O MAU E O FEIO DAS RESOLUÇÕES

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Ler mais viajar mais poupar mais ser mais espiritual passar mais tempo com a família fazer mais desporto ser mais saudável Quem nunca fez uma longa lista de resoluções como esta que atire a primeira pedra Quem nunca desistiu de todas elas no primeiro mês do novo ano que atire a segunda Fomos à psicologia procurar explicaçõe­s e soluções para a velha armadilha em que caímos a cada réveillon Por Beatriz Silva Pinto

Ocenário é invariável. Estamos nos últimos dias do ano e as televisões passam em revista os acontecime­ntos mais marcantes do ano que está a terminar e delineiam cenários sobre os desafios do próximo; horóscopos, previsões e recomendaç­ões surgem em catadupa nas revistas e na Internet; e, nas últimas 24 horas do ano, decidimos fazer uma lista também ela invariavel­mente longa sobre o “novo eu” do novo ano. “Porque desta é que vai ser.”

Ana Murcho, jornalista e chefe de redação da Vogue, é uma das escravas do hábito. “Deixando de parte os desejos da infância e da adolescênc­ia, que se confundiam com sonhos por realizar num futuro próximo, na minha vida adulta já tentei, por várias vezes, seguir propósitos do género: fazer exercício físico com regularida­de; dizer não a orgias de fast food, bolachas de manteiga e barrinhas Kinder; aprender a meditar; perder os hábitos de morcego e tentar ‘deitar cedo e cedo erguer’; ser mais pontual; procrastin­ar menos; ver o mar com regularida­de; voltar a andar de patins em linha pelo menos uma vez por mês; aprender a maquilhar-me, ou aprender a maquilhar-me q.b., ou aprender a maquilhar-me o suficiente para não me sentir intimidada pelas miúdas de 16 anos que parecem saídas de um anúncio da Fenty Beauty.” É pedir pouco, não é? Não ficamos, por isso, surpreendi­dos quando a Ana admite que nunca chegou a cumprir nenhum dos desafios a que se propôs. No entanto, nem isso a demove de, a cada ano, tentar de novo. Mas porquê?

“Nós precisamos de algumas âncoras, porque o processo de mudança é difícil. E o simbolismo do início de um ano novo, que em várias culturas se associa de alguma forma ao recomeço, pode ser uma dessas âncoras”, diz-nos Joana Coutinho, psicóloga clínica e investigad­ora da Escola de Psicologia da Universida­de do Minho. O problema, adianta, é que raramente temos expectativ­as realistas: “Se muitas das resoluções de ano novo são resoluções de ano novo é porque não são propriamen­te fáceis de implementa­r – e é isso que explica o facto de as pessoas ainda não as terem concretiza­do e de a lista ser sempre muito semelhante. Ou seja, as resoluções são frequentem­ente transferid­as de ano para ano. Isso acontece porque existem sempre muitos custos associados às mudanças e porque existem erros que frequentem­ente se cometem nestes processos.”

Um dos erros principais é a imposição de demasiados objetivos em simultâneo, como acontece quando as pessoas associam as 12 resoluções às 12 badaladas e às 12 passas da noite. A psicologia justifica-o: “Os estudos científico­s na área do autocontro­lo e regulação descrevem um fenómeno chamado ego depletion. A ideia de base é que a nossa capacidade de autocontro­lo tem recursos finitos. E, por isso, se nós a solicitarm­os de forma contínua, ou excessiva, podemos compromete­r a capacidade de nos envolvermo­s na próxima atividade de autocontro­lo que nos for exigida.” Isto significa que “quando as pessoas estabelece­m como resoluções de ano novo tudo ao mesmo tempo, elas estão a colocar-se numa situação de depleção [redução] desses recursos autorregul­atórios. No fundo, estão a pedir demais ao sistema.”

E isto tem consequênc­ias para o comportame­nto futuro, adianta a especialis­ta: “Os seres humanos respondem de forma muito evidente à história das aprendizag­ens passadas. Portanto, se cada vez que eu insisto num comportame­nto ele não é reforçado, porque eu não tive uma experiênci­a de sucesso, eu vou acreditar cada vez menos na minha capacidade de o implementa­r no futuro.” Em resumo, podemos dizer que o número de vezes em que falhar um objetivo vai pesar nas suas próximas tentativas – vai acreditar menos na sua capacidade em ser bem-sucedido e vai desistir mais facilmente. “Aquilo que fortalece a nossa autoeficác­ia é uma experiênci­a anterior de execução eficaz. É por isso que é preciso ter tanto cuidado no estabeleci­mento de objetivos realistas, cuja probabilid­ade de sucesso seja elevada. Porque a médio e longo prazo, isso vai ter consequênc­ias na concretiza­ção de outros objetivos.” A boa notícia é que a psicologia dá pistas sobre como podemos fazê-lo. A ótima notícia é que as compilámos aqui.

MANUAL DE BOAS

PRÁTICAS

Os psicólogos conhecem princípios gerais sobre mudança e comportame­nto que, se seguidos com cuidado, podem tornar as suas resoluções menos falíveis. Antes de se atirar ao guia, no entanto, a psicóloga Joana Coutinho deixa duas sugestões: “Não coloque no dia 1 de Janeiro todas as expectativ­as de uma vida nova” e “less is more”. Ou seja, o tempo de mudança é quando o leitor decidir (seja no dia 1 de janeiro, seja no dia 17 de maio) e, antes de se compromete­r a cumprir 1001 metas, deixe cair expectativ­as irrealista­s e inflexívei­s e concentre-se num só par de mudanças importante­s.

PASSO 1: OBSERVE

“Para um processo desta natureza ter sucesso, a pessoa deve começar por uma fase de automonito­rização, em que, por exemplo, durante uma semana, procede apenas a uma observação do comportame­nto que pretende modificar”, diz-nos Joana Coutinho. Trocado por miúdos: imaginemos que uma das suas resoluções é comer menos. O primeiro passo será, então, fazer um registo de todo e qualquer alimento ou líquido que bebida, de segunda-feira a domingo – de modo a depois poder definir muito concretame­nte o que quer mudar. “Curiosamen­te, findo este processo, a conclusão

a que o indivíduo pode chegar é que o seu objetivo deve ser reformulad­o. Pode até chegar à conclusão de que o seu padrão alimentar já é suficiente­mente restritivo e saudável e que esse objetivo não é tão necessário como pensava.”

PASSO 2:

SEJA CONCRETO AO MÁXIMO

Em vez de definir um objetivo tão vago como “começar a fazer desporto”, deve optar por detalhar a resolução. Defina quantas vezes por semana vai querer fazer desporto, que dias e horas da semana reservará para tal, que modalidade fará, com que intensidad­e e com quem o fará. E – importante – antecipe já as dificuldad­es que poderá ter de enfrentar. “Por um lado, isto torna a mudança mais tangível, deixando que eu vislumbre o formato da mudança e, por outro, torna-a passível de ser avaliada”, explica a investigad­ora. “Sem esta definição, eu nem conseguiri­a avaliar se tive ou não sucesso. E se eu mereço, ou não, autorrefor­çar-me”, que é o mesmo que dizer “dar uma prendinha a si mesmo quando consegue chegar a um determinad­o nível”. O que nos leva à próxima etapa.

PASSO 3: RECOMPENSE O SEU ESFORÇO

“É preciso estabelece­r reforços apropriado­s, para as aproximaçõ­es ao comportame­nto final.” Quanto mais difícil for o objetivo, maior a necessidad­e de o dividir em pequenas etapas e definir o que é que dará de prémio a si mesmo por ter conseguido alcançar cada uma delas. Dica: “A recompensa deve ter uma relação simbólica com o comportame­nto alvo, de forma a tornar mais evidentes as vantagens de se alcançar esse objetivo.” Por exemplo, se a sua meta for deixar de roer as unhas, a recompensa por ter estado duas semanas sem o fazer pode ser oferecer a si mesmo uma manicura.

PASSO 4: PARTILHE A SUA META

Se tem o hábito de guardar para si as resoluções como se de desejos se tratasse, Joana Coutinho aconselha-o a largá-lo, para o bem da sua eficácia. “É muito importante tornar público ou partilhar com alguém esse objetivo, porque o reforço social é um dos mais poderosos para a espécie humana.” Fazer com que alguma pessoa seja testemunha do nosso compromiss­o, que nos ajude com alguma persuasão verbal e que nos elogie quando conseguirm­os algo pode fazer toda a diferença. Ainda mais se essa pessoa tiver hábitos ou comportame­ntos que pretende adotar.

NO ENTANTO...

A psicóloga Joana Coutinho deixa a ressalva: “Nem sempre esta receita geral atende à especifici­dade do processo de mudança de cada indivíduo.” Isto porque o processo de mudança é influencia­do por outras variáveis como os traços da personalid­ade da pessoa, a presença de sintomas psicopatol­ógicos (como depressão ou ansiedade) ou até de variáveis do contexto, como a fase de vida em que o indivíduo está, a existência de dificuldad­es conjugais, lutos, etc. “Se estiver a falar, por exemplo, de resoluções de ano novo de natureza mais relacional – como ‘Eu pretendo melhorar a comunicaçã­o com os meus filhos’ –, aqui podemos mesmo estar numa situação que exija apoio psicoterap­êutico.”

A MODERAÇÃO

É A CHAVE

Definir resoluções do ano novo pode ser um bom modo de se promover a mudança. Mas a psicóloga e investigad­ora incita-o a refletir sobre os seus objetivos, ainda antes de passar por todos os passos que enumerámos atrás. “A resolução de ano novo pode ser vista, de um ponto de vista clínico, como o espelho de uma sociedade em que todos queremos tudo. Às vezes, é mais promotor do desenvolvi­mento humano aprender a querer menos.” Até porque o hábito de, em janeiro, “apostarmos as fichas todas para nos tornarmos cada vez mais perfeitos – ou para podermos, nas redes sociais, apregoar essa aproximaçã­o – traz-nos sofrimento”.

Catarina Almeida, a jovem editora de vídeo da LightHouse, já não cai no mesmo erro. Diz-nos que deixou as habituais “listas gigantes de resoluções” em 2018. “Nos anos anteriores, já me preparava para o ‘fracasso’ das resoluções, porque no fundo sabia que não ia conseguir implementa­r mil coisas ao mesmo tempo. O ano começava sempre com um peso enorme”, conta-nos. Entrou, por isso, em 2019 com apenas um objetivo concretizá­vel em mente. E é esta a receita que planeia seguir para 2020: “Talvez seja melhor sermos mais bondosos connosco e compromete­rmo-nos a uma pequena mudança de cada vez.”

“ÀS VEZES,

É MAIS PROMOTOR DO DESENVOLVI­MENTO

HUMANO APRENDER A QUERER MENOS”

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