O RELÓGIO DO PROLETARIADO
LEMBRA-SE DE OUVIR DIZER QUE UM CASACO OU UMA CANETA ERAM “ROSCOFE”? FIQUE A SABER QUE A EXPRESSÃO NASCEU DE UM SONHADOR, QUE UM DIA QUIS CRIAR UM RELÓGIO PARA TODOS OS PULSOS (E BOLSOS).
ULTIMAMENTE CAIU EM DESUSO, MAS HÁ UNS ANOS DIZIA-SE DO QUE TINHA POUCA QUALIDADE OU BAIXO VALOR QUE ERA “ROSCOFE”. A ORIGEM DA EXPRESSÃO ENCERRA UMA HISTÓRIA QUE VAI MUITO ALÉM DA DESCRIÇÃO DE ALGO
QUE NÃO PRESTA: OS RELÓGIOS ROSKOPF SÃO UM SÍMBOLO DO ROMANTISMO IGUALITÁRIO.
POR DIEGO ARMÉS
Nos anos 80, havia dezenas de coisas que podiam ser roscofe. As canetas eram frequentemente roscofe, o que é normal para quem ainda estava na escola primária e aprendia a juntar as letras e o que eram ditongos; as sapatilhas podiam ser roscofes, porque nem sempre se justificava gastar dinheiro em calçado de marca que iria deixar de servir daí a um ou dois meses; com a roupa acontecia o mesmo, pelo que era normal usarmos casacos roscofe. Quando éramos miúdos, não sabíamos que roscofe não tinha plural, então, se estivéssemos a referir-nos a mais do que um bem de parca qualidade e reduzido valor, diríamos dessas coisas que eram roscofes. Era um tempo em que até os relógios podiam ser roscofe, mesmo aqueles que fossem de outra marca. O que não sabíamos, na altura – e, se calhar, muitos não sabem ainda hoje – é que o adjetivo pejorativo tem uma origem bastante nobre – com a devida ressalva de que a sua nobreza deriva diretamente da vontade de um homem de diminuir a diferença de classes.
GEORGES FREDERIC ROSKOPF
É este o nome do senhor que está na origem de tudo. Evidentemente isento de responsabilidades pela cunhagem do seu nome como etiqueta do que não tem valor, Roskopf nasceu na Alemanha, junto à Floresta Negra, e cedo se mudou para a Suíça, para La Chaux-de-Fonds, uma pequena cidade a norte de Neuchâtel. Foi em La Chaux-de-Fonds que Roskopf, com apenas 16 anos, começou a trabalhar como vendedor no ramo da relojoaria – não necessariamente de relógios: peças, hardware, componentes e acessórios. Ao mesmo tempo, foi aprendiz de relojoeiro.
Ao fim de quase cinco anos, e já depois de se ter casado com uma viúva 17 anos mais velha que ele, Roskopf decidiu aventurar-se a solo no mundo da alta relojoaria, montando um negócio financiado pela mulher. Não possuindo a capacidade nem a técnica necessárias para desenvolver os seus próprios movimentos, Roskopf fundou uma firma que era établisseur, isto é, que não fabricava relógios de raiz, mas que comprava componentes de diferentes origens e os juntava, montando novos relógios. Em 1850, perante o insucesso do seu negócio decide encerrar a primeira etapa e juntar-se a outra companhia relojoeira. Esse período não foi muito longo, porém. Cinco anos volvidos, fundou a Roskopf, Gindraux & Co., juntamente com o filho Fritz Edouard e com Henry Gindraux. A ideia de Georges Frederic era simples: conceber um relógio que fosse acessível para o bolso da classe operária. Ao fim de dois anos, o filho partiu para outras aventuras e Gindraux trocou-o por uma escola de relojoaria, da qual se tornou diretor. Mas Roskopf não era homem de desistir.
UM MOVIMENTO PARA O POVO
Em 1860, Roskopf começou a desenhar um relógio que pudesse ser vendido por 20 francos suíços, preservando a qualidade do movimento. Chamou ao projeto Montre Proletaire. O seu trabalho consistiu em despojar o relógio de tudo o que fosse acessório. Os materiais preciosos foram substituídos por outros que simplesmente cumprissem a função, sem luxos. As funções também foram reduzidas – a coroa da corda servia apenas para dar corda, sendo o acerto das horas feito manualmente (sim, com as pontas dos dedos) diretamente no mostrador, mexendo nos ponteiros. Roskopf chegou ao ponto – para alguns, absolutamente herege, para outros, perfeitamente sublime – de reduzir o número de peças do movimento de escape de 160 para apenas 57. Resultado: na Suíça, ninguém aceitou trabalhar com ele, nem produzir peças para a sua companhia.
Foi apenas em 1867 que Roskopf conseguiu importar peças suficientes para produzir 2 mil peças. E foi uma dessas peças que Roskopf levou à Exposição Universal de Paris nesse mesmo ano, juntando-a em concurso aos mais sofisticados e sumptuosos modelos concebidos na Suíça. Enquanto os outros se apresentaram nas suas mais luxuosas versões, com caixas douradas e movimentos complexos, o singelo (mas muito honesto) Montre Proletaire mostrou-se na sua versão de “prata alemã” (uma mistura de zinco, níquel e cobre). No concurso, foram atribuídas quatro medalhas de ouro, cinco de prata e 15 de bronze. Roskopf arrecadou uma destas últimas para surpresa de todos, incluindo do próprio. Os efeitos não se fizeram esperar, a demanda aos Roskopf aumentou abrupta e exponencialmente, obrigando a uma expansão da companhia para dar conta das encomendas. Se a Suíça o rejeitava, mercados emergentes como a Índia, o Brasil, ou os Estados Unidos ansiavam por relógios fiáveis e baratos.
ROSKOPF NÃO É ROSCOFE
O fracasso da Roskopf tem uma explicação: Georges Frederic, como qualquer bom sonhador, não era um homem dado às questões mais práticas e ainda menos ao lado burocrático da vida. Assim, ao fim de algum tempo de sucesso da marca e não havendo qualquer patente registada com o seu nome, as cópias de Roskopfs multiplicavam-se pela Europa e pelo mundo – e, como sempre acontece em casos de cópia industrial, muitas destas padeciam de uma profunda falta de qualidade. É aqui que reside a explicação principal para a origem do termo depreciativo associado ao nome daquele que é, possivelmente, o mais romântico ideólogo da história da relojoaria. Roscofe são os Roskopf falsos, que desrespeitaram os verdadeiros.