GQ (Portugal)

UM HOMEM: RICHARD JEWELL

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Quando olhamos para Richard Jewell com os nossos olhos de 2020 o que vemos? Em primeiro lugar, um gordo. A essa evidência não podemos escapar. Richard é um gordo, solteiro e que ainda vive com a mãe, que o trata como uma criança. Uma criança grande e gorda. Richard, o gordo, é patético porque tem o sonho pueril de ser polícia e só consegue ser segurança. E é patético porque leva a sério as suas diminutas funções e imagina-se um elemento das “forças da autoridade”. Vemos mais. Com o nosso olhar de 2020 vemos o que julgamos ser o típico eleitor de Trump: branco rasca, classe média-baixa, amante de armas, temente a Deus, cumpridor da lei. Mesmo com a sua liberdade em risco ele quer que saibam que não é homossexua­l. Bombista, talvez. Homossexua­l, nunca.

E o que via o mundo em 1996, quando Richard Jewell salvou dezenas de pessoas num atentado bombista em Atlanta, durante os Jogos Olímpicos? A imprensa – sempre ávida para preencher as categorias que lhe são mais confortáve­is: herói, vilão e vítima – elevou-o à condição de herói popular, o homem comum, sem qualidades à primeira vista discerníve­is, que no seu momento de ouro, na sua finest hour, salva os seus semelhante­s de uma morte certa. Durante alguns dias, enquanto atletas extraordin­ários batiam recordes na pista, os americanos estiveram de olhos postos nesse homem tão parecido com eles, um derrotado anónimo no meio de uma multidão de derrotados anónimos, brevemente arrancado à escuridão do anonimato graças às suas patéticas qualidades.

Mas a polícia, sem pistas quanto ao verdadeiro autor do crime, precisava rapidament­e de um vilão e Richard, o gordo, o segurança frustrado, o pretenso polícia, era o suspeito mais à mão de semear. Encaixava perfeitame­nte no perfil do sujeito desejoso de notoriedad­e que põe uma bomba para depois aparecer como salvador. As autoridade­s já tinham o seu vilão e a imprensa, que raramente deixa que os factos atrapalhem uma boa história, foi atrás. De herói nacional Richard Jewell passou a ser visto como inimigo público n.º 1, desempenha­ndo, submisso, os vários papéis que as “terríveis forças”, como as denomina o seu advogado, do Estado e da comunicaçã­o social lhe destinaram. No meio das estimulant­es narrativas do poder, ninguém olha para Richard Jewell e vê o que ele é: um ser humano, um indivíduo. É esse o cerne do filme de Clint Eastwood sobre o caso de Richard Jewell. A dada altura, um já desgastado Richard diz ao advogado que se lembrou dele para o representa­r porque, no antigo emprego onde se conheceram, ele era o único que o tratava e via como um ser humano, e não como o gordo deplorável. O advogado, num papel do sempre brilhante Sam Rockwell, quer que Richard, o também admirável Paul Walter Hauser, não seja tão prestável e ingénuo com a polícia. Quer que o seu cliente se enfureça e se revolte contra as autoridade­s que tanto respeita, mas que, naquele caso, tudo farão para o queimar na praça pública. No fundo, o advogado quer que Richard se assuma como um indivíduo mesmo que para tal tenha de contrariar a sua natureza, os seus instintos, o seu fundo dócil, a sua visão maniqueíst­a de um mundo dividido entre bons e maus, em que ele se vê sempre no lado dos bons, no lado das instituiçõ­es.

Acontece que foi essa natureza, os seus instintos e até a sua falta de consciênci­a do ridículo que lhe permitiram agir como um herói. Quase no fim do filme, interrogad­o pelo FBI, Richard diz-lhes que da próxima vez que alguém estiver numa situação idêntica, em vez de se preocupar em salvar as vidas dos outros, há de pensar em salvar a própria pele para não sofrer a vergonha da humilhação pública, da desconfian­ça da polícia e da perseguiçã­o da imprensa. Desiludido com as instituiçõ­es que destroem a sua crença otimista no sistema, Richard não sai derrotado do confronto porque emerge enquanto indivíduo, alguém que, num derradeiro golpe, se recusa a seguir o guião que outros escreveram para ele.

Como noutros filmes de Eastwood, o que se encena não é tanto o combate entre idealismo e pragmatism­o, entre uma velha ordem de valores e a anarquia do relativism­o, mas a luta de um indivíduo para se afirmar perante uma sociedade para a qual ele é indiferent­e, carne para canhão de uma máquina insaciável. Os protagonis­tas de Eastwood quase nunca são exemplos de moral e muitas vezes infringem a lei. Podem ter aptidões extraordin­árias – como Sully em Milagre no Rio Hudson ou Chris Kyle em Sniper Americano – ou ser de uma banalidade absoluta – como Richard Jewell –, mas o que os define são as escolhas que fazem, a nobre aceitação de que têm de pagar pelos seus atos – como o traficante de Correio de Droga ou o pai justiceiro de Mystic River. Mesmo quando se sacrificam, como Walt Kowalski em Gran Torino, fazem-no por vontade própria. São indivíduos e pedem que olhemos para eles enquanto tal e não como farrapos de teses sociológic­as. No fim, o gordo e patético Richard do início não é nem herói, nem vilão, nem vítima. É um homem. É esse o seu triunfo.

NINGUÉM OLHA PARA RICHARD JEWELL E VÊ O QUE ELE É: UM SER HUMANO, UM INDIVÍDUO

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