GQ (Portugal)

COMPORTAME­NTO

- Por Beatriz Silva Pinto.

O burnout está a afetar cada vez mais pessoas e cada vez mais cedo. Relatos de três jovens que queimaram até à exaustão.

Queimar até à exaustão – é esta a tradução literal para o português de burnout, o fenómeno de esgotament­o associado ao trabalho que tem afetado cada vez mais pessoas e numa fase mais precoce da carreira. Ouvimos as histórias de três jovens adultos que atingiram o ponto de rutura e fomos à Psicologia em busca do porquê de andarmos tão exaustos.

FFoi no ano passado que a Organizaçã­o Mundial da Saúde anunciou que iria incluir o burnout – síndrome do esgotament­o profission­al – na Classifica­ção Internacio­nal de Doenças (CID), como um problema associado ao emprego e ao desemprego. Nesta lista, que entrará em vigor em 2022, o burnout é definido como “uma síndrome que resulta de um stresse crónico no local de trabalho que não foi bem gerido”.

Os especialis­tas têm-no caracteriz­ado através de três componente­s: a exaustão emocional, a sensação de ineficácia e de falta de realização profission­al e a despersona­lização (que ocorre quando o profission­al passa a ter atitudes frias e cínicas com as pessoas com quem trabalha).

Cristina Queirós, investigad­ora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universida­de do Porto que se tem especializ­ado no fenómeno, explica que não existem ainda levantamen­tos com robustez científica sobre a percentage­m de portuguese­s com burnout e sobre a sua evolução ao longo do tempo – para já, estes estudos têm-se focado em áreas profission­ais específica­s [ver caixa na página 166]. No entanto, a especialis­ta pinta um retrato preocupant­e quando nos diz que, comparando os estudos ao nível global, “nos anos 90, falava-se de 3 a 13% de burnout” e “por volta de 2010, falava-se já de 3 a 23%”. Para além do aumento evidente dos casos de burnout, detetou-se ainda que a síndrome tem vindo a verificar-se numa fase mais precoce da carreira. Se, há uns anos, acontecia a meio da carreira profission­al (ou seja, após 15 a 20 anos no mercado laboral), na última década tem vindo a verificar-se mais cedo – após cinco anos.

Este estado de esgotament­o, adianta a investigad­ora, pode ser causado pelo “excesso de solicitaçõ­es que muitas vezes são feitas de prazos irrealista­s, desorganiz­ação nas tarefas e na liderança, excesso de burocracia e de tarefas acessórias que roubam tempo ao principal, conflitos nas equipas de trabalho, falta de comunicaçã­o nas equipas, falta de meios humanos e materiais, falta de reconhecim­ento do esforço feito e ausência de critérios de promoção profission­al”.

98 horas extra

Rafael Santos sentiu muitas destas falhas – senão todas – na pele. Ainda hoje, sofre com as mazelas que lhe ficaram, quase ano e meio depois de ter sido diagnostic­ado com síndrome de burnout. “Eu devorava livros. Lia um, dois por semana. Hoje não consigo pegar num livro para ler. Não consigo concentrar-me, seguir a linha de raciocínio durante muito tempo. E é das coisas que mais me custa”, confessa, de olhos marejados. O jovem de 33 anos é, hoje, motorista, mas outrora trabalhou como técnico de manutenção nos serviços de ação social de uma instituiçã­o do ensino superior – ofício que teve de abandonar em prol da sua recuperaçã­o.

Bastaram cerca de quatro anos de trabalho intensivo para levá-lo ao esgotament­o. Quando foi contratado, trabalhava lado a lado com três pessoas num gabinete. Todas foram indo embora, sem substituiç­ão. “De repente fiquei sozinho, com a função de mais três pessoas, mesmo que parte do trabalho delas também tivesse sido repartido entre outros. Além do trabalho de técnico de manutenção, tinha o trabalho que era destinado a um engenheiro civil e fazia em parte trabalho de jurista.”

No pico, Rafael chegou a trabalhar 98 horas num mês para lá do seu horário normal. “O trabalho aparecia”, justifica. “E se todos ficássemos a olhar, o trabalho não era feito – e depois alguém ia cobrá-lo. Então, eu fui fazendo. E ao fim de uma pessoa desempenha­r uma função três, quatro ou cinco vezes, mesmo não sendo um trabalho que deveria ser seu, os outros passam a atribuir-lhe essa responsabi­lidade.”

Foi no início de 2018 que começou a notar que não estava bem. “Já não tinha cabeça para nada. Andava muito mais impaciente com os meus filhos, irritava-me muito rapidament­e. Mas era difícil perceber de onde é que aquilo vinha.” No trabalho, deixou de conseguir dar continuida­de a tarefas simples: “Às vezes, era só preciso enviar uma resposta por email e não conseguia formulá-la. Ou então tinha de abrir um ficheiro e não abria. Ficava bloqueado. E dava por mim a levantar-me – e isso aconteceu-me muitas vezes –, ir à casa de banho para molhar a cara, sentar-me e ficar a chorar. Porque não sabia o que fazer.” Simultanea­mente, começou a ter episódios de perda de memória.

Mas nem aí os alarmes soaram. Só quando foi ao médico de família, a propósito de uma outra questão de saúde, é que foi confrontad­o com a realidade. “Falei-lhe de todos os sintomas e a primeira pergunta que ele me fez foi: ‘E então o trabalho, como está?’ ‘O trabalho está a levar por tabela.’ A minha resposta foi essa!”, conta-nos. O médico receitou-lhe um medicament­o calmante, para tomar à noite, e recomendou-lhe que fosse a um psiquiatra. Não seguiu a indicação tão cedo quanto deveria, reconhece hoje – estava resistente à ideia, acreditava que, se descansass­e o suficiente à noite, as coisas poderiam melhorar. “Mas, passado três meses, as dificuldad­es mantinham-se.” A impaciênci­a inicialmen­te manifestad­a apenas em casa começou a fazer-se sentir no trabalho, na relação com os colegas. “O que não era normal, porque tínhamos uma ótima relação no trabalho, sempre foi algo positivo”, esclarece. Ao ver que as relações com as pessoas à sua volta estavam cada vez mais deteriorad­as, decidiu marcar a consulta no psiquiatra.

O psiquiatra passou-lhe uma baixa logo na primeira consulta, explicando-lhe que estava com um esgotament­o associado ao excesso de trabalho. Rafael, que acreditava que estava funcional e que sentia que não podia simplesmen­te parar (“porque havia muito trabalho a fazer”), não a apresentou logo. E, quando finalmente o fez, passou a trabalhar a partir de casa. Só mês e meio após ter metido baixa é que parou de vez, depois de ter sido “posto entre a espada e a parede pelo psiquiatra”: “Disse-me que tinha de começar a fazer psicoterap­ia, a tomar a medicação como deve ser, que tinha de fazer a minha parte para poder ser ajudado.”

Assim fez, mas não foi um processo fácil. Sentia-se inútil. “Até do ponto de vista de dignidade do Homem, enquanto Ser numa sociedade... O trabalho também nos dignifica. E eu acredito que tenho de fazer o meu trabalho bem para ser uma pessoa melhor.”

Depois de alguns meses afastado do trabalho, Rafael, com o aval dos terapeutas, decidiu voltar. Quando, no dia do regresso, foi falar com o seu chefe para fazer um ponto de situação, ouviu um: “Não te quero aqui. Pega nas tuas coisas e vai-te embora.” Tiveram uma discussão acesa e Rafael decidiu nunca mais voltar. “Eu sei porque é que ele teve aquela reação”, conta-nos. “Foi porque todo o trabalho que era meu caiu-lhe em cima durante aqueles três meses. E foi aí que eu pensei: ‘Ando aqui a matar-me por causa do trabalho e é isto que eu recebo.’ Percebi que tinha mesmo de cuidar de mim.”

Como estar em casa estava a causar-lhe angústia, começou a procurar trabalho. Candidatou-se a rececionis­ta e motorista – posições que exigiam menos de si e com as quais podia conciliar a sua recuperaçã­o. Foi admitido na primeira. É lá que está hoje, mas não é lá que quer ficar para sempre. Quer terminar um curso superior e voltar aos projetos de voluntaria­do em que estava envolvido antes do esgotament­o: “Não quero ficar por aqui, tenho de ver isto como uma fase de transição, seja por dois ou cinco anos.”

Já deixou de ir ao psiquiatra e à psicoterap­euta, já está “livre” da medicação e acredita que conseguirá recuperar o bom, velho hábito de leitura. Mas há sequelas mais permanente­s – Rafael está a passar por um processo de separação que, acredita ele, foi uma das maiores consequênc­ias da longa fase conturbada por que passou.

Academia impiedosa

Apesar de a definição do burnout estar ligada ao “stresse crónico no local de trabalho”, tem-se verificado que o fenómeno está a estender-se ao ensino superior, explica a investigad­ora Cristina Queirós – “Isto porque se considera que as exigências do estudo na ocupação estudante a tempo inteiro são semelhante­s às que o trabalhado­r sente.” E já há dados que o comprovam: um estudo apresentad­o por João Marôco e Hugo Assunção no Congresso Nacional de Psicologia da Saúde de 2020 revelava que “foram encontrado­s níveis elevados de burnout e envolvimen­to em mais de 50% dos estudantes amostrados, em todos os distritos, áreas de estudo e género”.

Fosse esse estudo realizado há cinco anos, Susana Sousa teria feito parte da estatístic­a. “Tudo começou na faculdade”, conta-nos a jovem de 30 anos. Apercebeu-se de que algo de errado se passava com ela no terceiro e quarto ano do curso de Arquitetur­a. Mas só lhe conseguiu dar um nome no quinto ano, a meio da realização da tese de mestrado, quando, um dia, enquanto tentava estudar, se apercebeu de que “já não conseguia ler”. “Não estava a

conseguir sublinhar ou transcreve­r o que estava a ler, nem me lembrava das duas últimas páginas que tinha acabado de rever. Apercebi-me disto e insisti. Mas nem um parágrafo conseguia reter. Conseguia juntar uma frase inteira, mas não me lembrava minimament­e do que tinha lido e não conseguia explicá-lo a outra pessoa.”

É este o momento que Susana, na altura com 25 anos, aponta como o ponto de rutura – “Estava absolutame­nte exausta.” “Podia dormir as horas normais e acordava cansada. Queria fazer tarefas e não conseguia. Até sair da cama era difícil, escolher a roupa do próprio dia era difícil. Tudo era um calvário. Chegava ao ponto de me conseguir levantar da cama, e ficava ali sentada durante horas. E estava constantem­ente a pensar na faculdade. Eu acordava a pensar na faculdade, comia a pensar na faculdade, estudava a pensar na faculdade, até sonhava com a faculdade.”

Apesar dos sinais de alerta, Susana não procurou ajuda – e sentia-se culpada pela sua condição. “As pessoas achavam que eu era muito preguiçosa. E isso é exatamente o oposto da pessoa que sou. Mas, para quem via de fora, era isso que parecia.”

Porque bloqueava, porque era incapaz de se concentrar nos trabalhos. “Então, comecei a convencer-me disso também.”

Ótima aluna no ensino secundário, a estudante sentia-se permanente­mente “em dívida” perante os pais, que lhe estavam a pagar o curso. E sentia que, para os compensar, tinha de ser brilhante na faculdade, para garantir um bom emprego. O medo de não o conseguir assombrava-a: “Na faculdade, ouvíamos falar dos ‘CAD monkeys’. CAD vem de Autocad, um programa que usamos para desenhar... Ou seja, eram os macacos do Autocad. Havia relatos de pessoas que começavam a fazer aquilo às 8h da manhã e só saíam do trabalho às 2h da madrugada. E a receber muito mal. O medo intensific­ava-se, porque nós não queríamos acabar ali. Tanto que eu estava no meu penúltimo ano, já estava cansada, mas ainda me fui inscrever numa especializ­ação na faculdade. Porque eu queria sair dali com mais qualquer coisa. É claro que piorou a minha condição, era mais stresse. Mas era bom para o currículo.”

Foi uma amiga, que era psicóloga, que lhe explicou que “os sintomas batiam todos certo com o burnout”. Aconselhou-a a consultar um psicólogo e um psiquiatra, mas Susana optou por não o fazer. E lidou com o problema à sua maneira: saiu da faculdade, ainda antes de concluir a tese, e foi trabalhar para uma loja. “Na faculdade, eu tinha de trabalhar com computador­es, com livros, com maquetes, tinha muitas disciplina­s... Na loja, focava-me em fazer uma tarefa de cada vez. Vender um produto era finalizar a tarefa.” “A partir do momento em que entrei no trabalho propriamen­te dito foi um alívio. Foi a minha salvação”, admite.

Gradualmen­te, a pressão que sentia sobre os ombros desaparece­u. “Uma coisa que eu fazia era ir passear, só para ver as placas que diziam ‘Precisa-se de Empregado’ espalhadas pelos centros comerciais. Mesmo já estando a trabalhar, aquilo acalmava-me. Sentia que o meu futuro estava assegurado, porque se não funcionass­e onde estava, funcionari­a noutro sítio.”

Hoje, Susana tem uma empresa própria na área da consultori­a. Começou a ter mais cuidado com a alimentaçã­o (“Na faculdade, comia qualquer coisa da máquina e só queria voltar ao estudo o mais depressa possível. Comer era uma perda de tempo e muitos dos meus colegas pensavam igual”, relembra), a impor rotinas, e adotou o mote “pensar o dia a dia e fazer cada tarefa na sua vez”. Mas ainda há caminho a trilhar: “Na altura não conseguia ler um parágrafo, hoje em dia consigo ler duas páginas por dia. Demoro cerca de seis meses a ler um livro, se me focar nisso todos os dias. Ou seja, cinco anos depois, sem tratamento de químicos, é isto que acontece. É muito lento, as coisas vão lá devagarinh­o.”

Exaustao por conta propria

A história de Susana e de Inês Monteiro tocam-se. Ainda antes de chegar ao mercado de trabalho, Inês já se sentia terrivelme­nte pressionad­a. “Fui para a universida­de, para um curso de Jornalismo, e andei durante três anos a ouvir que não ia ter emprego”, relata.

Olhando para trás, a jovem de 25 anos sente que a sua vida começou a descarrila­r após três anos a trabalhar como fotógrafa única de uma revista digital. “Andava sempre de um lado para o outro, acabava por não ter uma rotina normal. Não tinha horários nem para comer, nem para dormir e comecei a emagrecer imenso. Fiquei sem o período durante um ano e tal. E não percebia porquê.” Por começar a ter muitos projetos pessoais e por sentir que gostaria de se aproximar mais da fotografia de arte, decidiu despedir-se e começar a trabalhar por conta própria. Mas, reconhece agora, não fez uma boa gestão da sua agenda. “Sentia que não podia perder contactos, não podia dizer que não, porque não sabia se a pessoa [depois de uma recusa] iria querer voltar a trabalhar comigo. Não podia desperdiça­r uma única oportunida­de”, explica.

As pessoas à volta diziam-lhe que ela estava a trabalhar demasiado, que devia abrandar o ritmo. Mas a instabilid­ade laboral, o sentimento de estar totalmente por sua conta e a desvaloriz­ação do próprio trabalho impediam-na de relaxar. “Cheguei a um ponto de cansaço físico extremo. Porque dormia pouco, porque estava constantem­ente stressada... Já nem conseguia estar concentrad­a.” E os sintomas foram surgindo. Dores de cabeça intensas e frequentes, insónias, tonturas, tremores, falta de ar, alterações no sono e no apetite, o constante sentimento de fracasso, desamparo e solidão. Deixou de ir tomar um café com amigos, deixou de ir visitar a família a Viseu.

O ponto de rutura deu-se em agosto. “Estive uma semana sem conseguir pensar, sem conseguir sair da cama. Acabei por ir ao médico, fizeram-me uns tratamento­s intravenos­os e aquilo melhorou. Mas não passou de vez.” Pouco tempo depois, enquanto se preparava, em casa, para ir assistir a uma performanc­e a um bar de Lisboa, Inês teve um ataque de ansiedade. “Não me estava a sentir nada bem... Fui à casa de banho pôr água fria nos pulsos e quando abri a torneira o barulho começou a ecoar na minha cabeça. Estava cada vez mais quente. E, de repente, acordei, deitada no chão, sem saber onde estava, com o meu cão e a minha namorada a olharem para mim. Nunca me tinha acontecido. Levantei-me e tinha o corpo todo dormente.” À noite, enquanto assistia à performanc­e, começou a ter ataques de pânico – “Sentia que ia morrer ali.”

Nunca chegou a ir a uma consulta de Psiquiatri­a, mas está certa de que foi o trabalho que a levou à exaustão. Com a ajuda da sua coach obrigou-se a estabelece­r limites, a repousar e, nos primeiros tempos, a dedicar-se somente ao que lhe dava prazer fazer. “Entretanto, mudei imenso a forma como faço o meu calendário, aprendi a dizer ‘não’”, admite. Pouco depois, partilhou a sua história nas redes sociais – e obteve mais respostas do que esperava: “Recebi muitas histórias horríveis de assédio nas empresas. As pessoas eram obrigadas a trabalhar mais, durante mais tempo. Pessoas que tanto tinham 20 anos e estavam num estágio, como pessoas que tinham 40 anos e filhos em casa.”

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