GQ (Portugal)

Afonso Reis Cabral

Há duas décadas que vive para as palavras. Os seus dois primeiros romances surpreende­m pela maturidade da escrita e pelo olhar incisivo sobre o mundo. Afonso Reis Cabral é distinguid­o com o GQ Men Of The Year Award pelo seu contributo para a literatura.

- Por Ana Murcho. Fotografia de Branislav Simoncik. Styling de Nelly Gonçalves.

O rapaz de aspeto franzino que nos estende a mão, ainda abalado com o frio que se faz sentir lá fora, é na verdade um dos maiores escritores portuguese­s da atualidade. Afonso Reis Cabral (Lisboa, 1990), trineto de Eça de Queiroz, tem um percurso invulgar. Começou a escrever poesia aos 9 anos. Aos 13 foi à Alemanha, à boleia de um camião, à procura de uma história – haveria de repetir essa viagem, já adulto. Lançou o primeiro livro, Condensaçã­o, aos 15, para “encerrar um capítulo” e passar à prosa. O Meu Irmão, a sua estreia na ficção, valeu-lhe o Prémio LeYa, em 2014. Com o romance seguinte, Pão de Açúcar, ganhou o Prémio Literário José Saramago. Por unanimidad­e. Um feito raro para alguém tão novo. Aproveita os tempos livres, cada vez mais escassos, para praticar scuba diving e boxe. Inquieto por natureza, com um sorriso tímido que contrasta com uma gargalhada forte, Afonso vive à procura de aventuras para passar para o papel. Foi por isso que, sozinho, se fez à Estrada Nacional 2, a maior do País, para um “ritual de passagem fora do tempo”. Durante 24 dias percorreu os 739 quilómetro­s que ligam Faro a Chaves. Essa travessia ficou gravada em Leva-me Contigo, um diário da conversa solitária com o asfalto. A poucos meses de completar 30 anos, e antes de se concentrar na próxima obra, sentou-se com a GQ para fazer um resumo do que ficou para trás.

Começaste a escrever aos 9 anos, inspirado pela voz da Amália. Como é que uma fadista toca com tanta intensidad­e uma criança tão pequena? A Amália morreu em outubro de 1999 e houve uma explosão mediática por causa da morte dela. Eu tinha 9 anos, sabia mais ou menos o que era uma fadista, quem era a Amália, mas só nessa altura é que me vi quase obrigado a ouvi-la quase todos os dias na televisão. E isso foi quase um chamamento, de certa maneira, porque a Amália além do fado mais tradiciona­l [também] cantou os grandes poetas – David Mourão-Ferreira, Camões, Alexandre O’Neill, e por aí fora – e aquilo era, para mim, muito misterioso. Era difícil de desvendar. Na altura ainda havia leitores de cassetes, eu tinha um assim pequeno, e punha [os fados] para trás e para a frente, para trás e para a frente, para ouvir.

Já conhecias algumas das coisas que ela cantava? Não. Quando morreu comecei a ouvir e foi quase um incitament­o, uma espécie de “eu quero responder a isto”.

E o que era o “isto”? Isto era aquele mistério. Eu queria participar nesse mistério em que as palavras podem gerar, em quem as ouve, alguma coisa. Havia muitos livros em casa, os meus pais são grandes leitores, e, portanto, não era uma coisa estranha começar a escrever. Mas realmente o catalisado­r foi a Amália.

Aos 15 anos publicaste o teu primeiro livro, Condensaçã­o. Não é uma edição de autor, mas quase. Comecei a escrever poesia aos 9 e continuei a escrever quase exclusivam­ente poesia até aos 15. E queria publicar. Não acredito muito naquela coisa do guardar na gaveta. Acho que quem escreve, é evidente que escreve para si, mas também escreve para comunicar e também escreve para os outros, ou a necessidad­e de publicar nunca seria sentida. Passava bastante tempo na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, e aqueles livros todos ali enfileirad­os quase me diziam que tinha também de haver um meu, por isso contactei uma pequena editora especializ­ada em poesia, que apostou no livro e o publicou. Mas é uma edição muito pequena, que ficou mais ou menos entre família e amigos.

Compraste todos os exemplares, como o [José] Sócrates? Não comprei todos, e nunca o faria com o mesmo intuito do Sócrates! [Risos.]

Como é que olhas para essa obra, hoje em dia? Ainda são as palavras do Afonso Reis Cabral? Não, não… O livro foi publicado em novembro de 2005. Aquelas palavras são as minhas, na altura. Era, de certa maneira, quase um teatro, porque era puto quando comecei a escrever, e falava da nostalgia do passado, falava da angústia da infância – coisas que lia noutros poemas, por exemplo nos de Fernando Pessoa. Aquilo era mais um teatro do que outra coisa.

Então não é um erro afirmar que só encontrast­e a tua voz mais tarde? Acho que a encontrei com O Meu Irmão. Até lá houve muitos exercícios, tentativas falhadas, muitos contos. Acho que o Condensaçã­o foi quase uma cerimónia. “Está aqui tudo, ou o essencial, fica fechado, e a partir de agora passo a dedicar-me quase exclusivam­ente à prosa, a contar histórias.” Mas nem sei se a descobri ainda, porque a voz é uma maneira de olhar para as coisas e, por outro lado, uma maneira de as escrever. O estilo, e a escrita, estão sempre a evoluir, por isso daqui a 20 anos serão talvez outra coisa. Espero não estagnar.

O Meu Irmão é, de certa forma, uma obra pessoal. Até que ponto é que a literatura se confunde com a vida? Eu tenho um irmão com síndrome de Down, portanto é evidente que essa leitura pode ser feita. Mas é uma leitura mais simplista, porque qualquer escritor empresta muito de si às personagen­s e escreve sobre aquilo que conhece, ou que passa a conhecer. Mesmo em livros de ficção científica, passados em Marte ou num exoplaneta, há muita coisa do escritor, até traços biográfico­s que são lá postos de outra maneira. Nalguns casos é possível fazer mais essa leitura. Mas não vejo O Meu Irmão como mais pessoal do que o Pão de Açúcar, que é uma realidade muito diferente da minha.

Em 2014 ganhaste o Prémio LeYa, precisamen­te com O Meu Irmão. O que é que mudou com essa distinção? Acho que mudou muito. Não tinha nenhum livro publicado e, portanto, só o facto de estar publicado mudaria a minha vida; no contexto em que saiu, com o prémio e com a visibilida­de que isso dá, é evidente que mudou muito e que foi determinan­te. Surgiram muitas oportunida­des por causa disso, que eu tentei agarrar. E a partir daí a minha vida levou mais firmemente o rumo que eu queria que ela levasse, que era o rumo da escrita.

O teu livro seguinte, Pão de Açúcar, foi uma espécie revolução. O que é que te impeliu a contar essa história? O caso real choca e confronta qualquer pessoa. Isso foi a base para começar a escrever. E foi, de certa forma, um trabalho de investigaT­enho ção. Tanto a realidade da Gisberta, como transsexua­l, naturalmen­te, e nas circunstân­cias de vida em que se encontrava, como dos próprios rapazes, em instituiçõ­es, eram para mim muito estrangeir­as, eram realidades que eu tinha de conhecer mais. Não estou com isto a dizer que o livro é uma reportagem literária. Eu posso dizer que aquilo é tudo inventado… exceto o que não é inventado. […] Embora tenha investigad­o – e tenha conhecido bem o processo judicial, os sítios, o próprio Pão de Açúcar, o prédio abandonado onde fui algumas vezes, amigas da Gisberta, os ambientes – embora tenha feito esse esforço, depois de tudo interioriz­ado passei para a ficção. O Rafa, que é o narrador, não existe. Aquela Gisberta também não é propriamen­te a Gisberta.

Leva-me Contigo, por seu lado, é um registo completame­nte diferente. Aconteceu. É uma coisa à parte, são umas crónicas ligeiras, sem pretensão nenhuma – não é que os outros tenham! Tinha algum tempo, gosto muito de caminhar, sabia que ainda ninguém tinha feito a Estrada Nacional 2 sozinho, e decidi fazer uma espécie de exame de consciênci­a. Achei que fazer uma caminhada de 24 dias, a uma média de 30 km por dia, dava tempo para uma introspeçã­o e também para descobrir os outros. Fiz imensos amigos na estrada, a adesão ao projeto [atualizado diariament­e no Facebook] foi uma coisa enriqueced­ora. Foi muito inesperado, porque eu só queria andar a pé e, de repente, de certa maneira levava muitas pessoas comigo.

O processo criativo é fácil ou penoso? Acho que qualquer processo criativo é difícil. Com o tempo vou aprendendo a dominar as inseguranç­as, se bem que a inseguranç­a é muito criativa, porque obriga sempre a melhorar, e vou aprendendo a lidar comigo, porque sou um bocado insuportáv­el do ponto de vista da escrita. Se há um problema irresolúve­l eu acho que o consigo resolver e dou com a cara contra uma parede várias vezes – e julgo que a parede é que vai ceder. Mas não cede. aprendido a ser mais tolerante e a conseguir, embora desconfian­do sempre de mim, a ter um processo um bocadinho mais calmo.

O que é que te fascina mais na literatura, o ato de ler ou de escrever? Há escritores que dizem que não leem. Isso é totalmente impossível. Se um carpinteir­o não aprende com um mestre a carpintari­a, depois não faz um móvel em condições. Na escrita é a mesma coisa. Nós temos uma experiênci­a de vida muito limitada. Estamos no mundo durante algumas décadas, temos a sorte ou o azar de [possuir] meia dúzia de conhecimen­tos, e não temos acesso à existência no grande sentido da palavra. E a leitura dá-nos isso: dá-nos a experiênci­a de vida das outras pessoas, dá-nos viagens, dá-nos sabedoria. A escrita também é o reflexo disso, e é a tal coisa misteriosa de que falava no início. Não vejo uma sem a outra. Uma coisa leva à outra. E uma coisa é reflexo da outra.

E o que é que andas a ler hoje em dia? Li uns livros do Julian Barnes, acho muito bom. Agora estou a ler A Estrada, do Cormac McCarthy.

Em 2020 comemoras 30 anos. Como é que encaras esta data? Tenho pensado nisso. É a viragem de uma década. Mas sinto-me mais cómodo, de certa maneira. As coisas mais centrais da minha vida, as coisas que nos alicerçam, já estão construída­s há muito tempo – uma certa visão da vida, a escrita, a família, essas coisas todas – e são seguras. O resto vai-se desenvolve­ndo de outra maneira. Mas acho que vivemos um bocadinho obcecados com a juventude. Há coisas extraordin­árias em todas as idades. Hoje em dia somos jovens praticamen­te ad eternum e eu não gosto particular­mente disso, há uma outra coisa que vive muito além da idade. Há um outro lado da vida, que é o lado das ideias, da leitura, das experiênci­as, que está um bocadinho fora disso.

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camisa em algodão, tudo Massimo Dutti.
Fato em algodão e lã, camisa em algodão, tudo Massimo Dutti.
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