Culto Ilustração
Longe vão os tempos em que uma tira de cartoon era, obrigatoriamente, condicionada pela largura de uma página de jornal ou pela sua linha editorial. Mais próximos estão aqueles em que o cartoonista é gestor de redes sociais e desenha para nichos. Falámos com protagonistas da velha e da nova guarda para perceber como mudou esta arte quando saltou do papel para a Internet.
Expressão que designa um desenho humorístico ou satírico, por vezes na forma de banda desenhada, publicado em jornais e revistas. A sua origem remonta ao século XIX e a sua evolução acompanha a história dos órgãos de comunicação social escritos.” É assim que a Porto Editora (ainda) define cartoon.
“As pessoas adaptam-se aos contextos. Eu já não vou de carroça para o trabalho [risos]. Mas a essência do cartoon, a questão satírica, continua a mesma. A maior diferença é mesmo a liberdade que hoje temos, porque não estamos dependentes de uma publicação. Podemos fazer por nós.” Quem o diz é Clara Silva – nas redes, Clara Não (@clara.nao) –, cartoonista que nasceu e cresceu no mundo digital e que, recentemente, publicou o livro Miga, Esquece Lá Isso!, composto por cartoons inéditos e outros já partilhados com os seus mais de 60 mil seguidores no Instagram, onde fala em discurso direto sobre feminismo, respeito, amor e variadas inquietações de uma millennial.
O interesse pelo desenho e pela banda desenhada surgiu em tenra idade. Recorda-se da célebre Mafalda (que leu e viu, tanto em BD como VHS) e de ir com o pai ao café ler o jornal – momento em que lhe pedia a última página, para ver a tira. “Na altura, nem percebia as piadas, que eram sobre política ou futebol, mas pedia sempre ao meu pai para me explicar.” Só muito mais tarde é que pegou na caneta para se aventurar no género. “Tive um desgosto de amor e comecei a desenhar nuns caderninhos à noite, antes de ir dormir. Estava a trabalhar em design, na altura. E como já tinha tantos cadernos quis transformar aquilo em alguma coisa”, conta. Imprimiu uma fanzine e, quando viu que os cartoons “resultaram bem nas galerias e com as pessoas”, começou a partilhá-los nas redes, onde, diz-nos ela, raramente partilhava coisas (tão) íntimas. “Senti que não havia problema em partilhar coisas pessoais, porque na verdade não eram coisas só minhas, havia muita gente a pensar o mesmo, a sentir o mesmo. E deixou de me incomodar.” Para lá das imagens, acabou por aproveitar o espaço da descrição da fotografia no Instagram para dissertar sobre os temas que aflora no cartoon. Foi em 2015 que começou a partilhar mais afincadamente e a reunir seguidores.
Foi também por essa altura que o Gato Mariano (@ogatomariano_) nasceu. Entre estágios na área do jornalismo cultural, Tiago da Bernarda, descontente com a restrição à liberdade na publicação de certos temas, decidiu direcionar a sua vontade de falar abertamente sobre música e os mundos que a rodeiam para um alter ego em forma de gato desbocado – isto, numa altura em que o conteúdo de e sobre gatos inundava qualquer rede social. “Se eu ia fazer um produto de Internet, que fosse um gato a protagonizá-lo”, justifica. “Para além disso, há toda uma história de funny animals, que é o nome que se dá à banda desenhada com animais antropomórficos dentro da banda desenhada underground. É um caso subversivo ao estilo da Disney, [em que as personagens] podiam falar sobre temas que na altura não eram publicáveis: violência, sexo, drogas, o que for. No meu caso, era a música independente portuguesa, que não estava a ter destaque nos media da altura.”
Em 2014, no Tumblr, publicou a sua primeira tira, dedicada ao último álbum dos You Can’t Win Charlie Brown. Nunca havia desenhado com um propósito definido até então. Mas o desafio fez-se hábito. “Pegava numa folha branca, num lápis, passava a caneta por cima, digitalizava e editava no Paint. Só evoluí porque era um entusiasta da banda desenhada e, portanto, lia muito, tinha muitas referências. Fui sempre produzindo até melhorar.”
Pouco depois, migrou para o Facebook, onde começou a ganhar os primeiros seguidores a sério. “Eu partilhava uma crítica, às vezes era boa, às vezes era má. E isso, por si só, já era uma coisa que não era muito comum na crítica publicada: ter a liberdade de dar críticas negativas. Fui ganhando público assim, um público de nicho: pessoas ligadas à música ou ao jornalismo cultural.” Entretanto, publicou o livro O Gato Mariano: Críticas Felinas (2014-2018) e, hoje, a sua praia é mesmo o Instagram.
A atenção dada aos nichos, a par da liberdade editorial também mencionada por Clara Silva, é, aliás, uma das vantagens da migração do género para as redes, segundo Tiago da Bernarda: “É um cartoon mais livre, no sentido em que é o autor que dita o que pode ou não ser publicado – desde que cumpra os termos e as condições do meio em que o partilha, seja o Facebook ou o Instagram. Como no jornal há uma economia do espaço, e eles só podem publicar até um certo número de conteúdos, automaticamente pensam ‘Ok, temos de fazer uma ilustração que ressoe com o maior número de pessoas possível.’ Agora vemos que há cartoonistas que se focam em nichos. E, portanto, há aí uma maior liberdade e mais diversidade”, conclui: “Não só em termos de discurso, mas também em termos estilísticos, de traço.”
A VELHA GUARDA
Para Luís Afonso, que tem Carteira Profissional de Jornalista, o jornalismo e o cartoon estão intimamente ligados. “Para mim, o trabalho do jornalista e o trabalho do cartoonista é igual até um determinado ponto, que é a intervenção gráfica e a crítica. Porque eu também faço investigação, tenho o cuidado de confrontar versões, de verificar a veracidade dos factos. Por isso é que não tenho sido vítima das notícias falsas. Desconfio muito das coisas.”
É um dos cartoonistas portugueses que quase dispensam apresentações. Começou a fazer os seus “bonecos”, como lhes chama, nos anos 80, num jornal já extinto. Depois, quando foi para Serpa dar aulas de Geografia, decidiu fazer mais com o tempo que lhe sobrava fora da escola e foi bater à porta d’A Bola, para mostrar uns cartoons que tinha na gaveta. “Foi a última vez que bati à porta de um jornal”, recorda. “A Bola tinha uma tiragem diária de 200 mil exemplares! Hoje em dia 20 mil já é muito bom. Na altura, só existia a RTP em televisão, não havia Internet... E o que acontecia nos jornais era uma coisa com muito impacto. Por isso, acabei por me tornar mais conhecido.” Eram outros tempos. O cartoonista chegou até a ser contactado para reportagens acerca do teletrabalho, porque desenhava e enviava os cartoons para os jornais via fax.
A partir desse momento, as propostas foram chegando. Mas só em 1995 é que Luís Afonso se dedicou exclusivamente à arte. Desenhou Lopes, o escritor pós-moderno n’A Grande Reportagem e, pouco depois, foi convidado para fazer o Bartoon no jornal Público, que mantém até hoje, a par de uma tira no Jornal de Negócios, A Mosca na RTP e Antena 1, e a velhinha Barba e Cabelo n’A Bola – provavelmente a mais antiga tira em Portugal, prestes a fazer 30 anos.
Quando lhe pedimos para nos dizer o que mudou de há três décadas para cá, não hesita: “Desapareceram jornais. Por isso, desapareceram também os cartoons que lá estavam. Eu cresci com o cartoon no papel. Apesar de, agora, ver que funcionam muito bem nas redes sociais. Têm partilhas e visualizações e não sei mais o quê. Acredito que, hoje, muitas pessoas conheçam o Bartoon [que também é partilhado pelo Público no Facebook] sem nunca terem comprado o jornal. Nesse aspeto, é importante estar preparado para funcionar no meio digital.”
Luís Afonso não tem redes sociais nem segue o trabalho de cartoonistas na Internet. Mas começa a sentir a urgência incitada pelo online. “Agora até acho estranho fazer um cartoon neste momento e ele só ser publicado na manhã seguinte. Já cheguei a essa fase. Se eu acabei de o fazer agora, ele devia ser partilhado agora. O tempo até à manhã seguinte é uma eternidade. A Internet é de tal modo fervilhante que, se não publicares a tua ideia já, alguém vai escrever algo parecido com ela antes.”
Curiosamente, o maior desafio que André Carrilho aponta à produção regular de um cartoon para uma publicação é “ter ideias que ainda não tenha visto em lado nenhum”. O cartoonista – que trabalha semanalmente para o Diário de Notícias e regularmente para publicações como o New Statesman, a Vanity Fair, o New Republic e o Los Angeles Times – está na área há mais de 25 anos. E viu o mundo mudar de caneta na mão. “Aquilo que me ocorre logo é que neste tempo os jornais passaram de preto e branco para cores, do analógico para o digital. Quando comecei não se usavam computadores nem havia Internet. E a principal via de divulgação, hoje, são as redes sociais, não o papel. Os novos desafios relacionam-se com o olhar constante de uma audiência alargada e global e com as novas potencialidades tecnológicas de introduzir som, animação e interatividade no cartoon digital.”
ZERO INTERMEDIÁRIOS, MIL OFÍCIOS
Com a migração para as redes, ganha-se liberdade temática e estilística; ganha-se um alcance tão vasto quanto a Internet; e perdem-se os intermediários. Nunca antes o cartoonista esteve tão próximo do seu público. O que pode ser bom e pode ser mau. Clara Silva – que, pela partilha de alguns trabalhos, já foi insultada e ameaçada nas redes sociais – vê prós e contras nesta matéria. “Os monstros mostram-se muito mais rapidamente na Internet, quando não têm de encarar a pessoa pessoalmente. E parece que há pessoas que estão sentadas em casa à espera de qualquer coisa que encontrem para libertar frustrações. Percebemos logo quem são os machistas e as pessoas preconceituosas que andam por aí e que não têm à-vontade para falar publicamente sobre estes assuntos.”
Também André Carrilho vê o lado negro de ter os olhos (e os comentários) de todo o mundo sobre si. “Às vezes há um excessivo escrutínio. Se por acaso o cartoon é controverso, pode haver reações de linchamento online que têm consequências reais. Qualquer atividade criativa implica algum risco e para sermos bons temos sempre de ter espaço para experimentar e errar. Mas torna-se difícil dar espaço ao erro com toda a gente a olhar para nós.”
O cartoonista 2.0 ganha seguidores que pode perder num instante. E ganha notoriedade, mesmo estando longe de ganhar um salário. “É bom que qualquer pessoa do mundo possa aceder aos teus cartoons e que a partilha seja muito mais fácil. Por outro lado, uma pessoa que fizesse uma vinheta para um jornal possivelmente seria paga”, adianta Clara Silva. A isso Tiago da Bernarda acrescenta a hiperprodução e o peso de variados ofícios: “Não só és um ilustrador como és uma personalidade, portanto as pessoas seguem-te e tu precisas de estar constantemente a criar conteúdo com receio de que, em algum momento, possas perder esse teu grupo de seguidores. Às vezes, vemos ilustradores cujo conteúdo não é assim tão inteligente, mas, porque produzem com tanta frequência, as pessoas criam uma ligação, porque estão habituadas a ligar o dispositivo e está lá qualquer coisa nova dessa pessoa. Se estás uma semana sem partilhar, morreste.” “E eu não sou só ilustrador, eu tenho de editar, de tratar das redes sociais, de fazer a comunicação, de gerir o merchandise. Tudo isto são funções que agora um ilustrador que queira sobreviver nas redes sociais tem de fazer”, adianta o criador do felino crítico.
Independentemente destes novos desafios, a opinião consensual da velha e da nova guarda é que a função do cartoon não pode nem deve mudar – seja este feito em papel, posts, stories ou hologramas. “O cartoon deve incomodar. Nunca se deve acomodar, deve sempre incomodar”, afirma Luís Afonso. “Deve levar as pessoas a pensar, a questionarem-se, deve apanhar os paradoxos que existem na sociedade. E deve mexer nisso.”