PROGREDIO REGREDIO TRANSGREDIO
Os Pop Dell’Arte estão de volta. Na verdade, e como João Peste esclarece nesta conversa, eles não saíram de cena, simplesmente levam mais tempo a fazer as coisas. O novo álbum sai no fim de março.
Como é que alguém com quase 60 anos não há de sentir saudades de quando tinha 20 e poucos?" A resposta, tão óbvia quanto seca, serve para a pergunta tão necessária quanto justa “sente saudades desses anos 80?” – os anos 80 da Lisboa fervilhante de bandas e de um Bairro Alto a transpirar modernidade, dando os primeiros passos em direção à Lisboa cosmopolita que, entretanto, se formou. Mas a pergunta é sobre muito mais do que a idade ou um tempo que passou e o próprio João Peste – vocalista praticamente mitológico dessa dimensão artística multidisciplinar chamada Pop Dell’Arte – concede, existiu uma era de uma Lisboa excitante, “foram tempos muito interessantes”. Elabora na explicação, conta que a ingenuidade de quem se dispunha a fazer coisas novas, a criar e a explorar, brotava de um tempo novo, de uma democracia recém-conquistada (“eu ainda vivi na Ditadura, tinha 11 anos quando se deu o 25 de Abril”), de uma liberdade ainda fresca, “não havia censura, podíamos falar e escrever”.
Os Pop Dell’Arte
Para compreender a importância dos Pop Dell’Arte e de João Peste num momento fundamental das artes e da cultura moderna – moderna no sentido de “dos tempos recentes”, para não se confundir com as correntes da viragem do século XIX para o século XX – importa perceber em que contexto eles surgem. Essa Lisboa musical desse Bairro Alto, a tal que fervilhava, crescia, com alguma ingenuidade, muito inspirada naquilo a que podemos chamar “eixo Liverpool-Manchester” e que era popularmente conhecida como “música de vanguarda”. João Peste era um desalinhado desse paradigma. Cantava em inglês, alemão e francês, para além do português, misturava cabaré com eletrónica, tinha uma performance que fugia aos padrões invariavelmente na órbita do rock, fazia valer as imensas referências artísticas e, principalmente, culturais que dominava, misturava artes plásticas – pintura, colagem, etc. – com a performance musical.
Estas características que distinguiam Peste e os Pop Dell’Arte dos demais também acabavam por, de certo modo, circunscrevê-los a um círculo muito citadino e cosmopolita. A banda nunca teve a popularidade de outras que assentavam menos na complexidade artística e na sofisticação intelectual e mais na força da simplicidade da mensagem, que tocava quem as ouvisse.
Para além de – ou até “mais do que” – um fenómeno urbano, era um fenómeno lisboeta, uma vez que em meados de 80 a clivagem Lisboa-Porto se fazia sentir, e muito, mesmo ao nível das bandas (a norte, Rui Veloso, GNR e os Taxi; a sul, os Xutos & Pontapés e os UHF).
A música portuguesa
“Queríamos uma linguagem universal”, diz João Peste sobre o facto de cantar noutras línguas – a explicação que se segue, que vai desaguar mais adiante, por exemplo, nos dadás e nos futuristas, na poesia clássica e no grego antigo, merece atenção. “Estava sempre tudo com a música portuguesa, a música portuguesa, a música portuguesa, e eu, uma vez, num programa de televisão, tentei explicar que aquilo que andávamos a fazer, não só nós, mas outros, como o Rui Veloso, talvez não fosse música portuguesa – podia ser cantada em português, podia ser feita por portugueses, mas não tinha nenhuma especificidade enquanto música portuguesa – tal como a pintura do Picasso não é espanhola – e não estou a comparar o que fazíamos com a pintura do Picasso, atenção. Há, por vezes, coisas que são universais, que não têm esse lado nacional. Cantámos em português e ainda cantamos, mas era quando calhava usar, não era forçoso.”