GQ (Portugal)

ESCOTILHA

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

Matilde Campilho reflete sobre os brevíssimo­s momentos que vivemos entre o impulso e a razão, entre o ir e o ficar.

SEMPRE QUE ALGUÉM

QUER FUGIR DA PRÓPRIA HISTÓRIA,

FÁ-LO A PARTIR DO QUE QUER QUE SEJA QUE LHE ATRAVESSE A CABEÇA

Sempre que um homem quer fugir da própria história a primeira ideia que lhe vem à cabeça é pegar na mochila e lançar-se à porta. Isto se estiver em casa. Ou no escritório, que dá no mesmo. Esta cena dá-se repetidame­nte, mais ou menos uma vez por minuto durante um dia inteiro – em qualquer lugar do mundo e desde sempre. É daquelas situações que acontecem sem cessar aqui no planeta. Vejamos algumas: um homem está sentado à mesa do jantar com a família. Todas as suas pessoas preferidas estão ali e geralmente ele não trocaria aquele cenário por nada. Mas de repente alguém leva a conversa para um lado que não lhe agrada, um miúdo chora mais alto do que seria de esperar, a comida está fria, ninharias assim. De súbito uma nuance atravessa-se na sala e então o homem deseja levantar-se e correr. Não o faz e em poucos minutos tudo volta ao normal. Mas naquele espaço intermédio entre o ir e o não ir, alguma coisa aconteceu no coração do homem. Ao mesmo tempo, noutro país, uma mulher está reunida com os colegas na copa da empresa. Falam dos números da reunião anterior e preveem as tabelas da reunião seguinte. A mulher, simulando um espirro, fecha os olhos por um minuto e naquele negro das próprias pálpebras consegue visualizar na perfeição o matagal por onde gostaria mesmo de caminhar agora. Não caminha e no minuto seguinte abre os olhos e leva o lenço ao nariz. Mesmo não se tendo deslocado daquele lugar onde tintilam as canecas burocrátic­as de café, de alguma maneira consegue sentir os pés húmidos de terra. Outra situação: um rapazinho do povo bajau, os chamados “ciganos do mar”, está há sete minutos debaixo de água a tentar apanhar um peixe com os amigos. Cansado de suster o ar e mais cansado ainda por ser aquele a quem constantem­ente os outros rapazes provocam, imagina-se a subir à tona, nadar até à costa e, ainda de roupa encharcada, entrar no cinema da cidade para assistir a um filme de aventuras. Nenhum desses movimentos acontece, mas, por um momento único no mundo, John Wayne é visto a cavalgar no fundo de um mar asiático. Longe de tudo isso, num campo de colheita americano, um homem vai lançando sementes à terra. Está nesse movimento desde a aurora e por já passar do meio-dia tem o pulso dorido. Embora goste da vida ao relento ele imagina-se a atirar a saca ao chão, atar os cordões das botas e correr aquele hectare de terra à velocidade de um super-herói. Porque na fantasia tudo é possível, em 30 segundos o semeador está sentado na poltrona de casa, de pés descalços e repousados, tem um filho no colo e juntos jogam às damas. Atira mais uma semente à terra. Ainda que não tenha cumprido a viagem ao jeito de Flash Gordon, só o facto de a ter visualizad­o já lhe torna o dia bem mais fácil. E o cheiro do cabelo do seu filho está agora ali com ele sob o sol.

Sempre que alguém quer fugir da própria história, fá-lo a partir do que quer que seja que lhe atravesse a cabeça. Pode ser a ideia de se levantar e dirigir-se à porta. Pode ser o devaneio de entrar na sala de cinema. Pode ser a intenção de atirar a mesa ao ar. Pode ser a vontade de finalmente beijar a miúda, pode ser a decisão súbita de contar a verdade. A todos esses mínimos desejos chamamos imaginação. São acontecime­ntos singulares, repetidos desde o começo do mundo e em todas as cabeças durante vidas inteiras. Se fizessem barulho e tivessem imagem correspond­ente, a toda a hora veríamos fogos de artifício a rebentar nas casas, nos campos, em oceanos, nos glaciares. Onde existir uma mulher, ou um homem, existe a imaginação. E apesar dos benefícios claros que nos traz a comida que muitos ingerimos a cada dia, a bebida que nos hidrata a pele, ou até o fogo que nos aquece nas noites de janeiro, não convém que ignoremos o papel elementar que a imaginação exerce nos nossos corpos. É também por ela que sobrevivem­os. É ela que nos treina o músculo sem nome, um que ao longo da vida vai ficando mais denso, mais forte, mais valente. Claro que alguns, com o passar do tempo, vão trocando os altos voos pelas razias mansas. Mas isso não quer dizer que tenham desistido do desejo – podemos querer tanto, de formas tão diferentes, em tantas épocas. E se por acaso nalgum momento alguém sentir que vem sendo abandonado pelo músculo da imaginação, há um velho truque para o chamar de novo a casa: chama-se literatura. Ainda ontem, estando eu cansada do frio da época e já com uma saudade danada de mergulhos e das altas ondas, abri o livro de Moby Dick. Subitament­e a minha sala estava toda encharcada de água atlântica e ela tinha surgido no apartament­o por via do bater de cauda de uma baleia no mar. Nadei com o bicho, mas não nadei. E naquele espaço intermédio entre a braçada e a não braçada, alguma coisa aconteceu no meu coração – que ficou mais denso, mais forte, mais valente.

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