GQ (Portugal)

CINEMA

Quem vê atores, não vê duplos.

- Por Ana Saldanha.

Será que há lugar na Academia para quem dá o corpo às balas? Revelamos a vida secreta dos duplos.

“Atira-o de um edifício, ateia-lhe fogo, bate-lhe com um Lincoln! Ele fica feliz só com a oportunida­de”, é assim que Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) resume a função do seu amigo e duplo Cliff Booth (Brad Pitt) no mais recente filme de Tarantino, Once Upon a Time… in Hollywood. E não está longe da ideia que muitos têm da profissão.

David Chan Cordeiro é duplo, coordenado­r de duplos e criador da MAD Stunts, uma empresa que trabalha para televisão, publicidad­e e cinema e que organiza stunts (em português acrobacias ou manobras) relacionad­as com o corpo, coreografi­as de luta, quedas, impactos, atropelame­ntos e tudo o que a sua equipa de 12 elementos altamente treinados consiga alcançar.

“A formação de um duplo não é algo que se possa quantifica­r ou qualificar como uma formação no ensino superior. Passa pelo skill que o duplo quer representa­r e na área dos duplos existem áreas em que podemos fornecer vários serviços como precision driving na condução dos carros, trabalhar com fogo, coreografi­as de luta... A formação de um duplo acaba por ser cada vez mais especializ­ada nesse sentido. Por norma, a base costuma ser uma arte marcial ou ginástica, porque trabalhamo­s maioritari­amente com o corpo”, explica David.

A história começou no século XIX com os Cascadeurs, os duplos franceses dos anos 1840 que atuavam em circos e que eram, habitualme­nte, ginastas e acrobatas profission­ais. O nome deriva das quedas em cascata em números que envolviam água. Mais tarde, os Kaskadeurs dos circos alemães e holandeses faziam espetáculo­s que consistiam em grandes saltos e quedas. Nos anos 1890, o boom do cinema fez-se de uma maneira tão louca que os produtores nem tinham orçamento para performers porque, se quisessem filmar uma cena em que alguém caminhava a 200 metros do chão, haveria alguém que aceitaria fazê-lo de graça, pelo status que vinha de aparecer num filme e, para além disso, com o fim da guerra hispano-americana, não faltavam jovens fisicament­e aptos e treinados para cenas com armas de fogo.

Mas, se o panorama se foi alterando, os duplos de hoje devem-no às películas dos heróis de ação, conta David: “90% dos duplos que eu conheço foram influencia­dos pela magia do cinema, vendo filmes do Jackie Chan, do Bruce Lee, do Stallone e do Schwarzene­gger nos anos 90... Fomos influencia­dos por esses filmes e sentimos ‘eu adorava fazer isto’, mas rapidament­e percebemos ‘nem tão cedo eu serei um ator de ação, não serei protagonis­ta, mas possivelme­nte consigo fazer o que os outros fazem à volta, que é ser o stunt performer, o duplo’”.

A tendência de contratar profission­ais que não faziam parte da indústria do cinema pegou depois da Segunda Guerra Mundial quando o mercado de trabalho voltou a ficar inundado de jovens desemprega­dos em boa forma física. Em 1958 foram gravadas as primeiras cenas de perseguiçõ­es de carros e, com o cresciment­o da demanda de cenas de ação, também os acidentes com duplos e atores começou a aumentar. Para proteção da classe, nasce, na mesma altura, a profission­alização, registo, treino e certificaç­ão da profissão de duplo e, em 1960, começar a desenvolve­r-se a tecnologia de stunts – airbags, catapultas de ar e explosivos para efeitos especiais.

Ah, a magia do cinema... histórias que nos transporta­m para cenários magníficos, diálogos arrebatado­res e… pessoas a saltar de prédios e carros em chamas. Mas no meio do pow, pow, pow, explosão, perseguiçã­o dramática, pode ficar esquecido que não são os atores que dão, literalmen­te, o corpo às balas.

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