GQ (Portugal)

VARSÓVIA, CIDADE-FÉNIX

Ergueu-se das cinzas para se transforma­r numa manta de retalhos que espelha as invasões e as guerras, mas também o instinto de sobrevivên­cia da capital polaca.

- Por Ana Saldanha.

Varsóvia sabe quanto custa a liberdade. Sabe-o a sereia feita estátua na Praça do Mercado da Cidade Velha. Sabem-no as casas do centro histórico que ficaram sem telhado quando 85% da cidade foi destruída durante a II Guerra Mundial. Sabem-no as cicatrizes que ficaram depois dos horrores do Holocausto.

A cidade nasceu em 1300 como pequena vila de pescadores e só a partir de 1569 passou a ser a capital da Polónia, quando o Rei Sigismundo III decidiu transferir a corte de Cracóvia para Varsóvia. Entre os séculos XVII e XIX, a cidade foi palco de invasões alemãs, suecas e francesas (comandadas por Napoleão Bonaparte), acabando por ficar sob domínio russo. Mas é difícil recuar ao passado mais distante quando o século XX deixou marcas tão profundas na cidade e no seu povo.

Em 1939, dos quase 1,3 milhões de habitantes, 35% eram judeus e mais de 450 mil foram confinados a um gueto, onde ficaram até serem enviados para campos de concentraç­ão. Os que sobraram começaram a orquestrar uma revolta que aconteceu em 1943 e que ficou conhecida como Levante do Gueto de Varsóvia, uma

tentativa desesperad­a para fugir ou adiar o inevitável: a morte num campo de extermínio. Depois de um mês de resistênci­a que acabou com morte e destruição, uma nova revolta foi planeada para o ano seguinte. A Insurreiçã­o de Varsóvia – que teve alguns dos combatente­s do primeiro momento de rebelião – foi uma luta armada em que o Exército Clandestin­o Polaco (Armia Krajowa) tentou libertar a cidade do controlo da Alemanha nazi.

A resistênci­a devia ter durado apenas alguns dias, o suficiente para manter os alemães ocupados até o Exército Soviético chegar à cidade. No entanto, a resistênci­a polaca manteve-se durante 63 dias, entre 1 de agosto e 2 de outubro de 1944, dia que marcou a rendição da rebelião polaca. As tropas soviéticas conquistar­am, em setembro, território­s próximos das posições polacas nas margens do rio Vístula, mas a história conta que Josef Stalin esperava pelo fracasso da Insurreiçã­o de Varsóvia para poder, sem dificuldad­e, ocupar a Polónia.

Ainda que não haja um número exato de baixas, estima-se que terão sido mortos cerca de 15 mil combatente­s e 50 mil civis, mas o exército polaco também fez mossa nas tropas alemãs, que sofreram cerca de 20 mil mortos e feridos.

Entre a Invasão da Polónia em 1939, o Levante do Gueto de Varsóvia em 1943 e este último conflito, em 1945 mais de 85% da cidade tinha sido completame­nte destruída e, ao contrário da maioria das cidades, em que a sua destruição é um efeito colateral do conflito, no caso de Varsóvia, as tropas alemãs continuara­m a destruir a cidade, quarteirão a quarteirão, durante dois meses, mesmo depois da rendição das forças polacas.

Os que não fugiram do país durante a guerra viviam no meio dos destroços. Segundo o escritor polaco Leopold Tyrmand: “É preciso amar a cidade para a reconstrui­r à custa da própria respiração. E talvez seja essa a razão pela qual, de campo de batalha e ruínas, Varsóvia voltou a ser a velha Varsóvia, a eterna Varsóvia… Os varsoviano­s trouxeram-na de volta à vida, preenchend­o o esqueleto de tijolos com o próprio fôlego.”

Com a ajuda de 22 pinturas de Bernardo Bellotto – também conhecido como Canaletto –, um artista italiano que foi pintor da corte da Polónia em 1768, a cidade polaca foi reconstruí­da de modo a conservar o modelo original. Os quadros de Bellotto, juntamente com o engenho de arquitetos e historiado­res de arte locais, garantiram o reerguer rápido da Cidade Velha – a maioria do trabalho foi concluído antes de 1955. A Cidade Velha e as zonas históricas da cidade foram reproduzid­as, mas, no restante, adotou-se a modernidad­e em forma de avenidas largas e parques que no verão se enchem de mercados e bares.

Foi mesmo dos destroços que a cidade voltou à vida: usaram os destroços da cidade feita em pó para fazer tijolos, guardaram detalhes arquitetón­icos dos edifícios destruídos e voltaram a colocá-los nas fachadas depois de reconstruí­das, preservand­o ao máximo os pormenores da velha Varsóvia. O trabalho foi feito por construtor­es especializ­ados, lado a lado com os habitantes da cidade. “A nação que construiu a sua capital” passou a ser o grito de guerra de uma Varsóvia tão ferida quanto resiliente.

Varsóvia de hoje

Entre a Cidade Velha e o centro da cidade nova fica um dos monumentos mais importante­s do país: o túmulo do soldado desconheci­do, que é também o que restou do antigo palácio e, à sua frente, o monumento a João Paulo II.

Um edifício que é impossível a vista ignorar é o gigantesco prédio de 42 andares, prenda de Estaline à capital polaca: o Palácio da Cultura e da Ciência, construído nos anos 50. A construção, que ainda hoje é a mais alta do país, tem tanto de imponente quanto de polémica, relembrand­o as promessas da URSS. Os locais dizem até que oferece a melhor vista da cidade, já que estar no seu miradouro é a única forma de não o ver.

Mas vão ficando para trás alguns fantasmas do passado, especialme­nte os da rutura de tudo o que tinha mão comunista e exemplo disso é o regresso dos “bares de leite” (bar mleczny), que nos tempos de racionamen­to de carne, serviam refeições baratas e caseiras à base de produtos lácteos, que tinham baixos custos.

E não só de leite se faz o prato (e o copo) dos polacos. Muitos reivindica­m a Polónia como lugar de nascimento da vodka e, para a celebrar, foi aberto em 2018 o primeiro museu da bebida, que rapidament­e se tornou uma das atrações principais da capital. Fica numa antiga destilaria que foi instalada para dar resposta à demanda do exército russo quando esteve em Varsóvia.

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estruturas que resistiram e que conservam memórias em forma de buracos de balas nas suas fachadas.
Durante a reconstruç­ão da Cidade Velha aproveitar­am-se estruturas que resistiram e que conservam memórias em forma de buracos de balas nas suas fachadas.

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