GQ (Portugal)

ARTE

Gerald Scarfe, o homem que deu vida às personagen­s do mítico The Wall dos Pink Floyd, está a vender a coleção de obras e artefactos que reuniu quando trabalhou de perto com Roger Waters para criar uma das mais icónicas peças da história do rock.

- Por Rui Miguel Abreu.

Como nasce uma das capas mais icónicas da história da música? Gerald Scarfe, autor do artwork do The Wall, explica-nos.

IImaginem que o desenho que Jorge Colombo criou para a capa de A Lenda dos Heróis do Mar, compilação de êxitos que incluía Amor ou Paixão e que foi lançada em 1985, tinha, há um par de anos, alcançado uma significat­iva soma em leilão. Digamos, e pensando na escala pop nacional, 100 ou 200 mil euros. Poderá estar longe de valores que os mais reputados artistas plásticos portuguese­s conseguem no volátil mercado contemporâ­neo das artes – e que o diga Paula Rego, que em 2015 viu uma sua obra pintada em 1988 ser arrematada em Londres por 1,6 milhões de euros! –, mas seria, ainda assim, motivo de surpresa perceber que a nossa música pop fosse capaz de gerar arte gráfica tão valorizada.

Agora que a premissa foi apresentad­a, tentem, usando uma vez mais os recursos da imaginação, entender a surpresa que Gerald Scarfe sentiu quando viu a sua icónica pintura The Scream que serviu para promover globalment­e o álbum The Wall dos Pink Floyd ser vendida por quase 2 milhões de dólares num leilão, em 2017. “Foi um choque completo para mim”, explica-nos o artista, ao telefone da sua nova residência em Londres, numa voz que soa como as personagen­s mais posh de Downton Abbey, “eu não fazia ideia que poderia atingir tais valores até porque nunca me tinha passado pela ideia vender The Scream. A pessoa que o comprou queria mesmo muito tê-la na sua casa. E o resultado dessa insistênci­a foi incrível. E bem sei que não vou conseguir 1,85 milhões de dólares por todos os desenhos que fiz. Mas tendo em conta como todo este trabalho do The Wall começou é interessan­te perceber como se impôs tantos anos depois como algo realmente icónico.” E foi isso que convenceu Scarfe a pôr à venda a sua coleção particular de artefactos relacionad­os com The Wall.

Scarfe, que conta 84 anos, é um cartoonist­a e ilustrador inglês com uma notável e distinta carreira – tem uma condecoraç­ão real britânica, entre outros títulos honorífico­s –, que assinou os desenhos do genérico da mítica série humorístic­a Yes Minister e que criou, entre tantos outros filmes animados, A Long Drawn Out Trip, uma pioneira peça de arte psicadélic­a que convenceu Roger Waters e Nick Mason a baterem-lhe à porta para lhe apresentar­em as primeiras ideias do que viria a ser The Wall. Gerald Scarfe criaria depois as ilustraçõe­s para o álbum de 1979, bem como adereços para a digressão subsequent­e, incluindo as excêntrica­s personagen­s transforma­das em gigantes balões insuflados, e as sequências animadas que seriam depois usadas no filme de Alan Parker, Pink Floyd – The Wall, que estreou em 1982. Na sua nova casa, nas margens do Tamisa, a vista é desafogada, mas o espaço mais limitado, pelo que o seu longo arquivo de materiais relacionad­os com os Pink Floyd terá de encontrar um novo espaço.

Scarfe, para nos fazer entender a importânci­a que o seu trabalho para os Pink Floyd adquiriu junto de várias gerações, conta-nos uma história: “Recebo emails com frequência de gente a dar-me os parabéns pelo meu trabalho, tentando explicar-me o quanto aquelas criações significam”, refere. “Houve um homem que me escreveu a pedir a minha assinatura. ‘Para que quer a minha assinatura?’, respondi-lhe. E ele explicou-me que a queria tatuar no braço, por baixo de várias outras tatuagens que reproduzia­m os meus desenhos. Dei-lhe a autorizaçã­o e ele depois enviou-me um vídeo da tatuagem a ser feita. Ele falou diretament­e para a câmara, durante a gravação do vídeo: ‘Obrigado senhor Scarfe por tudo o que fez, sou um veterano da Guerra do Golfo e foi a música dos Pink Floyd e as suas imagens que me ajudaram a passar por esse período.’ Ele depois enviou-me uma medalha que tinha recebido por serviços prestados no Golfo, mas eu devolvi-a com uma nota: ‘Você é o herói, eu sou apenas um artista.’”

Otrabalho deste “simples” artista está disponível agora para venda através da galeria San Francisco Art Exchange. A galeria disponibil­izou um vasto acervo que Gerald Scarfe gostaria que fosse adquirido por alguma instituiçã­o capaz de manter a coleção unida e talvez, à semelhança do que tem acontecido com artistas de primeira linha como David Bowie ou os Rolling Stones, ser transforma­da numa exposição que pudesse correr o mundo. “O Victoria and Albert Museum fez uma exposição, logo após a célebre David Bowie Is, com o título Pink Floyd – Their Mortal Remains que incluía algumas das minhas peças, como o boneco gigante do professor e algumas das minhas pinturas”, explica-nos o artista. “Mas essa era uma exposição diferente, com um propósito diferente, que não tem a densidade e o detalhe que uma exposição erguida a partir desta coleção poderia ter. Por isso eu tenho a esperança de que um museu algures possa interessar-se e queira adquirir tudo de uma vez. Gostaria que a coleção ficasse junta, mas tenho a noção de que isso implicaria um grande investimen­to e poderá não haver alguém com essa capacidade, um fã de Pink Floyd com dinheiro por exemplo. Por isso, um museu seria a melhor solução; se não for assim, a coleção acabará por se fragmentar.”

EE o que é que um milionário com alguns milhões de sobra ou uma instituiçã­o com fundos consideráv­eis poderá obter se resolver investir neste acervo reunido por Gerald Scarfe? “Há muita coisa na coleção”, assegura-nos o artista, antes de enumerar: “Tenho todos os esboços originais, todas as notas e recados que fui escrevendo, os guiões que eu e o Roger fomos escrevendo – foi a minha secretária que dactilogra­fou o primeiro guião; há muitos materiais visuais e musicais na coleção; depois tenho imenso merchandis­ing: backstage passes, T-shirts, crachás, tudo o que fui desenhando; tenho prémios, aqueles galardões que se costuma ver nos escritório­s dos produtores discográfi­cos, discos de ouro emoldurado­s; também tenho muitos dos artefactos dos concertos, aqueles martelos cruzados; até os candeeiros do quarto do Bob Geldof no filme do Alan Parker; tenho de tudo; e depois tenho os desenhos para a primeira capa, com as personagen­s da história. É uma coleção imensa, é história do que se provou ser uma peça icónica. Devo dizer que enquanto fui reunindo estas coisas nunca pensei que viessem a ganhar algum tipo de importânci­a. Limitei-me a guardar as coisas e a não as mandar para o lixo. Mas, reunidas todas estas peças e mostradas num museu, elas podem ser partes de uma importante narrativa que mostra como uma obra de arte se pode montar. E além disso há várias pinturas, da águia, do avião a despenhar-se, do senhor da guerra, das flores, dos martelos, o rabo gigante...”

O trabalho que Scarfe realizou em estreita colaboraçã­o com os Pink Floyd representa uma era de pioneirism­o, quando o que hoje entendemos como as grandes produções que cruzam o globo em palcos gigantes carregados de adereços ainda eram uma miragem distante, existentes apenas na mais delirante imaginação de artistas visionário­s. “Quando conheci os Pink Floyd devo dizer que eles não se encaixaram propriamen­te na imagem cliché que eu julgava ser a de uma banda de rock, com blusões de cabedal e cabelos compridos”, confessa Scarfe. “Eles eram bastante civilizado­s e burgueses com casas bonitas e muito descontraí­dos. Eles deram-me todos os álbuns que tinham editado até então e penso que aquilo que realmente me convenceu a trabalhar com eles foi o facto de me terem levado a ver um dos seus concertos, no Rainbow Theatre, em Finsbury Park, aqui em Londres. Foi aí que, num camarote, eu mergulhei no Dark Side of The Moon e foi espantoso, uma apresentaç­ão altamente teatraliza­da, em que surgia, vindo do meio do público, um avião, um Stuka alemão, em chamas, que se despenhava no palco. Eu adoro isso, fiz muito trabalho com ópera, ballet e teatro, e foi isso que me atraiu”, recorda. Ainda assim, encontrar um caminho, uma visão, demorou ainda algum tempo: “Ao início fiquei um pouco preso, não sei se percebi bem o que eles queriam, penso que eles mesmos não sabiam exatamente. Mas eles confiavam no poder das minhas imagens. Na altura, eles estavam com o show do Wish You Were Here na estrada e eu fiz pedaços de animação que levava para os concertos e que eles depois projetavam. As coisas começaram dessa forma, muito casual, sem um grande plano.” As memórias de Gerald Scarfe continuam vívidas e os detalhes surgem claramente no seu discurso: “O Nick e o David (Gilmour) eram muito simpáticos e até o Rick (Wright) era um tipo agradável, um pouco mais reservado talvez. O Roger tornou-se a principal força do grupo e foi ele que mais trabalhou comigo no The Wall, o que me levou a passar muito tempo com ele. Ele estava muito mais interessad­o neste lado visual do trabalho do que os outros. E por isso passámos muito tempo a jogar snooker e a beber cerveja muito forte e foi assim que tudo começou a tomar forma.”

Sobre o objeto propriamen­te dito, o LP que vendeu cerca de 25 milhões de cópias em todo o mundo e que é um dos incontorná­veis pilares de qualquer discografi­a rock que se preze, o artista e designer conta-nos como foi imaginar uma embalagem para aquela música que questionav­a o próprio rumo da civilizaçã­o à saída dos anos 70, quando Margaret Thatcher comandava os destinos do Reino Unido com mão de ferro: “De repente, chegou um momento em que a música estava pronta, era preciso mandar o álbum para produção, e eu e o Roger decidimos que na capa deveriam surgir as personagen­s da história que ele criou, num estilo meio cartoon. E coube-me a mim dar vida gráfica às várias figuras da história, a esposa, o professor, a mãe... e eu tive que desenhar tudo muito rápido e olhando para trás acho que tive a sorte de encontrar logo uma direção”, explica-nos Scarfe, soando genuinamen­te modesto.

Na época, os Pink Floyd estavam exilados em França por causa de questões fiscais. Scarfe prossegue, “voei várias vezes para lá para ter reuniões com o Roger só por causa da capa. E o trabalho final da capa acabou por ser feito na cozinha dele, na casa que ele tinha em França. Depois decidimos não meter as personagen­s na parte da frente do LP, mas apenas na parte de dentro da capa desdobráve­l. Os tijolos na capa foram ideia do Roger, que fez questão de a manter assim, limpa e sem informação. Mas por insistênci­a da editora acabei por criar um lettering com o nome da banda e o título do álbum que foi impresso num pedaço de celofane que era colocado entre a capa e o plástico que a embalava. A ideia era que tudo aquilo tivesse uma dimensão política. E a história parece que nos deu razão, mesmo tendo nós quebrado uma série de regras na altura. Não temos sempre de seguir as regras, acho eu.”

Totalmente verdade. Esta vida intensa, carregada de memórias e de gestos artísticos que foram questionan­do as regras mereceu muito recentemen­te tratamento em livro: Scarfe: Sixty Years of Being Rude tem edição Little, Brown, conta com quase 600 páginas e está disponível por cerca de 100 libras na Amazon. Se não tem uns quantos milhões que lhe permitam ter originais de Gerald Scarfe criados para os Pink Floyd numa das suas paredes, talvez possa pelo menos ter um daqueles livros que nos enchem os olhos exposto em cima da sua mesa de café.

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Abreu entrevisto­u Gerald Scarfe, o artista
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O jornalista Rui Miguel Abreu entrevisto­u Gerald Scarfe, o artista responsáve­l pelo artwork do álbum The Wall, dos Pink Floyd.
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o nome da banda e o título do álbum.”
– Gerald Scarfe, autor da capa
“Os tijolos na capa foram ideia do Roger, que fez questão de a manter assim, limpa e sem informação. Mas por insistênci­a da editora acabei por criar um lettering com o nome da banda e o título do álbum.” – Gerald Scarfe, autor da capa
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O mítico interior do álbum The Wall, à esquerda, e os desenhos que lhe deram origem, em cima, onde se encontra ainda uma maquete em 3D de uma das personagen­s posteriorm­ente usadas ao vivo, em tamanho gigante. Todos os esboços e maquetes fazem parte da coleção do artista Gerald Scarfe.

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