GQ (Portugal)

MEMÓRIAS DO MAU DA FITA

O mais internacio­nal dos atores portuguese­s associou-se aos 150 anos do Moët & Chandon Impérial. Não podíamos desperdiça­r a oportunida­de para pôr a conversa em dia com Joaquim de Almeida, “o mais fiável dos vilões”.

- Por Diego Armés Fotografia de Estelle Valente

Usa termos como “gajo” dezenas de vezes e pontua as ideias com “pá” tão frequentes quanto as reticência­s com que termina as frases que raramente têm fim. É assim Joaquim de Almeida, um português como pertence, o mais internacio­nal dos atores nascidos em Portugal, o homem que há décadas encontrou e agarrou o seu lugar em Hollywood, onde é um vilão confiável. Mas a carreira de Joaquim de Almeida não pode ser resumida a Hollywood, longe disso, e o ator faz questão de o sublinhar várias vezes ao longo de uma conversa em que se fala de cinema, de cinema e ainda de cinema: atores, atrizes, realizador­es, filmes, lugares, carreiras e ainda a aprendizag­em e o espanto que tudo isso produz num indivíduo que, ao longo da vida, foi vendo muita coisa e conhecendo muita gente, em muitos lugares. Tivemos tempo para dois dedos de conversa sobre o champanhe, a propósito dos 150 anos do Moët & Chandon Impérial.

Joaquim de Almeida pega na GQ de novembro e abre a revista. “Que cheirinho, eu gosto do cheirinho das revistas.” Começa a folhear. “Olha, Pole Position... viste o filme? Eu cá não sei o nome. Lá [nos EUA] é Ford vs Ferrari.”

Cá é Le Mans ‘66. Mesmo que não gostes de carros, o filme é muito giro. A história é fantástica. Este é o Ford que ganhou quatro vezes, quatro anos seguidos. E aqui é o Ferrari... E o Christian Bale, o gajo é doido, qualquer dia passa-se. Agora aqui o gajo perdeu outra vez 70 libras. 70 libras são praticamen­te 30 quilos. E o outro perguntou-lhe, antes de começarem a filmar, “então, mas como é que tu perdeste 70 libras?”, e ele “olha, fechei a boca”. “Simplesmen­te não comi”, diz ele. “Simplesmen­te não comi”, epá, fogo.

A conversa a propósito de Christian Bale prolonga-se, Joaquim de Almeida dá mais exemplos, fala de outros filmes, diferentes papéis. Obviamente, admira o trabalho e a coragem de Bale. É bonita a admiração entre pares.

Comecemos pelo que é fundamenta­l: qual é o seu filme favorito? Tu disseste “qual é o seu filme favorito” e eu pensei na cara do Joker, porque foi um dos meus favoritos deste ano. Por tudo, por causa da performanc­e do Joaquín Phoenix... O Joaquín Phoenix dá-me imenso jeito porque, nos Estados Unidos, quando tenho de dizer o meu nome, eu digo “olha é Joaquim, como se fosse Joaquín Phoenix, só que em português, está a perceber?” [risos]. E gostei muito da cor [do filme]. Mas eu tenho um filme que é um dos filmes de que mais gosto, a Janela Indiscreta, do Hitchcock. É um filme que... mas há tantos filmes que eu acho que dizer qual é o filme preferido é difícil. Digo este porque é um filme que tem suspense, tem tudo aquilo de que eu gosto no cinema. Depois há os filmes do Coppola, desde o Padrinho aos filmes do Vietname [Apocalipse Now].

Então e se falarmos de um género? Qual é o preferido? Não sei se tenho um género. Sei que tenho filmes de que não gosto, esses são mais fáceis de dizer que não vou ver. Acho que não tenho um género. Gostei de filmes completame­nte diferentes este ano. Falámos do Joker, falámos do Le Mans. Gostei muito do Irishman este ano, acho que é um filme conseguido, apesar de estranhare­s ao começo – sabes que eles têm 70 e tal anos e têm cara de 40 e tal, mas eu comprei aquilo. Acho que as performanc­es dos três – do [Robert] De Niro, do [Al] Pacino e do [Joe] Pesci – estão fantástica­s. É um filme conseguido do [Martin] Scorsese.

Não será, também, a conjugação perfeita? Scorsese, Pacino, De Niro e Pesci? Acho que a única coisa em que se enganaram foi ao não me terem convidado para fazer parte do filme [risos].

Que atores tem como principais referência­s? Imagino que já tenhamos falado de alguns. Sim, já falámos de alguns. Não tenho as referência­s assim tão presentes. Às vezes dizem-me que o meu estilo faz lembrar o do De Niro, por exemplo. Lembro-me logo de quando fui estudar para Nova Iorque, em 1977, que foi o ano em que saiu o Taxi Driver. Hoje em dia, quando tu vês a fotografia do Taxi Driver, a Jodie Foster com 13 anos e o De Niro com 31 anos, ou coisa parecida, faz imensa impressão porque começas a lembrar-te também dos teus primeiros filmes [risos]. A idade não perdoa. É bom poder continuar a trabalhar. Os jovens atores perguntam-me sempre como

fazer, pedem-me conselhos. Eu digo-lhes “olha, começar não é tão difícil, o mais difícil é continuar”. Já viste a quantidade de atores que aparecem e desaparece­m? São muitos. Gostei de ver o De Niro agora neste filme porque ultimament­e andava a fazer umas comédias, algumas com piada, outras não tanto. E eu digo-te, pá, um gajo chegar a esta idade e deixar aqueles filmes fantástico­s para fazer estas comédias não... Mas todos fizeram. Também gosto de fazer comédia, se bem que me pedem pouco para fazer porque, sobretudo nos Estados Unidos, quando tu fizeste bem o mau da fita, ficas muito marcado.

Porque é que faz tantas vezes de mau da fita? Tem a ver com o seu perfil, mesmo? Não sei, pá. Eu lembro-me que, quando fiz o 24 [série em que Joaquim de Almeida fazia o vilão Ramon Salazar], eles deram-me o prémio de vilão do ano apresentan­do-me como “the always reliable Joaquim de Almeida”. Percebes? The always reliable [o sempre confiável]. Porque, com os gajos, é assim “epá, aquele gajo já se sabe que podemos contar com ele”. Agora, estou numa série nova [Warrior Nun], para a Netflix, em que a atriz principal é uma atriz portuguesa, a Alba Baptista. O criador da série às tantas não se conteve e disse-me “Joaquim, tu não és o mau da fita – foi por isso que eu te escolhi para o papel, porque as pessoas vão todas pensar que tu és mau, mas não és”. Porque eu pensei “opá, pronto, faço de cardeal, o mau da fita”, mas não. Esta série tem uma vantagem, filma-se em Espanha, em Málaga e em Sevilha, portanto eu posso estar em casa apanho o avião, uma hora, vou lá filmar durante uns dias, volto para casa. Espero que vá durando pelos próximos 8 anos [risos].

Está satisfeito com a carreira que construiu, com o seu percurso, com os filmes que foi fazendo? Estou. Acho que podia ter... Eu fiz um erro, se calhar. Houve uma certa altura em que eu devia ter ido viver para a Califórnia muito mais cedo, porque eu fiz três filmes de seguida de estúdio – Only You, do Norman Jewison, o Perigo Imediato e foi o Desperado [filmes lançados entre 1994 e 1995] – e eu aí devia ter ido para a Califórnia e ter-me concentrad­o mais na Califórnia.

Podemos dizer que o Desperado foi um dos mais marcantes da carreira. O Desperado foi marcante também porque o [realizador] Robert Rodríguez disse-me sempre que era a mim que ele queria para o papel, só que a Columbia Pictures queria o Raul Julia e o Raul Julia entrou em coma, porque ele já estava muito doente. E então telefonara­m-me, estava eu em Lisboa: “Podes estar em quatro dias em Del Rio, Texas para começar a filmar?” No dia a seguir, estava em Nova Iorque, “deem-me o guião em Nova Iorque, que eu tenho de mudar de avião”, deram-mo, fui a ler aquilo no avião. Tive quatro dias para me preparar. Cheguei lá, o Robert disse “epá vem até ao set” e eu perguntei “então e ó Robert” e ele “olha, não te queria dizer nada, queria só mostrar-te uma cena que eu já montei, que é a cena do bar”. E eu assim “pronto, já percebi: I’m not bad, I’m very bad”, percebi que aquilo era tudo um exagero.

Como é que é a rotina de um ator numa grande produção hollywoode­sca? Epá, depende. Eu, na Velocidade Furiosa aquilo para mim foram umas férias. Estive lá dois meses e filmar foi pouco tempo, porque aquilo tem tanta cena e as cenas de ação demoram imenso tempo. Havia dias em que estávamos ali os atores todos à beira da praia porque eles estavam a filmar e a destruir carros. Destruíram duzentos e tal carros nesse filme. Portanto, há dias em que um gajo trabalha, mas todos os filmes são também um trabalho de espera. Por exemplo, no Perigo Imediato, o Philip Noyce queria fazer lá cenas com os militares e todos os dias me deixava de parte, dizia-me “ó Joaquim, eu preciso mesmo de filmar estas coisas”. Até que apareceu lá um gajo às tantas para ver o que se passava, “eu venho aqui para ver se o Joaquim filma”, e a partir daí comecei a filmar.

Voltando ao cinema na Europa, e sabendo que já trabalhou em Itália, em Espanha, onde o cinema tem crescido imenso, em França, porque é que em Portugal há tantas dificuldad­es no cinema? Bom, Espanha também andou assim. O cinema espanhol tem 40 milhões de habitantes em Espanha e depois tem a América do Sul toda. E depois ainda tem os Estados Unidos, a população latino-americana toda dos Estados Unidos. Aqui em Portugal o grande problema é que nós não temos dinheiro e, muito sinceramen­te, quem é que quer ver uma coisa falada em português? Não há muita gente, não é uma língua fácil de vender, sobretudo com o português de Portugal, que à maioria das pessoas nem parece língua latina, acham que parece mais russo.

Num outro assunto, como é que vê a polémica acerca do Scorsese e dos filmes de super-heróis Marvel e DC Comics? Então, é verdade. Os estúdios só estão focados nos filmes da Marvel. Ainda no outro dia a Jennifer Aniston dizia que hoje em dia ou se faz filmes da Marvel ou então não há cinema. Eu não sou um fã dos filmes da Marvel, chateia-me um bocado aquela história do super-herói, mas a verdade é: quem é que vai ao cinema? São os teenagers. E não vão ver uma vez, vão ver dez vezes o mesmo filme. Portanto, aquilo vende milhões e os estúdios estão concentrad­os nessa coisa.

“ELES DERAM-ME O PRÉMIO DE VILÃO DO ANO, [...] ‘THE ALWAYS RELIABLE JOAQUIM DE ALMEIDA’. PERCEBES? THE ALWAYS RELIABLE”

O cinema independen­te está ameaçado? Está porque, para já, os bancos não emprestam dinheiro para cinema independen­te. O cinema independen­te vive muito à custa de investidor­es privados, porque há uma lei, graças a Deus, que diz que eles podem investir e tirar aquilo como perda [financeira]. Portanto, há muitas empresas ou gajos com muito dinheiro que investem nos filmes. A única chatice é que há o dia em que vêm os investidor­es e estamos lá todos a falar com eles e eles vêm todos ver-nos filmar, epá que granda seca, agora estarem aqui a ver-nos a filmar. Mas... os realizador­es dizem sempre “pá, vocês vão ver esta gente toda, mas sejam simpáticos porque sem eles não há filme”.

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 ??  ?? A Moët & Chandon associou Joaquim de Almeida ao 150.º aniversári­o do Moët Impérial. Aproveitám­os a oportunida­de para conversar com o ator.
A Moët & Chandon associou Joaquim de Almeida ao 150.º aniversári­o do Moët Impérial. Aproveitám­os a oportunida­de para conversar com o ator.

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