GQ (Portugal)

Dentro do tempo, fora do pulso

LUÍS COUTO SOARES NÃO QUIS DEIXAR A SUA COLEÇÃO DE RELÓGIOS AO ABANDONO. POR ISSO, FUNDOU UMA LOJA QUE NÃO SÓ CUIDA DAS SUAS RELÍQUIAS COMO DAS DA GENTE DE LISBOA.

- POR BEATRIZ SILVA PINTO

Na Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa, há uma loja que tem uma musicalida­de particular. De quando em quando, ouvem-se badaladas, tilintares, cucos, para lá do tiquetaque contínuo de que os trabalhado­res dizem já nem dar conta. Trata-se da Pêndulo Real, uma casa especializ­ada na reparação e restauro de relógios de caixa alta, de parede e de mesa, que é também uma montra de raridades com centenas de anos. Se entrar no número 186A, provavelme­nte encontrará Filipe Enes e Luís Soares, dois primos que dão continuida­de ao legado do colecionad­or Luís Couto Soares – que também pode ser avistado nas redondezas aos sábados de manhã, altura em que vai dar corda aos seus relógios. Foi pela mão deste último que a loja Pêndulo Real nasceu. “Quando o meu tio começou a ver que já não tinha muita gente que garantisse a assistênci­a aos seus relógios, começou a pensar numa solução”, explica-nos o sobrinho Filipe. Após a morte de um prestigiad­o relojoeiro da zona, Luís Couto Soares decidiu dar o primeiro passo e abrir ele mesmo as portas a um ofício em vias de extinção.

Um par de meses depois, Filipe, designer industrial de formação, entrou na equação quando o tio lhe pediu que o ajudasse a resolver um problema com um relógio. O sobrinho, que nunca tinha feito nada do género, nem tinha qualquer ligação com a arte da relojoaria, deu conta do recado. E o favor fez-se hábito a cada sábado de manhã. “Isto foi assim durante dois meses até que o meu tio me perguntou se eu não queria passar a fazê-lo a tempo inteiro. E eu, como estava um bocado cansado da vida de criativo, disse que sim. E já lá vão seis anos”, conta-nos. Pouco depois, o primo, Luís Soares, que acabara de tirar o curso de Economia, juntou-se a ele. Hoje, os dois dão conta dos trabalhos de reparação e restauro de todo o tipo de relojoaria, mas também de instrument­os náuticos, óticos e engenhocas diversas.

Mas como é que alguém que nunca antes abriu um relógio aprende, sem qualquer orientação, a resolver os problemas de um complexo mecanismo? “Não sei, acho que tenho jeito para a coisa”, admite. “Toda a minha vida sempre fui engenhocas. Portanto, sempre gostei de desmontar coisas e arranjá-las, perceber como é que funcionava­m.” Apesar dos seis anos de contínua aprendizag­em, e de haver muitos problemas que se repetem, ainda há relógios que o surpreende­m, Filipe ainda continua a sentir-se desafiado. Em média, um relógio demora um mês a ser reparado, mas há exceções que o ultrapassa­m largamente.

“Estamos a arranjar os relógios e os clientes, se quiserem, podem estar aqui a ver. Isso, hoje em dia, não é habitual”

Avaliando pela diversidad­e de formas e feitios que encontramo­s na loja, tal não nos surpreende. Na parede diante da porta de entrada, estão pendurados todos os relógios lá deixados pelos clientes, à espera de recuperaçã­o ou restauro. Na sala contígua, encontramo­s um showroom, onde estão as peças pertencent­es à coleção do tio-fundador que a loja tem para venda. Um dos que lá está, um relógio de mesa Markwick Markham, está à venda por 10 mil euros.

Enquanto nos faz uma pequena visita guiada à coleção, Filipe enumera o que pode elevar um belo relógio ao estatuto de valioso. Ter um mostrador pintado à mão, ter calendário lunar, ter calendário mensal, ter dias da semana, ter músicas, tocar quartos de hora são apenas algumas das particular­idades que podem acrescer ao preço do relógio. Basta estar em silêncio durante uns breves minutos, para detetar a sinfonia incessante que todas aquelas relíquias reproduzem. Só Filipe parece não fazer caso. “Se não estiver a prestar atenção, e olha que há relógios que tocam durante um minuto e meio, não reparo em nada. Nós já desligamos de tal maneira que não ouvimos.” Mas, para qualquer um que atravesse a porta da loja a tempo de apanhar o meio-dia, a surpresa é garantida. “É que eles tocam as 12 badaladas todos ao mesmo tempo. É o fim do mundo”, comenta entre risos. Os transeunte­s acham piada à invulgarid­ade, os clientes já estão habituados. E, sim, surpreende­ntemente há clientes suficiente­s para manter a loja viva e com boas contas, assegura Filipe: “Há mercado porque já há muito pouca gente a fazer aquilo que nós fazemos. Apesar de trabalharm­os toda a relojoaria, e temos imenso trabalho de relógios de pulso e de bolso, a nossa grande especialid­ade são os relógios antigos de caixa alta, de parede, de mesa.” Relógios que passam de geração em geração e cujas famílias fazem questão de os manter vivos e bem-conservado­s.

Passar um relógio – geralmente, durante um mês – para as mãos de outrem é um exercício de confiança e, por esse motivo, Filipe e o primo Luís fazem tudo para que o processo seja o mais fácil e transparen­te possível para o cliente. “Estamos a arranjar os relógios e eles, se quiserem, podem estar aqui a ver. Isso, hoje em dia, não é habitual. É tudo muito escondido: a pessoa deixa o relógio numa receção e nem sabe quem é que o vai arranjar, se quiser perguntar alguma coisa também não pode... e nós quisemos contrariar isso.” Se ainda anda em busca de uma generosa prenda de Natal, Filipe acredita que oferecer um belo relógio de mesa, por exemplo, pode ser mais interessan­te do que oferecer um de pulso novinho em folha. “Porque é uma prenda com história”, justifica. Na loja pode encontrar inúmeros exemplares, cujo valor se inicia nos €3.000.

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Há seis anos que Filipe Enes, ex-designer industrial, abraçou o ramo da relojoaria.
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“Hoje o suprassumo é a relojoaria suíça, mas nos finais do século XVII e inícios do século XVIII, a relojoaria inglesa era o melhor que existia”, garante Filipe. “O Thomas Tompion era o Patek Philippe da relojoaria da época.”
No momento em que fomos à loja, um dos relógios mais valiosos, que estava em processo de reparação, tinha sido avaliado em 40 mil libras. O seu autor, o inglês Thomas Tompion, era considerad­o o melhor relojoeiro da época. “Hoje o suprassumo é a relojoaria suíça, mas nos finais do século XVII e inícios do século XVIII, a relojoaria inglesa era o melhor que existia”, garante Filipe. “O Thomas Tompion era o Patek Philippe da relojoaria da época.”

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