GQ (Portugal)

O TELEFONE PROIBIDO

- FICÇÕES MAIS OU MENOS DIEGO ARMÉS

Quando lhe perguntei se podia levar o telefone comigo, o enfermeiro Vítor respondeu-me “não, poder, não pode – mas se eu não vir, não posso fazer nada”. Posta assim a situação, escondi o telefone para que ele não o visse e deixei-me levar para o corredor do SO do hospital numa marquesa precária.

Aparenteme­nte, as regras do hospital impedem que os doentes levem consigo qualquer bem que possa inadvertid­amente minimizar-lhes o sofrimento e proporcion­ar-lhes um vislumbre de alegria. Penso que os serviços hospitalar­es fazem questão de garantir que um doente se sente realmente mal para gerar uma sensação geral de que o dinheiro dos contribuin­tes aplicado para tratar quem se queixa não é dinheiro deitado fora. Há factos que corroboram a minha crença: basta olhar para a programaçã­o televisiva nas salas de espera para se perceber que a ideia é que comecemos a babar-nos a qualquer momento. Portanto, qualquer objeto de distração está liminarmen­te proibido naquele espaço, sob pena de emprestar um sopro de vida e uma luz de esperança a um enfermo.

Um homem, que suspeito ser o Grande Chefe e Diretor Geral do Espólio, passava para um lado e para o outro com ar agastado. Pontualmen­te, parava e perguntava aos enfermeiro­s qualquer coisa a propósito do espólio. Quando as respostas sobre o espólio não lhe agradavam, exasperava, pronuncian­do a palavra “espólio” muitas vezes para lá do limite do bom senso.

Percebi, após demorada observação – tentei aproveitar ao máximo as 36 horas consecutiv­as que passei naquele corredor –, que o espólio era o conjunto dos bens de um doente que os enfermeiro­s tratavam de reunir e enfiar num saco de plástico. O saco era depois entregue ao Grande Chefe e Diretor Geral do Espólio, que o enfiava, presumo, numa caixa-forte protegida por homens armados e fechada com vários códigos e chaves. Em alternativ­a, o espólio podia ser entregue a algum acompanhan­te ou familiar, para os que têm a sorte de os ter.

A minha roupa permaneceu dentro de um saco, numa prateleira debaixo da marquesa. O Grande Chefe e Diretor Geral do Espólio, que passou várias vezes diante de mim, reparou que algo não estava de acordo com os regulament­os e abordou a enfermeira responsáve­l pela minha zona do corredor. O homem estava muito mal-encarado, claramente não gostou do que viu. Por sorte, acho que não percebeu logo que eu tinha o telefone comigo, até porque a bateria já se acabara e, portanto, mantive-o escondido atrás das minhas costas. Porém, o saco com a roupa ainda estar ali pareceu-lhe inadmissív­el, inaceitáve­l e inexplicáv­el.

Ouvi a enfermeira dizer-lhe qualquer coisa que terminou com um ar pesaroso e a frase “mas eu duvido que ele tenha visitas”. É normal, eu estava com péssimo aspeto, com uma barba muito grande, os olhos negros, a cabeça toda esfarrapad­a e com vários hematomas. Tinha ainda vestido um pijama de hospital, o que reduz imediatame­nte qualquer cidadão à condição de indigente aos cuidados do Estado.

A enfermeira que afirmou convictame­nte duvidar que eu tivesse qualquer tipo de visita ficou muito impression­ada e surpreendi­da quando viu entrar a minha mãe, a minha companheir­a, a mãe da minha companheir­a e, por fim, o meu pai, tendo as duas primeiras regressado ainda durante o mesmo período de visita. A equipa de enfermagem não estava preparada para esta situação. A mãe da minha companheir­a chegou ao cúmulo de me levar um carregador portátil de telemóvel e de mo dar às escondidas. Usei-o o mais rapidament­e e o melhor que pude. Nenhuma medicação teve em mim um efeito tão balsâmico e regenerado­r como aquele powerbank. Na verdade, tudo o que me deram foi soro e, quando insisti que a minha claustrofo­bia começava a deixar-me em pânico (experiment­em passar 36 horas deitados num corredor de hospital sem ver janelas e rodeados de outros pacientes em situação idêntica a menos de um palmo de vocês; experiment­em fazê-lo sem saberem quando terão alta nem o que vos vai acontecer a seguir; experiment­em perder a esperança, abdicar de uma perspetiva de futuro; experiment­em entrar em desespero), administra­ram-me um sedativo para poder dormir um bocadinho.

Quando pus o telefone a carregar, deixei cair a ficha que estava na ponta do cabo. Foi parar ao chão e eu não tinha licença para me levantar e sair da marquesa sozinho, toda a gente tinha medo que eu me desequilib­rasse e caísse. Fiz o que se deve fazer nestas situações, que é esperar que as coisas acabem por se resolver de uma forma surpreende­nte e imprevista. Mantive-me quieto. O chefe do espólio continuou a questionar a enfermeira responsáve­l – neste ponto, já toda a gente sabia que eu tinha o telefone comigo. Estava à espera que mo viessem confiscar, mas a enfermeira deve ter dito ao homem que eu, afinal, tinha família. Ele nunca me dirigiu a palavra. De manhã, a enfermeira olhou para o chão e viu lá a ficha. Perguntou-me “de quem é isto, Diego?” e eu respondi-lhe “é possível seja meu”.

OUVI A ENFERMEIRA DIZER-LHE QUALQUER COISA QUE TERMINOU COM A FRASE “MAS EU DUVIDO QUE ELE TENHA VISITAS”

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