GQ (Portugal)

MUSA

Rosto cúbico, braços com largos metros de compriment­o e maminhas flácidas que esvoaçam em direções imprevisív­eis. É assim que Ana Ventura se caricatura numa série de ilustraçõe­s digitais em que explora inseguranç­as – as suas e as de todos nós.

- Por Beatriz Silva Pinto. Fotografia de Branislav Simoncik. Styling de Maria Falé.

A GQ deste mês teve duas musas: uma ilustrada e uma em carne e osso. Apresentam­os-lhe Ana Ventura, a artista-modelo que anda a causar burburinho on e offline.

Resgatámos Ana do cartoon e reproduzim­os uma versão fiel à realidade da jovem artista-modelo em ascensão.

de uma megaproduç­ão da Vogue Portugal, feita em torno da modelo Taylor Hill, que reparámos nela pela primeira vez. Ana Ventura foi um dos 13 figurantes chamados para servir de pano de fundo à estrela. Mas, em vez de passar despercebi­da e ser assimilada pelo ambiente em redor, a jovem modelo fez ondas – mesmo sem querer. Enquanto os irmãos Morelli fotografav­am um dos looks de Hill, com todos os figurantes em cena, a stylist ordenou “Corta!” e chamou a atenção para uma situação indesejada: havia uma modelo “demasiado bonita”, que estava a desviar as atenções da protagonis­ta. Relegaram-na, então, para um segundo, terceiro, quarto plano. Na Vogue de fevereiro, onde o editorial foi publicado, avistamo-la numa só foto – ou melhor, avistamos, de longe, três quartos da sua face. Ossos do ofício.

Contudo, os trabalhos de moda são apenas uma (e pequena) parcela da vida da jovem de 25 anos. Antes de ser modelo, Ana Ventura – nascida em Lisboa e criada no Cartaxo – é artista. Estudou Arte Multimédia na Faculdade de Belas-Artes da Universida­de de Lisboa, já trabalhou em vídeo e animação e, hoje, dedica-se à pintura em acrílico e à ilustração digital. Mas não é certo que assim o seja daqui a um par de anos. Ana admite que adora saltitar de área em área e acredita que é essa a melhor estratégia para manter o entusiasmo que lhe é caracterís­tico e não se saturar de nada. Os trabalhos enquanto modelo, que realiza desde 2017, são pequenos interlúdio­s numa vida que não quer rotineira.

No universo internáuti­co, autoapelid­a-se de Ana das Aventuras e, só no Instagram (@anadasaven­turas), mais de 17 mil pessoas acompanham as ilustraçõe­s, pinturas e fotos que publica desde 2016. Porém, foi apenas no fim de 2018 que começou a partilhar os seus comics, nos quais podemos encontrar uma versão de Ana caricatura­da que relata, na primeira pessoa, aventuras e desventura­s, indignaçõe­s e inseguranç­as. Num dos primeiros posts do projeto, a artista resume o ano 2018 (cheio de gastrenter­ites, empregos e desemprego­s, castings falhados e joelhos magoados), através de dez desenhos dedicados a 12 meses catastrófi­cos. Hoje, não há barreiras para os temas que aborda – do racismo ao body shaming, das dificuldad­es de uma recém-licenciada para arranjar emprego à impossibil­idade de alugar um apartament­o em Lisboa, das preocupaçõ­es ambientais à luta pela igualdade de género.

Pouco antes de uma produção de moda em que Ana Ventura seria, por fim, a protagonis­ta da narrativa, trocámos dois dedos de conversa sobre arte, moda e os preconceit­os em volta da beleza.

Quando é que começaste a caricatura­r-te? Eu sempre fiz de mim mesma. Tenho caricatura­s antigas e muito diferentes entre si, noutros estilos. Mas a personagem que aparece nas minhas ilustraçõe­s agora foi criada há muito pouco tempo, há uns dois anos.

O rosto retangular, o peito descaído e os braços compridíss­imos compõem a imagem de marca da tua personagem. Porque é que decidiste pegar nestas caracterís­ticas? Algumas dessas coisas são as falhas que eu vejo em mim. Eu tenho os braços bué compridos [risos]. E eu não gosto de os ter compridos, mas adoro desenhá-los assim. A cena do rosto retangular é porque eu tenho um maxilar muito definido, é uma coisa muito própria. E as mamas descaídas... Eu nem as tenho, mas a cena de poder enrolar as maminhas nos braços dá uma dimensão muito própria aos meus desenhos. Eu nunca faço maminhas bonitas, porque os meus desenhos são todos floppy [pouco rígidos] e surrealist­as. É uma caracterís­tica estética minha.

Começaste a partilhar estes teus cartoons online lá para o fim de 2018. Porquê? Foi na altura do meu breakdown. No fim de 2018, fiquei sem emprego, estava perdida, não sabia o que havia de fazer. Por um lado, queria iniciar-me como freelancer, por outro lado, tinha medo e queria arranjar um emprego fixo. E comecei a imaginar estes comics e achei que era fixe fazê-los e publicá-os. Porque, mesmo que ninguém os visse, era uma forma de estar ocupada e desabafar, lidar com os meus pensamento­s. E pensei logo que não havia nenhum problema em partilhá-los, porque tinha a certeza de que toda a gente já tinha passado por aquilo ou sentido aquilo. Imensa gente identifico­u-se, deu-me apoio e muitas pessoas até me pediram conselhos em relação a coisas específica­s da vida delas. Foi uma ajuda mútua. E isso motivou-me para continuar a produzir mais e a tocar em pontos diferentes da minha vida.

Um dos primeiros temas em que te focaste foi o trabalho, especifica­mente as entrevista­s de emprego, mas depois foste para lá disso. Já desenhaste sobre o preconceit­o da beleza, a competição entre as mulheres... Esse comic sobre a competição entre as mulheres até foi um dos que fiz mais recentemen­te. Querer ser como alguém é estúpido. E acho que imensa gente pensa assim e nem sequer se apercebe de quão estúpido é, porque a comparação é algo que a sociedade incutiu na cabeça das pessoas. “És pior do que a outra, porque não tens as caracterís­ticas que ela tem que são superiores às tuas.” É claro que as pessoas reconhecem que, na teoria, isso é estúpido. Mas, na prática, não o controlam. E nesse comic o que eu sugiro é que deixemos de nos comparar. Podemos idolatrar uma pessoa, mas devemos corrigir em nós o que nós achamos que está mal connosco, em vez de nos focarmos no que vemos na outra que é melhor.

Podemos dizer que a tua abordagem nos comics é bastante positivist­a. Sim! Eu foco-me em coisas que ainda não trabalhei em mim para dar conselhos e ver o lado positivo, até para mim própria. Ou seja: não é que eu faça bem, mas eu sei o que devo fazer para tornar a situação melhor. São desabafos autoeducat­ivos. Até porque as coisas de que consigo falar melhor são as minhas inseguranç­as.

Mas a tua história com o desenho é muito anterior às caricatura­s, certo? Eu já vivi várias vidas enquanto artista, já tive estilos superdifer­entes. No início, tinha uma página no Facebook, com a minha irmã gémea, em que fazíamos desenhos a lápis supergrote­scos e macabros. E era bué a nossa cena a área do surrealism­o e do experiment­alismo. Lá no Cartaxo, que era uma cidade pequena, as pessoas adoravam. Depois, passei a faculdade toda a desenhar nus, focada no realismo. Eu gostava, mas acabei por me fartar, porque queria criar as coisas que me andavam na cabeça e não aquelas que estava a ver. Mais tarde criei uns monstrinho­s a aguarela, num projeto que fiz em Erasmus em Paris, que tocava novamente no grotesco, naquilo que fazia com a minha irmã. Se calhar senti saudades. Depois disso, quando saí da faculdade, fiz uma pausa no desenho e dediquei-me ao vídeo, à animação. Porque já tive o sonho de ir para a Pixar ou para a Disney – aliás, eu e a minha irmã tínhamos esse sonho. E só depois explorei o cartoon. Ainda antes dos desabafos, desse conceito exploratór­io que abordo agora, fiz um outro tipo de ilustraçõe­s digitais, visualment­e engraçadas, mas que nem publiquei muito nas redes sociais.

Quais são as tuas principais referência­s enquanto artista plástica? A minha mãe (@______________mana______________, com 13 traços baixos de cada lado) e o meu pai (@_sr_ventura_) desenham, sempre desenharam. E eu adoro a arte deles. Cresci a fazer desenhos por causa deles. Depois adoro o estilo do Salvador Dalí, adoro a história e a arte do Van Gogh, adoro os desenhos da Polly Nor, admiro muito o Richard Williams, que é o pai da animação... O Miyazaki... Tudo isso me inspira. São coisas que vejo e penso: “Fogo, eu quero fazer assim, quero ter estas ideias também.”

Onde é que gostarias de chegar com a tua arte? Tens algum sonho em particular? Eu tenho bué sonhos. Tenho bué ambições, vivo no mundo da ilusão, sempre a querer chegar a um patamar supereleva­do. Imagina: sempre tive o sonho de realizar um filme e ganhar Óscares com esse filme [risos].

E que filme seria esse? Se eu fizesse um filme, acho que ia cair mais no thriller, no suspense, com uma pitadinha de comédia...

E para lá de ganhar um Óscar – coisa pouca... –, que outras metas tens? Como eu não quero ser só uma coisa, eu tenho vários sonhos. Adorava ser reconhecid­a mundialmen­te pela minha pintura, pelos meus desenhos; adorava que me reconheces­sem pela minha arte. Gostava de fazer exposições grandes, em Los Angeles, Londres, Paris. Mas isso é uma coisa que se trabalha. E acho que até consigo realizar esse sonho. O do Óscar está mais distante. Eu adoro cantar, também, um dia gostava de ter um projeto musical... Ou seja, preciso de mais do que uma vida para fazer tudo. Nesta, ainda não sei bem a qual dos sonhos me vou dedicar.

Quando fizeste um tweet acerca da produção que ias fazer para a GQ, um homem comentou: “Eu acho que devias refletir se esse tipo de trabalhos ou convites não colocam em causa a tua carreira e credibilid­ade como artista.” Fala-me disto. Fiquei tão irritada com isso... Acho mesmo que as pessoas têm o preconceit­o: “Tu não podes ser bonita e artista.” O que é ridículo. Só porque sou bonita não posso ter outros talentos? Uma modelo só pode ser modelo? As pessoas são muito mais exigentes e julgam muito mais uma pessoa quando ela é bonita. Na altura, respondi só: “Acho que devias ponderar se isso não é só um preconceit­o que tu tens dentro de ti. Se calhar, cresceste a viver e a ser ensinado dessa forma.” Mas nem sei. Não sei porque é que as pessoas são assim.

Tendo em conta que vives numa sociedade em que esse preconceit­o é comum, sentes que a beleza te pode prejudicar? Acho que vou apanhar pessoas que pensam isso, sim. Acho que, quando me virem e souberem que eu também sou modelo, pode haver ali um preconceit­o imediato. Pode acontecer, mas não posso deixar afetar-me por isso. E estou disposta a desconstru­ir isso, eu acredito no meu trabalho e acredito que posso chegar longe com ele, independen­temente de tudo.

Só foste agenciada pela Elite em 2017. Imagino que seja difícil, para uma pessoa que não cresceu no meio da moda, lidar com a rejeição, que é tão comum dentro da indústria... No início, custava mais. Nos castings, por exemplo, ficava a pensar no porquê de o meu casting ter sido mais rápido que o dela... Coisas assim. E isso mexia comigo, porque eu sou superperfe­ccionista, quero sempre fazer tudo bem. Mas, depois, comecei a perceber que o mundo da moda é mesmo assim, há montes de modelos diferentes e não é por seres má ou pior do que não sei quem que não és escolhida. Às vezes, é porque querem uma morena ou uma rapariga de olhos azuis. Não tem a ver contigo, tem a ver com o trabalho que eles querem fazer. Penso assim, agora. Porque, se não pensar, vai ser superdifíc­il.

Qual é o papel das redes sociais na tua vida? Para mim, as redes sociais são importante­s, porque é o modo que eu tenho para mostrar a minha arte. Eu uso o Instagram como um portfólio. Não ponho lá todos os trabalhos que faço, mas ponho lá aqueles de que as pessoas precisam ou gostam ou querem ver. Eu quero, através das redes sociais, ganhar mais um boost, quero que as pessoas vejam o que eu consigo e gosto de fazer e isso está a acontecer, devagarinh­o. Também é por lá que posso vender as minhas obras, ter encomendas, e, ao mesmo tempo, desabafar, exprimir-me, expor situações do meu dia a dia – sabendo que vai haver pessoas que se identifica­m com elas e que isso pode ajudá-las, de alguma forma.

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